União e Funai são condenadas a indenizar povo indígena Avá-Canoeira em dois mil salários mínimos

O Ministério Público Federal (MPF) e a União recorreram no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) da sentença que condenou a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) ao pagamento de danos morais coletivos e materiais ao povo indígena Avá-Canoeiro, do Araguaia, no valor de quatro mil salários mínimos. Segundo a sentença, a quantia deve ser empregada na aquisição de área na região tradicionalmente ocupada pelo grupo enquanto não for finalizado o processo de demarcação de suas terras.

Porém, no recurso o MPF pediu a revisão da sentença quanto à destinação dos gastos para aquisição de terras, requerendo que o valor recebido fosse livremente usado pelo grupo.

Consta dos autos que o povo indígena Avá-Canoeiro sofreu remoção forçada com alocações indevidas em terras já ocupadas por outra comunidade, afetando-lhe o modo de sobrevivência física e cultural, dizimação, o que levou o órgão a promover a ação civil pública.

Ao analisar o processo, o relator, desembargador federal Jamil Rosa de Jesus Oliveira, destacou que é dever da União preservar os direitos originários sobre as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, demarcando-as, protegendo-as e respeitando a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, enfatizando também o artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias que determinou o prazo de cinco anos para essa demarcação a partir da promulgação da Constituição.

Considerando o estudo apresentado, o magistrado ressaltou o descaso sofrido por quase 40 anos pelo povo Avá-Canoeiro do Araguaia, constatando que desde a década de 60 o grupo luta pelo reconhecimento de seus territórios de ocupação e uso tradicional. O relator destacou que embora a Funai tenha agido de forma diligente na realização do procedimento de reconhecimento e demarcação das áreas, o processo ainda não foi efetivamente concluído, extrapolando o prazo constitucional, sendo inadmissível a omissão do poder público quanto à adoção das medidas protetivas à referida comunidade indígena.

Valor a ser utilizado livremente – Contudo, o desembargador não considerou razoável impor aos indígenas a destinação do valor recebido para compra de terras que não tenham ligação com seus costumes e tradições. Para ele, a indenização também não deve ser vinculada a programas sociais, pois estes já estão legalmente previstos, tendo, segundo ele, a sentença extrapolado o pedido do MPF.

Para o magistrado, a utilização da quantia recebida em favor da comunidade indígena deve se dar de forma livre, conforme definirem suas lideranças, devendo a sentença retornar aos limites peticionados, cuja indenização previa minimizar os sofrimentos experimentados pelos Avá-Canoeiro até que retornem ao lugar ancestral, o que só será possível com a demarcação das suas terras.

Por fim, o desembargador alegou que a indenização definida na sentença deveria ser reduzida à metade, considerando que o grupo soma pouco mais de duas dezenas de integrantes, de acordo com estudo apresentado nos autos. Desse modo, observando os critérios de proporcionalidade, moderação e razoabilidade, o magistrado defendeu a redução da indenização para dois mil salários mínimos.

Assim, a 6ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, por unanimidade, decidiu pela redução do valor previamente estabelecido em sentença e desvinculou a utilização da indenização para compra de terras, podendo os Avá-Canoeiro utilizá-la livremente, conforme defendido no voto do relator.

O recurso ficou assim ementado:

CONSTITUCIONAL. CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANOS MORAIS COLETIVOS. ATOS ILÍCITOS COMETIDOS CONTRA O POVO INDÍGENA AVÁ-CANOEIRO. REMOÇÃO FORÇADA DE SUAS TERRAS COM ALOCAÇÃO INDEVIDA EM TERRAS QUE NÃO GUARDAM TRAÇO DE TRADICIONALIDADE E EM COMUNIDADE COM A QUAL GUARDA INIMIZADE HISTÓRICA, AFETANDO SEU MODO DE SOBREVIVÊNCIA FÍSICA E CULTURAL. PROCESSO DE DEMARCAÇÃO PENDENTE DE ANÁLISE DE RECURSOS ADMINISTRATIVOS. POPULAÇÃO INDÍGENA QUE VIVE EM CONDIÇÕES PRECÁRIAS. VULNERABILIDADE. VIOLAÇÃO AO ART. 231 DA CONSTITUIÇÃO. OMISSÃO ESTATAL. DIREITO AO RESSARCIMENTO PELOS DANOS MORAIS SOFRIDOS. REPARAÇÃO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO. REDUÇÃO DA INDENIZAÇÃO. APELAÇÃO DA UNIÃO E REMESSA OFICIAL PROVIDAS EM PARTE. APELAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROVIDA.

1. Trata-se de apelações interpostas pelo Ministério Público Federal e pela União e de remessa oficial em face de sentença proferida em ação civil pública, pela qual se julgou procedente o pedido de ressarcimento de danos morais coletivos sofridos pelo povo indígena Avá-Canoeiro.

