A 4ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina manteve sentença da comarca de Tangará que negou indenização por danos morais em favor de familiares de um detento que morreu quando cumpria pena na Unidade Prisional Avançada de Videira, em março de 2017. Os pais da vítima, que contava 24 anos na época, pediam R$ 100 mil e pensão mensal. Para tanto, sustentavam omissão do Estado em seu dever de resguardar a integridade física do preso, que era portador do vírus HIV.
O Estado comprovou, no entanto, que o recluso seguia rotina normal dentro do estabelecimento e desenvolvia inclusive atividade externa em entidade conveniada, desde setembro de 2016. O encarregado da empresa, ouvido em juízo, garantiu que nos cinco meses em que o reeducando desenvolveu atividades naquele estabelecimento nunca informou que era portador de HIV ou de qualquer outra moléstia de igual gravidade, assim como realizou seus trabalhos de forma regular, sem ausências injustificadas ou justificadas por motivo de saúde.
Somente próximo ao carnaval de 2017, conforme a ficha do detento, houve queixa de dores de garganta que não cessaram mesmo após o uso de analgésico. Mantido o estado de indisposição, ele foi encaminhado para consulta médica e realizou exames, que então apontaram a presença do HIV e complicações dele derivadas. O próprio reeducando demonstrou surpresa com o diagnóstico. Internado, não resistiu e morreu passados poucos dias.
“Não procede a alegação no sentido de que não teria sido prestado atendimento médico e os demais cuidados necessários, bem como inexiste comprovação de que, no curto período que separa a prescrição médica (…) da realização dos exames, o recluso estivesse em estado crítico, com fortes dores, e clamando por novo atendimento imediato, como afirma a requerente, o que torna aceitável o intervalo de tempo em que se cumpriram as providências relativas à assistência à saúde”, registrou a desembargadora Vera Copetti, relatora da matéria cujo trânsito em julgado ocorreu no final do último mês de julho. A decisão foi unânime.
O recurso ficou assim ementado:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS C/C PEDIDO DE PENSÃO MENSAL.IMPROCEDÊNCIA NA ORIGEM. MORTE DE DETENTO EM ESTABELECIMENTO PRISIONAL.OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO DE ZELAR PELA INTEGRIDADE FÍSICA E MORAL DOS PRESOS. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO (ART. 37, § 6º, DA CF). ÓBITO DECORRENTE DE COMPLICAÇÕES DA SÍNDROME DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA (AIDS). CONJUNTO PROBATÓRIO DO QUAL EXSURGE QUE, DIANTE DA APRESENTAÇÃO DE FORTES DORES NA GARGANTA E QUADRO DE INDISPOSIÇÃO, A VÍTIMA FOI LEVADA PARA ATENDIMENTO MÉDICO, COM A REALIZAÇÃO DE EXAMES,QUANDO SOBREVEIO O DIAGNÓSTICO POSITIVO DE HIV, RECEBIDO COM SURPRESA PELO PRÓPRIO APENADO QUE,ATÉ ENTÃO,VINHA CUMPRINDO SUA ROTINA NORMALMENTE, DENTRO DO ERGÁSTULO E, TAMBÉM,PRESTANDO SERVIÇO EXTERNO EM EMPRESA CONVENIADA. INÍCIO DO TRATAMENTO,INCLUSIVE COM INTERNAÇÃO HOSPITALAR, QUE, CONTUDO, NÃO FOI SUFICIENTE PARA A PRESERVAÇÃO DA VIDA DO ENFERMO DIANTE DA EVOLUÇÃO SILENCIOSA DA DOENÇA. AUSÊNCIA DE SINTOMAS CARACTERÍSTICOS OU QUALQUER QUEIXA ANTERIOR QUE PUDESSE DESPERTAR A ATENÇÃO PARA A NECESSIDADE DE ADOÇÃO DE OUTRAS PROVIDÊNCIAS ALÉM DAQUELAS ADOTADAS PELA UNIDADE PRISIONAL, POR SEUS AGENTES PÚBLICOS.ASSISTÊNCIA À SAÚDE GARANTIDA (ART. 14 DA LEI N. 7.210/1984). RESULTADO MORTE QUE NÃO PODE SER ATRIBUÍDO À OMISSÃO DO ESTADO QUANTO AO DEVER ESPECÍFICO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O ART. 5º, XLIX, DA CF/88, EXERCIDO DENTRO DO POSSÍVEL E ESPERADO ANTE AS CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO. NEXO