Apesar de ter nos sistemas terrestres seu principal meio para o transporte de cargas – somados, os modais rodoviário e ferroviário compreendem 80% do total transportado –, o Brasil também conta com as vias aéreas e aquáticas para movimentar parte considerável de seus produtos e insumos. Segundo o Plano Nacional de Logística, o transporte aquaviário compreende 16% do total dos deslocamentos de carga no país.
Já o transporte aéreo, embora ainda represente uma pequena fatia do bolo, apresentou crescimento de 23% da carga paga transportada entre 2008 e 2017, segundo informações do Anuário do Transporte Aéreo. Apenas em 2017, foram 1,2 milhão de toneladas transportadas pelos aviões, considerando voos domésticos e internacionais.
Tanto quanto os meios terrestres, os outros modais apresentam riscos, como a possibilidade de deterioração das cargas e acidentes com aeronaves ou embarcações – o que frequentemente gera conflitos entre as partes envolvidas no negócio. E, mais uma vez, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é chamado a decidir sobre os limites da responsabilização, os prazos máximos para a propositura de ações e outros temas que exijam a interpretação da legislação federal.
Nesta segunda parte da reportagem especial sobre as decisões do STJ que impactam o transporte de cargas, são apresentados importantes julgamentos sobre litígios nos setores aéreo e aquático, nos quais foram abordados temas controversos, como a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) aos contratos e a tributação de serviços acessórios ao frete.
Convenção de Montreal
No transporte aéreo internacional, uma das principais regras a serem observadas é a Convenção de Montreal, celebrada no Canadá em 1999 e aprovada pelo Congresso brasileiro em 2006. O tratado estabelece normas de responsabilidade para o transporte de cargas, bagagens e passageiros, com definição de limites de responsabilização e regras para o processamento das possíveis indenizações.
Em 2018, ao julgar o REsp 1.615.981, a Terceira Turma decidiu que a Convenção de Montreal deve ser aplicada ao transporte aéreo internacional de cargas enquanto os produtos permanecerem sob custódia da transportadora, ainda que após o descarregamento em aeroporto brasileiro.
Nesses casos, não se aplicam os dispositivos do Código Civil ou do CDC para resolver eventuais pedidos indenizatórios decorrentes de ilícito contratual praticado pela transportadora, mesmo que o produto já esteja na zona aduaneira.
O caso analisado pela turma teve origem em ação de indenização proposta por uma cliente após o atraso na liberação da carga transportada dos Estados Unidos para o Brasil. A carga chegou ao país em 2007, e o processo foi proposto em 2010, fora do prazo de dois anos previsto na Convenção de Montreal para o ajuizamento da ação.
No entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) determinou o prosseguimento da ação considerando que a relação contratual coberta pela convenção teria se encerrado com o descarregamento dos bens. Dessa forma, o TJSP aplicou o prazo prescricional do artigo 206 do Código Civil, que é de três anos.
No STJ, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino afirmou que o contrato de transporte aéreo internacional não se encerra com a descarga da mercadoria no aeroporto de destino, estando incluído na definição do transporte todo o período em que a carga fica sob custódia do transportador, conforme orientação do artigo 18 da Convenção de Montreal.
“Logo, não basta o simples descarregamento da aeronave para se encerrar o contrato de transporte, sendo necessário, ainda, que a carga seja recebida por quem de direito no aeroporto, para, só então, sair da custódia da transportadora, encerrando a execução do contrato de transporte”, afirmou o ministro.
Além de entender que o dano foi causado à cliente ainda durante a execução do contrato de transporte internacional – o que atrai a incidência da Convenção de Montreal –, Sanseverino destacou precedente do Supremo Tribunal Federal em que se decidiu pela prevalência do tratado internacional sobre o CDC em relação à responsabilidade civil por danos materiais decorrentes do extravio de bagagem (Tema 210).
Explosão de navio
No comércio internacional, o Brasil tem no modal aquaviário o principal meio para o transporte de cargas. Dados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) revelam que, em 2018, os portos brasileiros movimentaram mais de 1 bilhão de toneladas de produtos. Entre as principais mercadorias transportadas pela água estão minério de ferro, combustíveis e contêineres. Em termos de movimentação, estão no topo dos portos públicos os terminais de Santos (SP), Itaguaí (RJ) e Paranaguá (PR).
Questões que envolvem o transporte e o armazenamento de produtos transportados por meios aquáticos costumam ser objeto de análise pelo STJ. Em 2004, em uma operação de descarga no Porto de Paranaguá, o navio chileno Vicuña explodiu, causando a morte de quatro tripulantes, além de avarias nas instalações do terminal e contaminação do mar por óleo combustível da embarcação e por parte da sua carga (metanol). A carga do navio-tanque chileno tinha três empresas brasileiras como destinatárias.