2. Na origem, o Ministério Público Federal ingressou com a ação para se “reparar uma dívida histórica do Estado brasileiro com o Povo Indígena AváCanoeiro do Araguaia, atualmente residente na Ilha do Bananal, no Estado do Tocantins, em razão dos atos ilícitos cometidos contra seus membros, consistentes em sua captura forçada, deslocamento forçado, dizimação, e inúmeras outras violências físicas e simbólicas diversas. Como objetivo secundário, busca garantir sua sobrevivência até que esteja definitivamente instalado e usufruindo os recursos naturais de seu território tradicional”, ao fundamento de que a comunidade em questão sofreu remoção forçada com alocações indevidas em terras que, além de não guardarem traço de tradicionalidade, já estavam ocupadas por outra comunidade indígena (o povo Javaé) e particulares, afetando substancialmente seu modo de sobrevivência física e cultural, sujeitando-lhes a atos de violência praticados por outra comunidade, por possuidores de imóveis rurais e pelos próprios agentes do Estado.

3. No que concerne à legitimidade passiva da União, a esta compete a defesa da propriedade da terra indígena, como política estatal, devendo viabilizar plenamente os respectivos direitos territoriais aos seus beneficiários. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são bens pertencentes à União (art. 20, inciso XI, da Constituição Federal) e se destinam à posse e ao usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes pelos indígenas. Por sua vez, a Lei n. 6.001/1973 (Estatuto do Índio) assim estabelece: “(…) Art. 2° Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, para a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos: (…) IX – garantir aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes; X – garantir aos índios o pleno exercício dos direitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem“. Na sentença se registrou que “…, apesar de não se discutir o procedimento de demarcação das terras da etnia Avá-Canoeiro, é evidente que as mazelas a que está sujeita a aludida comunidade indígena são decorrentes da não demarcação e delimitação de suas terras tradicionalmente ocupadas, garantidas pelo comando constitucional do art. 231. Conforme estabeleceu o art. 67 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, a União deveria ter concluído a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a contar da promulgação da Constituição, ou seja, a partir de 05/10/1988. Assim, a responsabilidade pela delimitação e demarcação das terras indígenas é da União, sendo a Funai a autarquia pela qual são operacionalizadas as ações destinadas (…).” Preliminar de ilegitimidade passiva da União rejeitada.

4. Rejeita-se, por igual, a alegação de nulidade processual arguida pela FUNAI, por não ter sido intimada para recorrer. Sucede que, proferida a sentença, o MPF, a União e a FUNAI, cada uma ao seu tempo, opuseram embargos de declaração; decididos estes, o MPF e a União interpuseram apelação, tendo a FUNAI ofertado contrarrazões ao apelo do MPF. Está comprovado nos autos que a autarquia teve efetivo conhecimento dos atos processuais, inclusive apresentando referidas contrarrazões à apelação ministerial, de sorte que não se afigura razoável a alegação de cerceamento de defesa depois de encontrarem-se os autos há cinco anos no Tribunal. Precedentes do STJ declinados no voto. Alegação que se rejeita.

5. No que se refere à matéria de fundo, no caso dos autos, antropóloga designada pela FUNAI para proceder a estudos de identificação de parte do território dos próprios índios Javaé do lado direito do Rio Javaés, a leste da Ilha do Bananal, Estado do Tocantins, conforme Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação, concluiu que foi em razão da atuação violenta por uma “frente de atração” da FUNAI, no início da década de 70, que os Avá-Canoeiro perderam definitivamente — para grandes proprietários rurais — as terras que ocupavam, bem como sua autonomia. Acrescentou-se que, por imposição da FUNAI, os Avá-Canoeiro foram sumariamente transferidos para a aldeia Canoanã, passando a conviver na condição de povo dominado pelos Javaé, seus inimigos históricos, e que, daquela época até os dias atuais, os Avá-Canoeiro sobreviventes e seus descendentes vivem alojados entre os Javaé. O grupo se vê como cativo na “aldeia dos inimigos”, e que, uma vez capturados em seu território de ocupação tradicional, foram levados a viver em meio a outra comunidade, com inimizade histórica, e foram privados de todos os seus meios de subsistência, cultura, dignidade, liberdade e reprodução, situação que, pelo que consta, persiste até os dias atuais, em razão da política da FUNAI anterior à Constituição de 1988 de forçar o contato com a civilização.

6. Na espécie, o atual grupo da etnia Avá-Canoeiro vive atualmente em condições precárias, apresentando uma existência à parte da sociedade indígena local, sem a participação na vida política e cultural da região e, mesmo depois de transcorridos mais de 40 (quarenta) anos desde a captura e remoção forçadas, vem buscando a demarcação das terras tradicionalmente por eles ocupadas, sem conclusão, ainda, porquanto o processo tem pendências recursais no âmbito administrativo, atraindo, portanto, a condenação à reparação moral e material.

