Reconhecimento de paternidade pós-morte não anula venda de cotas sociais a outro filho

O reconhecimento de paternidade pós-morte não invalida negócio jurídico celebrado de forma hígida nem alcança os efeitos passados das situações de direito definitivamente constituídas.

Com base nesse entendimento, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento, por unanimidade, a recurso especial que pretendia anular a venda de cotas societárias de uma empresa, feita de pai para filho, em virtude do reconhecimento de uma filha ocorrido posteriormente.

O ministro relator, Luis Felipe Salomão, explicou que, no caso, discutiu-se a validade da venda das ações da sociedade realizada por ascendente a descendente sem anuência da filha, que só foi reconhecida por força de ação de investigação de paternidade post mortem.

Simulação

A autora ajuizou ação contra o irmão objetivando a declaração de nulidade da transferência das cotas sociais da empresa da qual seu genitor era sócio. Alegou que, quando tinha três anos, o pai alterou o contrato da sociedade da empresa, transferindo todas as cotas para o irmão, com o objetivo único de excluí-la de futura herança, o que caracterizaria negócio jurídico simulado.

Segundo a mulher, o pai nunca se afastou da empresa, e o irmão, menor de 21 anos, foi emancipado às vésperas da alteração societária, com o objetivo de burlar a lei. Além disso, afirmou que ele não tinha condições financeiras de adquirir as cotas sociais transferidas para seu nome. Na abertura do inventário dos bens deixados pelo genitor, o irmão pleiteou e obteve a exclusão das referidas cotas sociais.

Na primeira instância, foi julgado procedente o pedido da autora, para declarar a anulação da alteração contratual que aconteceu antes que ela fosse reconhecida como filha do empresário.

Consentimento não exigível

Porém, no recurso julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), a decisão foi reformada. No acórdão, destacou-se que a mulher não conseguiu provar a existência da simulação e que, quando realizada a alteração contratual, pai e filho não conheciam a autora e nem sabiam da sua condição de filha e irmã. Dessa forma, ela não poderia postular a nulidade da venda das cotas da sociedade, pois à época não era exigível seu consentimento.

O entendimento do TJDF foi ratificado pelo ministro Luis Felipe Salomão. Para ele, à época da concretização do negócio jurídico – alteração do contrato de sociedade voltada à venda de cotas de ascendente a descendente –, a autora ainda não figurava como filha legítima, o que só aconteceu após a morte do genitor.

“Dadas tais circunstâncias, o seu consentimento não era exigível, nem passou a sê-lo em razão do posterior reconhecimento de seu estado de filiação”, ressaltou o ministro.

Segundo Salomão, não foi demonstrada má-fé ou outro vício qualquer no negócio jurídico, por isso “não merece reparo o acórdão que julgou improcedente a pretensão deduzida na inicial”.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO OBJETIVANDO A “DECLARAÇÃO DE NULIDADE” DA VENDA DE COTAS DE SOCIEDADE REALIZADA POR ASCENDENTE A DESCENDENTE SEM A ANUÊNCIA DE FILHA ASSIM RECONHECIDA POR FORÇA DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE POST MORTEM.

1. Sob a égide do Código Civil de 1916, o exercício do direito de anular venda de ascendente a descendente – que não contara com o consentimento dos demais e desde que inexistente interposta pessoa -, submetia-se ao prazo “prescricional” vintenário disposto no artigo 177 do codex. Inteligência da Súmula 494 do STF. Tal lapso, na verdade decadencial, foi reduzido para dois anos com a entrada em vigor do Código Civil de 2002 (artigo 179).

2. Nada obstante, assim como ocorre com os prazos prescricionais, nos casos em que deflagrado o termo inicial da decadência durante a vigência do código revogado, aplicar-se-á a norma de transição estabelecida no artigo 2.028 do Código Civil de 2002. Assim, devem ser observados os prazos do Código Civil anterior, quando presentes as seguintes condições: (i)  redução do prazo pelo diploma atual; e (ii) transcurso de mais da metade do tempo estabelecido na regra decadencial ou prescricional revogada.

3. No caso de autor que contava com menos de dezesseis anos à época da deflagração do fato gerador da pretensão deduzida em juízo, a Quarta Turma consagrou, recentemente, o entendimento de que o confronto entre a norma de transição (artigo 2.028 do Código Civil) e a regra que obsta o transcurso do prazo prescricional não poderá traduzir situação prejudicial ao absolutamente incapaz (REsp 1.349.599⁄MG, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 13.06.2017, DJe 01.08.2017). Tal exegese também deve ser aplicada aos prazos decadenciais reduzidos pelo Código Civil de 2002, quando em discussão o exercício de direito potestativo por menor impúbere. Necessária observância do paradigma da proteção integral, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana.

4. O STJ, ao interpretar a norma (inserta tanto no artigo 496 do Código Civil de 2002 quanto no artigo 1.132 do Código Civil de 1916), perfilhou o entendimento de que a alienação de bens de ascendente a descendente, sem o consentimento dos demais, é ato jurídico anulável, cujo reconhecimento reclama: (i) a iniciativa da parte interessada; (ii) a ocorrência do fato jurídico, qual seja, a venda inquinada de inválida; (iii) a existência de relação de ascendência e descendência entre vendedor e comprador; (iv) a falta de consentimento de outros descendentes; e (v) a comprovação de simulação com o objetivo de dissimular doação ou pagamento de preço inferior ao valor de mercado. Precedentes.

5. De outro lado, malgrado a sentença que reconhece a paternidade ostente cunho declaratório de efeito ex tunc (retro-operante), é certo que não poderá alcançar os efeitos passados das situações de direito definitivamente constituídas. Não terá, portanto, o condão de tornar inválido um negócio jurídico celebrado de forma hígida, dadas as circunstâncias fáticas existentes à época. Precedentes.

6. Na espécie, à época da concretização do negócio jurídico – alteração do contrato de sociedade empresária voltada à venda de cotas de ascendente a descendente -, a autora ainda não figurava como filha do de cujus, condição que somente veio a ser reconhecida no bojo de ação investigatória post mortem. Dadas tais circunstâncias, o seu consentimento (nos termos da norma disposta no artigo 1.132 do Código Civil de 1916 – atual artigo 496 do Código Civil de 2002) não era exigível nem passou a sê-lo em razão do posterior reconhecimento de seu estado de filiação. Na verdade, quando a autora obteve o reconhecimento de sua condição de filha, a transferência das cotas sociais já consubstanciava situação jurídica definitivamente constituída, geradora de direito subjetivo ao réu, cujos efeitos passados não podem ser alterados pela ulterior sentença declaratória de paternidade, devendo ser, assim, prestigiado o princípio constitucional da segurança jurídica. Ademais, consoante assente na origem, não restou demonstrada má-fé ou qualquer outro vício do negócio jurídico a justificar a mitigação da referida exegese.

7. Recurso especial não provido.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1356431

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