DE CAUSALIDADE NÃO CONFIGURADO. REPARAÇÃO INDEVIDA. TEMA N. 592 DO STF.SENTENÇA MANTIDA.HONORÁRIOS RECURSAIS DEVIDOS. INCIDÊNCIA DO ART. 85, § 11, DO CPC/15.”O disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal,refere-se à responsabilidade objetiva do ente público pela ocorrência de atos comissivos que causem prejuízo a terceiros. No entanto, a doutrina e a jurisprudência têm firmado o posicionamento de que havendo conduta omissiva específica, a responsabilidade igualmente será objetiva. Em que pese o dever do Poder Público de preservação da integridade física do detento que está sob sua custódia, ‘nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade,afastando-se a responsabilidade do Poder Público’ (STF,Recurso Extraordinário n. 841.526/RS, rel. Min. Luiz Fux, j. 30-3-2016).[…]” (TJSC,Apelação Cível n. 0001031-37.2012.8.24.0084, de Descanso, rel. Des. Odson Cardoso Filho, Quarta Câmara de Direito Público, j. 09-03-2017).RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS RECURSAIS.
O RE 841526 ficou assim ementado:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO POR MORTE DE DETENTO. ARTIGOS 5º, XLIX, E 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
1. A responsabilidade civil estatal, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, § 6º, subsume-se à teoria do risco administrativo, tanto para as condutas estatais comissivas quanto paras as omissivas, posto rejeitada a teoria do risco integral.
2. A omissão do Estado reclama nexo de causalidade em relação ao dano sofrido pela vítima nos casos em que o Poder Público ostenta o dever legal e a efetiva possibilidade de agir para impedir o resultado danoso.
3. É dever do Estado e direito subjetivo do preso que a execução da pena se dê de forma humanizada, garantindo-se os direitos fundamentais do detento, e o de ter preservada a sua incolumidade física e moral (artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal).
4. O dever constitucional de proteção ao detento somente se considera violado quando possível a atuação estatal no sentido de garantir os seus direitos fundamentais, pressuposto inafastável para a configuração da responsabilidade civil objetiva estatal, na forma do artigo 37, § 6º, da Constituição Federal.
5. Ad impossibilia nemo tenetur, por isso que nos casos em que não é possível ao Estado agir para evitar a morte do detento (que ocorreria mesmo que o preso estivesse em liberdade), rompe-se o nexo de causalidade, afastando-se a responsabilidade do Poder Público, sob pena de adotar-se contra legem e a opinio doctorum a teoria do risco integral, ao arrepio do texto constitucional.
6. A morte do detento pode ocorrer por várias causas, como, v. g., homicídio, suicídio, acidente ou morte natural, sendo que nem sempre será possível ao Estado evitá-la, por mais que adote as precauções exigíveis.
7. A responsabilidade civil estatal resta conjurada nas hipóteses em que o Poder Público comprova causa impeditiva da sua atuação protetiva do detento, rompendo o nexo de causalidade da sua omissão com o resultado danoso.
8. Repercussão geral constitucional que assenta a tese de que: em caso de inobservância do seu dever específico de proteção previsto no artigo 5º, inciso XLIX, da Constituição Federal, o Estado é responsável pela morte do detento.
9. In casu, o tribunal a quo assentou que inocorreu a comprovação do suicídio do detento, nem outra causa capaz de romper o nexo de causalidade da sua omissão com o óbito ocorrido, restando escorreita a decisão impositiva de responsabilidade civil estatal.
10. Recurso extraordinário DESPROVIDO.
Apelação Cível n. 0300522-96.2017.8.24.0071