7. O Relatório Final do Grupo de Trabalho – GT e o Inquérito Civil Público n. 1.36.000.000779/2011-16 comprovam os danos sofridos pelo Avá-Canoeiro, como discriminação e violências durante anos, sendo retirados à força de suas terras tradicionais por agentes estatais e compulsoriamente instalados na aldeia Canoanã, da etnia Javaé, que são seus inimigos históricos. Os Avá-Canoeiro vivem em condições precárias, sofrendo uma existência à parte da sociedade indígena local (Javaé), não participando da vida política e cultural da região e, depois de transcorridos mais de 40 (quarenta) anos desde a captura e remoção forçadas, vem buscando a demarcação das terras tradicionalmente ocupadas, sem sucesso na conclusão do processo administrativo e respectiva demarcação, encontrando-se desterrados das suas terras tradicionais.

8. A história do povo Avá-Canoeiro no Vale do Araguaia é marcada por diversas situações de vulnerabilidade, apresentando-se patente a necessidade de reparação pelos danos causados pelos agentes do Estado à referida comunidade, mormente em razão do decurso de mais de 40 (quarenta) anos de perseguições que culminaram no requerimento de demarcação das referidas terras indígenas, procedimento que se arrasta por mais de uma década.

9. As reservas indígenas poderão ser instituídas em propriedade da União, bem como ser adquiridas mediante compra, doação de terceiros ou desapropriação, na eventualidade de não se verificar a tradicionalidade da ocupação indígena ou se constatar a insuficiência de terra demarcada, sendo possível, ainda, a intervenção do ente federal em terra indígena para a resolução de casos excepcionais, como os de conflito interno irreversível entre grupos tribais, conforme disciplina o art. 20, § 1º, “a”, da Lei n. 6.001/1973. Há procedimento de demarcação administrativa das terras indígenas do povo Avá-Canoeiro, mas ainda que se reconheça que a FUNAI tenha atuado de forma diligente no procedimento de reconhecimento e demarcação das áreas em comento, o processo como um todo não fora efetivamente concluído, extrapolando o prazo constitucional para a finalização de providências com tal finalidade (art. 67 ADCT). Passados uma década e alguns anos desde a criação do respectivo Grupo Técnico, não tendo sido concluído, efetivamente, o processo de  demarcação, não há como não reconhecer, na espécie, a inércia do Poder Público (FUNAI e UNIÃO), em manifesta violação ao princípio da razoável duração do processo (art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição).

10. A sentença fixou indenização por danos morais coletivos, para reparar dano que se tem por histórico, pois a flagrante omissão do Poder Público em dar cumprimento à garantia constitucional, com a conclusão definitiva do procedimento de demarcação das terras dos Avá-Canoeiro, “feriu sua própria cultura, em seu aspecto imaterial, uma vez que estão impedidas de exercer plenamente seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

11. Determinou-se na sentença que essa importância deveria ser utilizada para aquisição de outra terra, o que não deve ser prestigiado, porque a aquisição de terra depende do interesse de se vender, e manteria a mesma situação atualmente experimentada, de se estar em terra com a qual não se guarda relação de ancestralidade; ademais, tem a comunidade indígena a justa expectativa da demarcação das terras outrora ocupadas, conforme procedimento próprio no âmbito administrativo. Por essa razão, a indenização deve ser utilizada livremente pela comunidade indígena, conforme definirem suas lideranças, uma vez que o pedido indenizatório inicial não faz essa vinculação do valor à compra de terras, tampouco quanto ao emprego em programas sociais de auxílio aos membros da etnia, além de contrariar o disposto no art. 492 do CPC, que veda seja proferida decisão diversa da pedida, externada no princípio da congruência entre o pedido e a sentença, consoante bem consignado pelo Ministério Público Federal nas razões recursais: “uma vez concedida a reparação por dano moral coletivo, decorrente da desastrosa política indigenista imposta ao longo de décadas, não se mostra razoável tolher o arbítrio dos próprios beneficiários, no caso, os indígenas”. O exercício dos direitos civis e políticos conferidos aos indígenas é pleno, podendo invocar seus direitos e contrair obrigações independentemente de assistência ou tutela. Assim, podem e devem eles próprios, reparados em seu patrimônio imaterial agredido de maneira injustificável, gerir suas rendas, sendo salutar eventual auxílio da FUNAI, apenas exercido mediante concordância e consulta da própria comunidade.

12. Redução da indenização, a 2.000 (dois mil) salários mínimos, porque o grupo indígena está hoje reduzido a pouco mais de 2 (duas) dezenas de pessoas, conforme trecho do relatório produzido no processo administrativo de demarcação e que se encontra transcrito no voto, de modo que é razoável reduzir a indenização à metade do que fora pedido, eis que não terá por finalidade a aquisição de terras, mas ao uso livre pela comunidade.

13. Questões preliminares rejeitadas e pedido de assistência indeferido; no mérito, apelação da União e remessa oficial parcialmente providas; apelação do Ministério Público Federal provida.

Processo: 0002515-18.2012.4.01.4302

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