No Dia da Consciência Negra, matéria especial discute a legislação, as consequências judiciais da discriminação e a desigualdade no trabalho em razão da cor.
Em pleno século XXI, o racismo e a discriminação racial ainda estão presentes na sociedade e nas relações de trabalho. No Dia Nacional da Consciência Negra, celebrado no Brasil em 20 de novembro pela Lei 12.519/2011, destacamos o que diz a legislação, as consequências judiciais dos atos discriminatórios e as estatísticas que ainda demonstram a desigualdade entre raças.
“Quando essa prática se dá nos ambientes de trabalho, a Justiça do Trabalho atua, aplicando a lei. Quando comprovado o racismo, podem ser estabelecidas multas e sanções para o empregador que admite esse tipo de conduta e definidas indenizações”, descreve a presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST) e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT), ministra Maria Cristina Peduzzi.
A Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) define discriminação como “toda distinção, exclusão ou preferência fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social, que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidade ou de tratamento em matéria de emprego ou profissão” ou, ainda, “qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego ou profissão”.
Desigualdade racial
De acordo com o Observatório da Diversidade e da Igualdade de Oportunidades no Trabalho da Smartlab, plataforma conjunta da OIT com o Ministério Público do Trabalho (MPT), há uma diferença de remuneração relacionada a sexo e raça no setor formal. Enquanto a média salarial de um homem branco, em 2017, foi de R$ 3,3 mil e a de uma mulher branca foi de R$ 2,6 mil, a de homens e mulheres negros foi de R$ 2,3 mil e R$ 1,8 mil, respectivamente. Também houve segregação ocupacional de negros em cargos de direção – estes compunham apenas 29% dos cargos.
O estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, apontou que, no mercado de trabalho, os pretos ou pardos representavam 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada. Além disso, o número de trabalhadores negros em ocupações informais era de 47,3%, enquanto o de brancos era de 34,6%.
Em relação ao rendimento médio, pessoas brancas ocupadas tiveram salário 73,9% superior ao da população preta ou parda (R$ 2.796 contra R$ 1.608). Entre os trabalhadores com nível superior completo, brancos ganhavam, por hora, 45% a mais que pretos ou pardos. Quanto à distribuição de renda, os pretos ou pardos representavam 75,2% do grupo formado pelos 10% da população com os menores rendimentos e apenas 27,7% dos 10% da população com os maiores rendimentos.
A questão da discriminação, inclusive a racial, também é tema de diversos processos judiciais. De acordo com dados da Coordenadoria de Estatística e Pesquisa do Tribunal Superior do Trabalho, a indenização por dano moral decorrente de atos discriminatórios foi o 88º assunto mais frequente na Justiça do Trabalho em 2019. O tema também aparece na 137ª posição, relativa à rescisão do contrato de trabalho por dispensa discriminatória, e na 609º, relativa à garantia constitucional de não discriminação. Em conjunto, o assunto está presente em mais de 49,2 mil processos no ano. Em 2020, já são mais de 31 mil ações.
Racismo é crime
O combate a todas as formas de discriminação é um dos objetivos fundamentais do Brasil, cristalizados no artigo 3º, inciso IV, da Constituição da República: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. A proteção contra atos ou comportamentos discriminatórios ainda aparece em outros trechos da Carta Magna. O artigo 4º consagra o repúdio ao racismo como princípio das relações internacionais, e o artigo 5º declara a igualdade de todos perante a lei e enquadra o racismo como crime inafiançável e imprescritível.
Ao falar de crime, é preciso distinguir racismo de injúria racial. A injúria consiste em ofender a dignidade ou o decoro de alguém, conforme preceitua o artigo 140 do Código Penal. “É como xingar uma pessoa, atribuindo alguma característica pejorativa. É o caso de práticas como comparar a pessoa a animais, ou coisas do gênero”, explica o juiz do Trabalho Firmino Alves Lima. Nesse caso, o autor do delito poderá ser condenado a pena de detenção de um a seis meses ou multa.
Já o racismo, previsto na Lei 7716/1989 (que ficou conhecida como Lei Caó, por ter sido proposta pelo jornalista e político Carlos Alberto Caó de Oliveira) compreende uma série de crimes, como o impedimento de acesso, de emprego, de promoção ou de qualquer vantagem em razão da cor da pele, da dependência ou da origem racial ou étnica. Na área trabalhista, caracteriza-se na recusa da contratação ou no pagamento de salários mais baixos, por exemplo. “A injúria é uma ofensa em momento único. O racismo é uma prática mais ampla, que acaba, por sua vez, impedindo o acesso ou a evolução do funcionário dentro do ambiente de trabalho por motivos de cor de pele”, resume o magistrado.
