Vítimas de estupro têm direito a fazer aborto pelo SUS independente de registro policial

As gestantes vítimas de estupro que quiserem interromper a gravidez têm o direito de fazer a cirurgia pelo SUS, independente de apresentar registro de ocorrência policial. A 6ª Turma Especializada do TRF2 declarou nulo o decreto do município do Rio de Janeiro que estabelece a exigência de registro. A decisão foi proferida no dia 18 de outubro no julgamento de apelação cível apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), contra sentença de primeiro grau.
O MPF ajuizara ação civil pública na primeira instância da Justiça Federal, pedindo a nulidade do Decreto Municipal nº 25.745, de 2005, ano em que a Portaria nº 1.508 do Ministério da Saúde dispôs sobre o “procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”. O Código Penal estabelece que não é punível o aborto praticado por médico, “se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante”.
O relator do processo no TRF2, desembargador federal Frederico Gueiros, iniciou seu voto afirmando que “o Brasil mantém no seu sistema jurídico um enorme arsenal de dispositivos legais e constitucionais protetivos dos direitos das mulheres mas, na perversa lógica paradoxal da ideologia patriarcal, pouco faz para que seja efetivada e concretizada a garantia material desses direitos”.
Frederico Gueiros ressaltou que o Brasil assumiu compromisso internacional de garantir às mulheres que optam pelo abortamento não criminoso as condições para realizá-lo de forma segura. Inclusive, na Conferência de Beijing, de 1995, o País se comprometeu a rever toda legislação que incluísse restrições ou punições contra a prática: “A exigência da apresentação do Registro de Ocorrência como condição para o fornecimento de assistência médica para a realização do abortamento ético constitui para a mulher um inaceitável constrangimento, que, na prática, pode afastá-la do serviço público de saúde e impedir o fornecimento do indispensável tratamento médico em razão da violência sexual sofrida, a qual pode acarretar a sua morte ou inúmeras sequelas, muitas irreversíveis, com consequente custo social elevadíssimo”, destacou.
Para o desembargador, o decreto municipal viola o artigo 196 da Constiuição, que define a saúde como direito fundamental, sendo dever do Estado garantir “o acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”.
Ainda, o magistrado chamou atenção para a importância da capacitação de médicos e demais profissionais envolvidos no procedimento cirúrgico, bem como de que os hospitais públicos estejam bem equipados e preparados para atender as pacientes: “Por fim, cabe esclarecer que a declaração da gestante vítima de violência sexual deve ser primordial no procedimento em questão, porém nenhum prejuízo surgiria em se prestá-la nos próprios hospitais públicos municipais – perante equipes mutiprofissionais especializadas – em ação concomitante, ao invés de se fazê-lo na atmosfera ‘pesada’ de uma delegacia policial”, concluiu.

O recurso ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – SUSPENSÃO DOS EFEITOS DO DECRETO MUNICIPAL Nº 25.745/2005 – GRAVIDEZ DECORRENTE DE VIOLÊNCIA SEXUAL – EXIGÊNCIA DE BOLETIM DE OCORRÊNCIA POLICIAL PARA REALIZAÇÃO DE ABORTO NO ÂMBITO DO SUS – INCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA – INVASÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO POR PARTE DO ENTE MUNICIPAL. 1- Ao dispor o Município do Rio de Janeiro, no âmbito da sua atuação administrativa na área de saúde, sobre as regras e procedimentos a serem adotados pelo seu corpo de servidores especializados em medicina, atuou de forma desproporcional e irrazoável, violando preceitos constitucionais e legais. 2- O ato administrativo editado pelo Município do Rio de Janeiro, que determinou a não aplicabilidade, no âmbito da referida municipalidade, do procedimento de interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, violou frontalmente o princípio constitucional e as diretrizes consignadas na Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde – Lei nº 8080/90. 3- Não cabe ao ato administrativo, tal como o decreto em questão, restringir direitos garantidos por lei federal, ainda mais tratando-se de restrição que nada tem a ver com as peculiaridades locais deste município (art. 30, inciso I, da Constituição Federal). 4- Não pode o Município furtar-se à observância dos comandos contidos na Portaria 1.508/2005, pois que oriundos do poder da União de editar normas gerais de proteção e defesa da saúde, conforme artigo 24, inciso XII, da CRFB. 5- Tanto a rede pública hospitalar como as delegacias de polícia são órgãos da estrutura do Poder Executivo, municipal e estadual, respectivamente. Portanto, não haveria razão para desconsiderar a primeira em detrimento da segunda. Pelo contrário, deve-se prestigiar a autoridade dos servidores do próprio município apelado. 6- Para a garantia ética e jurídica dos médicos, dos demais profissionais envolvidos no procedimento, do serviço público de saúde e da própria sociedade, deve-se, primordialmente, capacitar os profissionais para o cumprimento desse dever do Estado e estruturar adequadamente os respectivos serviços, equipando-os e orientando-os para darem plena assistência e total acolhimento à mulher. 7- Apelação provida. Sentença reformada.

 

Proc 0017986-51.2007.4.02.5101

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