Por considerar válida a aferição das características dos candidatos em cota racial realizada quatro anos após a publicação do edital de um concurso público, a Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou o indeferimento da inscrição de uma candidata que já havia tomado posse como especialista em saúde na cidade de Santo Ângelo (RS).
O colegiado, por unanimidade, negou provimento ao recurso em mandado de segurança no qual a candidata alegava que a comissão de verificação não foi prevista no edital – o qual exigiria apenas a autodeclaração – e que a sua criação foi extemporânea, quase quatro anos após a abertura do concurso e já depois da homologação do resultado. Ela sustentou ter havido violação dos princípios da motivação, da vinculação ao edital e da segurança jurídica.
Autodeclaração não tem presunção absoluta de afrodescendência
Segundo os autos, a candidata foi a única aprovada para seu cargo nas vagas reservadas a negros e pardos, e a 35º colocada na lista geral. Quatro anos após a realização do concurso, ela tomou posse pelo regime de cotas, mas, a seguir, não foi reconhecida como negra pela comissão de verificação, porque não teria fenotipia afrodescendente.
O ministro Benedito Gonçalves, relator do recurso, afirmou que a autodeclaração não gera presunção absoluta de afrodescendência e, por isso, foi legítima a criação da comissão para aferir a veracidade das informações raciais prestadas pelos candidatos, “como forma de evitar fraudes e garantir maior efetividade à ação afirmativa”.
O magistrado destacou que, ao contrário do alegado pela recorrente, o edital do concurso, embora exigisse a autodeclaração racial, previu expressamente a possibilidade de designação posterior de comissão para averiguar a veracidade das declarações de pertencimento racial dos candidatos.
Jurisprudência admite avaliação complementar à autodeclaração
Quanto à alegação de extemporaneidade da comissão, o ministro registrou que, como ressaltado no acórdão de segunda instância, a sua designação depois da homologação do resultado final do concurso não representa ofensa aos princípios da legalidade, da eficiência e da motivação, uma vez que se compatibiliza com a efetividade das ações afirmativas.
Acerca da legalidade do procedimento a cargo da comissão verificadora, Benedito Gonçalves lembrou que tanto o STJ quanto o Supremo Tribunal Federal já reconheceram, em vários precedentes, que é legítima a utilização de critérios de heteroidentificação, além da autodeclaração do candidato.
O magistrado observou que, como registrou o tribunal de segunda instância ao negar o mandado de segurança, a decisão administrativa questionada pela candidata “contém motivação suficiente para indeferir o pedido da impetrante, na medida em que, submetida à análise de sua fenotipia, não foi constatada característica negra (preta ou parda)”.
Ao confirmar o acórdão, o relator registrou que não se vislumbra o direito líquido e certo da candidata a concorrer às vagas reservadas a pessoas negras, pois a comissão avaliadora, além de estar respaldada no edital, observou o devido processo legal e motivou a decisão que indeferiu a sua inscrição como cotista.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCURSO PÚBLICO. SECRETARIA ESTADUAL DE SAÚDE. SISTEMA DE COTAS. AUTODECLARAÇÃO. CONSTITUIÇÃO POSTERIOR DE COMISSÃO PARA A AVALIAÇÃO DO PERTENCIMENTO RACIAL DOS CANDIDATOS. EXPRESSA PREVISÃO EDITALÍCIA. INDEFERIMENTO DA INSCRIÇÃO PARA CONCORRER ÀS VAGAS DESTINADAS AOS NEGROS E PARDOS. DECISÃO FUNDAMENTADA. LEGALIDADE DO ATO. AUSÊNCIA DE DIREITO LÍQUIDO E CERTO.
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Os autos são oriundo de mandado de segurança impetrado contra ato que negou provimento a recurso administrativo e indeferiu inscrição nas vagas destinadas as pessoas negras, em concurso para o cargo de Especialista em Saúde (Edital n. 01/2013), na cidade de Santo Ângelo/RS, retornando a candidata à classificação geral originária.
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Na presente insurgência, a recorrente aduz a falta de previsibilidade em edital acerca da criação de comissão, a constituição extemporânea desse órgão administrativo e a violação dos princípios da motivação, vinculação ao edital e segurança jurídica.
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Ocorre que, examinando os autos, é possível notar que o edital do certame do qual participou a impetrante, embora tenha exigido a autodeclaração racial como requisito para a disputa das vagas por cotas (item 3.3.5 e 4.1.5), previu, também, expressamente a possibilidade de designação posterior de Comissão de Verificação, para averiguar a veracidade do conteúdo de tais declarações e o pertencimento racial dos candidatos (item 4.1.6). Além disso, consignou a forma de avaliação técnica e/ou documental da condição dos candidatos e as consequências para o caso de detecção de declarações falsas (item 4.7.1).
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Além disso, as jurisprudências do STJ e STF são pacíficas no sentido da legalidade/constitucionalidade de tal etapa de verificação posterior de veracidade, para evitar fraudes e garantir maior efetividade à ação afirmativa. Precedentes: ADC 41, Rel. Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJ 07.05.2018; AgInt no RMS 61.406/MS, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, DJe 18/12/2020; MS 24.589/DF, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Corte Especial, DJe 25/11/2020.
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Assim, não tendo sido demonstradas ilegalidade e arbitrariedade por parte da autoridade coatora, conclui-se pela inexistência de direito líquido e certo a ser assegurado por meio deste writ, sendo certo que a decisão administrativa atacada, como bem assentou o acórdão de origem, “apesar de sucinta, contém motivação suficiente para indeferir o pedido da impetrante, na medida em que, submetida à análise de sua fenotipia, não foi constatada característica negra (preta ou parda)” (fls. 335).
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Recurso em mandado de segurança não provido.