Devedor não tem direito de preferência para adquirir título da própria dívida em leilão de carteira de crédito

A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou a pretensão de uma empresa, emitente de cédula de crédito bancário com garantia fiduciária imobiliária, que reivindicava suposto direito de preferência para adquirir o título da dívida em leilão, após a falência do banco credor.

O colegiado considerou que a legislação atribui ao devedor fiduciante o direito de preferência para a recompra do bem alienado fiduciariamente, mas essa norma não se aplica aos casos de alienação de carteira de créditos.

Na origem do caso, a empresa emitiu o título de crédito representando empréstimo que tinha como garantia a alienação fiduciária de um imóvel. Com a decretação da quebra do banco, precedida de liquidação extrajudicial, os ativos da instituição – entre eles, a carteira de créditos – foram utilizados para pagar os credores.

A empresa e seus avalistas alegaram ter preferência para adquirir o título representativo de sua dívida no leilão da carteira de créditos, como forma de extinguir a obrigação, mas o juízo de primeira instância e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) entenderam que não existe essa previsão legal em favor de devedor com débito levado a leilão em processo concursal. A corte estadual apontou que a homologação judicial do resultado do leilão foi regular, devendo prevalecer o interesse da maioria dos credores.

Preferência para recompra de bem não se estende ao leilão da carteira de créditos

No recurso ao STJ, a devedora e os avalistas reiteraram que, em razão da alienação fiduciária do imóvel, eles deveriam ter preferência para comprar o direito creditício no leilão.

De acordo com o relator, ministro Antonio Carlos Ferreira, o devedor fiduciante tem preferência para recomprar um bem que tenha perdido por não cumprir a obrigação relacionada à garantia fiduciária, como previsto no artigo 27, parágrafo 2º-B, da Lei 9.514/1997. No entanto, o magistrado destacou que a situação discutida é diferente, pois diz respeito à alienação de carteira de crédito da qual consta o valor representado pela cédula de crédito bancário.

“O que se defere ao devedor fiduciante é a preferência na aquisição do bem que lhe pertencia, ao passo que, no caso presente, pretende-se a aquisição do próprio crédito, da relação jurídica obrigacional, que possui garantia representada pela alienação fiduciária de bem imóvel”, explicou o ministro.

Não há analogia com hipótese de penhora de bem indivisível

Antonio Carlos Ferreira refutou a tese dos recorrentes de que seria possível aplicar ao caso, por analogia, a regra prevista no artigo 843 do Código de Processo Civil (CPC) e em seus parágrafos, os quais estabelecem a preferência para arrematação em favor do coproprietário ou do cônjuge do executado, na hipótese de penhora de bem indivisível – uma forma de evitar a dificuldade de alienação apenas da parte do devedor e a constituição forçada de condomínio entre o arrematante e o coproprietário ou o cônjuge.

Para o ministro, a situação descrita no CPC não se aplica ao processo em discussão, pois a garantia fiduciária não representa nenhuma forma de copropriedade: “No leilão realizado, o que ocorreu foi a transferência do crédito garantido e representado pela cédula de crédito bancário, inexistindo similitude que atraia a incidência da regra que garante o direito de preferência”.

O relator avaliou que não cabe a analogia para reconhecer o direito de preferência dos emitentes da cédula. Ele salientou que a regra, em casos como o dos autos, é a alienação de bens ou direitos em hasta pública para qualquer interessado. “Não houve de fato omissão regulamentadora, senão a intenção legislativa de manter a regra geral nessas situações”, concluiu.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E EMPRESARIAL. CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO GARANTIDA POR ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL DA EMITENTE. FALÊNCIA DO BANCO BENEFICIÁRIO. REALIZAÇÃO DO ATIVO. VENDA DA CARTEIRA DE CRÉDITO. PREFERÊNCIA DO EMITENTE DA CÉDULA NA AQUISIÇÃO DO CRÉDITO. INEXISTÊNCIA. ART. 843 DO CPC/2015. ANALOGIA. SITUAÇÃO FÁTICA DISTINTA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
1. A cédula de crédito bancário é título lastreado em operação de crédito na qual a instituição financeira figura como credora – operação bancária ativa -, podendo ser constituídas garantias reais ou cambiais, que obedecerão à disciplina legal específica.
2. No caso em questão, a cédula de crédito bancário tem como lastro relação obrigacional consistente em mútuo feneratício, tendo sido constituída alienação fiduciária em garantia de bem imóvel de propriedade da emitente do título.
3. Decretação da falência do banco beneficiário, precedida de liquidação extrajudicial, em cujo procedimento foi realizada a alienação em hasta pública da carteira de crédito da instituição financeira. Pretensão dos recorrentes, emitentes e avalistas da cédula de crédito bancário, do reconhecimento do direito de preferência na aquisição de seu crédito para ver extinta a obrigação pela confusão.
4. Direito de preferência é aquele que confere a seu titular o exercício de determinada prerrogativa ou vantagem em caráter preferencial, quando em concorrência com terceiros. Tal prerrogativa pode decorrer de lei, quando o legislador elege determinadas circunstâncias fáticas ou jurídicas que justificam que determinada pessoa pratique um ato ou entabule um negócio jurídico de forma prioritária ou precedente, ou ainda pode ter origem contratual, desde que não interfira na posição de terceiros estranhos à relação jurídica, a quem a própria lei confira posição de vantagem.
5. O legislador confere ao devedor fiduciante o direito de preferência na reaquisição do bem que já lhe pertencia, cuja privação decorra do inadimplemento de obrigação à qual se vinculava por garantia fiduciária, nos termos do art. 27, § 2º-B, da Lei n. 9.514/1997. No caso, contudo, trata-se de alienação da carteira de crédito, em que foi incluído o crédito representado pela cédula de crédito bancário emitida em benefício da instituição financeira.
6. O art. 843 do CPC/2015 estabelece que, na hipótese de penhora de bem indivisível, há preferência do coproprietário ou cônjuge executado em sua arrematação. Com isso, possibilita-se a penhora da integralidade do bem, ainda que o executado seja proprietário de uma fração ou quota-parte, evitando-se, a um só tempo, a dificuldade de alienação da parte do devedor e a constituição forçada de condomínio entre o adquirente e o cônjuge ou coproprietário.
7. Ausência de semelhança fática que autorize a aplicação da analogia para reconhecer o direito de preferência dos emitentes da cédula.
8. Para o recurso à autointegração do sistema pela analogia, faz-se necessário que se estenda, a uma hipótese não regulamentada, a disciplina legalmente prevista para um caso semelhante. Essa forma de expansão regulatória, portanto, depende de similitude fática significativa entre o caso em referência e seu paradigma.
9. A regra prevista pelo ordenamento em tais casos é a alienação dos bens ou direitos em hasta pública para qualquer interessado que atenda aos editais de chamamento, orientando-se a disciplina processual civil nesse sentido. Ao não ser atribuída uma prerrogativa adicional aos emitentes de cédula de crédito bancário com garantia representada por alienação fiduciária de bem imóvel, conclui-se que não houve de fato omissão regulamentadora, senão a intenção legislativa de manter a regra geral nessas situações.
10. Direito de preferência do emitente da cédula de crédito bancário inexistente. Recurso especial não provido.

Leia o acórdão no REsp 2.035.515.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 2035515

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