A 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), por unanimidade, deu provimento à apelação de um candidato à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) para reconhecer o direito dele, com síndrome de Down, à adaptação curricular das provas de seleção do Programa de Ingresso Seletivo Misto (PISM – I, II e III) ou à abertura de outra forma de seleção para ingresso na Universidade, que leve em conta as necessidades específicas decorrentes de sua deficiência.
O caso foi julgado pelo TRF1 após o candidato, assistido pela mãe, apelar de decisão da primeira instância que havia julgado improcedentes os pedidos de reconhecimento do direito à adaptação com adequação/adaptação curricular das provas de seleção do PISM ou de outras formas de seleção para ingresso na UFJF, em razão das necessidades específicas decorrentes de sua deficiência. Foi julgado improcedente ainda o pedido para que que fosse expedida ordem à UFJF para que a instituição respeitasse e efetivasse tal direito, elaborando as provas de seleção com as adaptações solicitadas, conforme as necessidades especiais do autor.
O juízo de origem havia negado os pedidos sob o fundamento de que a decisão administrativa impugnada era compatível com o conteúdo do site da Universidade referente ao Programa realizado naquele ano, e cujos recursos disponibilizados para a realização das provas seriam aqueles previamente descritos, que não incluíam a adaptação almejada. Além disso, teria sustentado, em conformidade com o parecer ministerial, que “não há previsão legal para a adaptação de prova quanto ao conteúdo exigido ou ao grau de dificuldade das questões […], mas apenas de adequação às habilidades sensoriais do candidato, mediante recursos de acessibilidade e tecnologia assistiva, além de dilação de tempo, bem como às suas singularidades linguísticas”. Para o magistrado da primeira instância, essa forma de adequação objetiva proporcionar condições equiparáveis de resolução da mesma prova, e que não seria possível selecionar candidatos que se submetessem a exames com conteúdo programático ou grau de dificuldade diferentes.
Ao apresentar recurso ao TRF1, o apelante justificou a inconformidade com a sentença alegando que, “no momento em que foi realizar sua inscrição para o PISM I […] verificou, que, dentre as várias opções de atendimento a deficientes, não havia a opção de atendimento especial à necessidade que apresenta, qual seja, deficiência intelectual, que exige uma adequação avaliativa, viabilizando sua participação no certame”. Ele afirmou que formulou requerimento à Universidade quanto à necessidade de adaptação curricular/adequação do conteúdo da prova, mas teve o pedido negado “sob a justificativa de impossibilidade de fazer a adequação de conteúdo por tratar-se de um processo seletivo de larga escala, sendo inviável em tal momento elaboração de processo seletivo individualizado”. Sustentou ainda que o Estatuto do Deficiente não assegura a aplicação de prova especificamente preparada para pessoa com necessidades especiais, o que causaria uma desigualdade em relação aos demais concorrentes, e que o Plano de desenvolvimento individualizado não se aplica para o processo seletivo e avaliação em larga escala. Além disso, entre outras razões, argumentou que o conceito de igualdade e isonomia, em seu aspecto material, permite que haja tratamento diferenciado, desde que justificado pelas circunstâncias.
Ao dar provimento ao recurso do candidato, a juíza federal convocada Kátia Balbino, relatora do voto acompanhada pela turma do TRF1, entendeu que, “a despeito das razões expressas na sentença que julgou improcedentes os pedidos iniciais, assiste razão ao apelante quanto à necessidade de se reconhecer o direito vindicado”. Para a magistrada, “toda a construção normativa e jurisprudencial aponta para uma política de plena inclusão da pessoa com deficiência no âmbito do sistema educacional, em todos os níveis, travando-se discussões essenciais em todas as esferas institucionais do Estado Brasileiro, seja nos âmbitos Legislativo, Executivo ou Jurisdicional”, pontuou. “Assim, seja pela inafastabilidade da prestação jurisdicional insculpida no inciso XXXV da CF/1988, seja por todas as razões expostas que evidenciam a sensibilidade da matéria, não se deve descurar, no presente caso, da apreciação de eventual ameaça ou lesão a direito que possa comprometer as diretrizes outrora lançadas, tampouco omitir-se o Poder Judiciário quanto a uma possível presença de barreiras intransponíveis no efetivo acesso da PCD ao consagrado direito à educação”, destacou.
A magistrada considerou ainda o contexto fático em que se insere o apelante, pelo qual, “das quase 300 mil pessoas com trissomia no cromossomo 21 hoje no Brasil, apenas 74 estão ou já concluíram o ensino superior”, apontou. “A demonstração do potencial da barreira suscitada (na forma do art. 3º, inciso IV, da Lei 13.146/2015) enseja do poder público a adoção de medidas que conformem as indigitadas desigualdades materiais, sob pena de se confirmar a realidade de exclusão da pessoa síndrome de down do ensino superior brasileiro”, frisou a magistrada. Além disso, ela entendeu serem plausíveis às alegações do apelante quanto às possíveis dificuldades que enfrentaria ao participar do certame sem a viabilização das adaptações solicitadas. “Há que se observar, outrossim, que o arcabouço normativo apresentado ao longo da fundamentação exposta, ao passo em que assegura expressamente à pessoa com deficiência o direito à uma educação inclusiva, em todos os níveis, facultando a adoção de adaptações razoáveis para superação das barreiras postas à sua plena participação, em nada exclui a possibilidade de adaptação de conteúdo das provas dos candidatos com deficiência em processos seletivos de ingresso no ensino superior”, asseverou.
Assim, a relatora concluiu que a adaptação curricular das provas do processo seletivo é uma adaptação razoável, que possibilita que a pessoa com deficiência intelectual possa concorrer em processo seletivo com chances de ingressar no ensino superior em igualdade de condições com os demais candidatos.
Por fim, a relatora sustentou que, “em respeito à autonomia universitária (art. 207 da CF/1988) e ao necessário diálogo institucional, há que se garantir […] a reserva discricionária da Universidade quanto ao modo em que deve ser proporcionado o direito de participação, em igualdade de condições, do apelante e de outros deficientes intelectuais no comentado Programa de Ingresso Seletivo Misto – PISM, isto é, se mediante adaptação de conteúdo das provas das respectivas etapas ou se mediante abertura de processo seletivo outro compatível com as diretrizes e bases da educação nacional e do acesso ao ensino superior, sem prejuízo da necessária observância dos impedimentos de longo prazo e das individualidades que envolvem a deficiência intelectual apresentada pelo recorrente”.
Para entender melhor (algumas legislações envolvidas no caso e ressaltadas no voto vencedor): artigos 23, II; 37, VIII; 203, IV e V; 208, III; 227, II e § 2º da Carta Política de 1988; art. 24 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com deficiência; artigos 27, 28 e 30 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência – Lei nº 13.146/2015; artigos 3, 5 e 7 da Lei nº 13.409/2016; artigos 1, 2, 4 e 4 do Decreto nº 9.508/2018 .
A íntegra da decisão está disponível por meio da consulta processual do Processo Judicial Eletrônico (PJE) do TRF1, utilizando-se o número do processo no 2º grau.
Processo 1013314-10.2019.4.01.3801