Discriminação no trabalho
No âmbito do Direito Internacional, a Convenção 111 da OIT, ratificada pelo Brasil, traz medidas para eliminar toda discriminação em matéria de emprego e ocupação, com incentivo a leis e programas de educação sobre o tema e à colaboração com empregadores e organismos, a fim de garantir a aplicação da política de combate à discriminação, entre outros pontos.
Em relação ao ambiente laboral, o artigo 7º, inciso XXX, da Constituição da República proíbe diferenças salariais por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê multa por discriminação em razão do sexo ou etnia e assegura a isonomia salarial (artigo 461).
Por fim, a legislação federal também traz disposições que vedam a prática discriminatória. A Lei 9.029/1995 proíbe genericamente a adoção de qualquer prática discriminatória para efeito de acesso à relação de emprego ou sua manutenção, seja por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil ou idade. “Essa lei pode ser aplicada para caso de discriminação racial. Assim, dispensado o empregado em decorrência de discriminação, a lei assegura a sua readmissão, com o ressarcimento de todo o período de afastamento”, explica o ministro aposentado do TST Carlos Alberto Reis de Paula, primeiro ministro negro a comandar a Corte.
Assédio moral
A prática de discriminação racial no ambiente de trabalho, se ocorrer de maneira reiterada, pode ser considerada assédio moral e, consequentemente, gerar direito a indenização. Conceituado como “toda e qualquer conduta abusiva, manifestando-se por comportamentos, palavras, atos, gestos ou escritos que possam trazer danos à personalidade, à dignidade ou à integridade física e psíquica de uma pessoa, pondo em perigo o seu emprego ou degradando o ambiente de trabalho”, o assédio moral desestabiliza o indivíduo emocional e profissionalmente.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) já produziu uma matéria especial e uma cartilha sobre prevenção ao assédio moral. Porém, mesmo que a conduta não seja praticada reiteradamente, ainda é passível de indenização, por ser dano decorrente de ato ilícito.
TST
“É baseada na Constituição que a Justiça do Trabalho age. Se ofende princípios da Constituição, o posicionamento da Justiça é radical”, assinala o ministro aposentado Carlos Alberto. “A discriminação racial é uma ofensa à dignidade e um dos caminhos que temos é a imposição de indenização por dano moral”. Nesse sentido, o TST tem reconhecido o direito à indenização e à rescisão indireta (extinção do contrato por falta grave do empregador) a trabalhadores que sofreram preconceito no ambiente laboral.
Uma decisão de 2010 do Tribunal majorou a indenização a ser paga a um advogado discriminado por racismo na Bahia. Ratificando as estatísticas, uma das situações discriminatórias foi o pagamento de salário inferior ao de outro colega que exercia a mesma função e a preterição em oportunidade de ascensão e promoção em benefício de funcionários menos experientes, porém de cor branca.
Uma década depois, o TST continua julgando casos de discriminação racial. Uma decisão de junho de 2020, da relatoria do ministro Cláudio Brandão, reconheceu a rescisão indireta do contrato de trabalho e o pagamento de parcelas rescisórias a um oficial de linha que era alvo constante de constrangimento e humilhações, chamado por termos pejorativos. “Não se pode admitir que o ambiente de trabalho seja palco de manifestações de preconceito e que não observe o mínimo exigido para que as pessoas – empregadas ou não – sejam tratadas com respeito próprio de sua dignidade”, afirmou o ministro na decisão. “A utilização de expressões racistas, no meio ambiente de trabalho, é uma prática que deve ser veementemente combatida”.
Como solucionar?
Para o ministro aposentado do TST Carlos Alberto Reis de Paula, “é necessário que se tome consciência de que há necessidade e urgência de estabelecermos uma política específica para a integração na nossa sociedade e o afastamento da desigualdade racial”. Na sua avaliação, isso tem duas vertentes: a educação e o trabalho. “Há necessidade de se estabelecer uma qualificação, fazer com que as pessoas que não têm condições se qualifiquem para o trabalho. A educação parece o único caminho que se estabelece de forma definitiva”.
A igualdade mencionada pelo ministro se concretiza por meio de políticas públicas, que incluem ações repressivas (para combater os atos discriminatórios), valorativas e afirmativas (que buscam garantir o acesso de grupos discriminados e ampliar sua participação na sociedade). O próprio Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) traz o dever estatal de garantir a igualdade de oportunidades por meio de políticas públicas, ações afirmativas, eliminação de obstáculos históricos, estímulo a iniciativas de igualdade e promoção de ajustes normativos para combater a discriminação étnica.
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