Os danos ambientais causados pela explosão do navio comprometeram a pesca nas Baías de Paranaguá, Antonina e Guaraqueçaba por cerca de dois meses. Impedidos de trabalhar, vários pescadores ajuizaram ações de indenização.
Por meio de recurso repetitivo – mecanismo previsto no Código de Processo Civil para o julgamento de demandas de massa –, a Segunda Seção analisou se as empresas compradoras deveriam responder pela reparação de danos aos pescadores (Tema 957).
Em segunda instância, a Justiça do Paraná havia concluído pela responsabilidade objetiva dos compradores, tendo entendido que o nexo de causalidade estaria comprovado em virtude do risco indiretamente assumido pelas proprietárias da carga poluente.
No julgamento do repetitivo (REsp 1.602.106), o ministro relator, Villas Bôas Cueva, citou jurisprudência do STJ no sentido de que, embora a responsabilidade por dano ambiental seja objetiva, para a configuração do dever de indenizar é preciso demonstrar o nexo causal.
Segundo o ministro, no caso dos autos, não seria possível vincular o alegado prejuízo dos pescadores à conduta das empresas, que apenas compraram a carga que era transportada pelo Vicuña. O ministro lembrou que o inquérito instaurado para investigar as causas do acidente apontou como responsáveis diretos a proprietária do navio e o terminal portuário.
Além disso, o relator disse que o laudo pericial confirmou que a proibição da pesca na região resultou do derramamento do óleo da embarcação, e não do metanol.
Carga deteriorada
Ainda no âmbito do transporte aquaviário, em 2016, a Quarta Turma examinou pedido de ressarcimento formulado por uma seguradora em virtude da deterioração de mercadorias congeladas estocadas em contêineres no Porto de Paranaguá.
A seguradora alegou que firmou contrato com uma empresa de alimentos para cobrir o transporte de mais de 2 mil caixas de frango destinadas à exportação. Por causa de uma falha no sistema de refrigeração do contêiner, os frangos foram considerados impróprios para consumo humano pelo Serviço de Inspeção Federal. Os prejuízos, de quase R$ 50 mil, foram indenizados pela seguradora à empresa de alimentos.
O juiz de primeiro grau julgou procedente o pedido da seguradora, condenando a administradora do porto e a proprietária do contêiner a ressarcirem o valor da carga deteriorada, em sentença mantida pelo Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). No STJ, os ministros analisaram apenas o prazo prescricional da ação indenizatória.
O relator do recurso da administradora portuária, ministro Luis Felipe Salomão, destacou inicialmente que o artigo 8º do Decreto-Lei 116/1967 (que dispõe sobre as operações nos portos brasileiros) prevê que prescrevem em um ano as ações por perdas ou danos à carga.
Segundo o ministro, o prazo do decreto guarda relação com a sistemática posteriormente adotada pelo Código Civil de 2002, que prestigiou a segurança jurídica e reduziu os prazos prescricionais em comparação com o código anterior, de 1916.
“Nessa linha de raciocínio, faz sentido a aplicação do prazo ânuo previsto no diploma de 1967 às demandas relativas à avaria da carga destinada à exportação por navios, posto tratar-se de regramento específico que subsiste no ordenamento jurídico e que disciplina de forma direta o pacto em exame”, apontou o ministro.
Em seu voto, Salomão também ressaltou que, nas ações de indenização por avarias à carga, o prazo de prescrição é contado sempre a partir do momento da lesão ao direito. No caso dos autos, esse momento é a data em que a empresa de alimentos teve ciência da infração dos deveres de armazenamento da carga, em fevereiro de 2005. Como a ação foi proposta pela seguradora apenas em novembro de 2006, a Quarta Turma considerou prescrita a pretensão indenizatória e julgou extinta a ação (REsp 1.278.722).
Grande parte do fluxo do transporte de cargas no país tem como destino final a exportação. Em 2016, o STJ analisou um pedido para estender a isenção de PIS e Cofins a serviços conexos ao frete, nas hipóteses de exportação (REsp 1.577.126).
A empresa recorrente, que prestava serviços conexos ao frete, teve o pedido de isenção rejeitado em primeira e segunda instâncias.
O acórdão de segunda instância se posicionou pela incidência do PIS e da Cofins sobre as receitas auferidas com os serviços relativos ao frete (que não o frete em si) contratados por empresas comerciais exportadoras (trading companies) nas operações de exportação.
No recurso especial, a empresa afirmou que atua em serviços relativos ao frete, tais como coleta de mercadorias, carregamento em contêiner, retirada, armazenagem, etiquetagem, entre outros serviços acessórios.
Segundo a empresa, os serviços relativos ao frete realizados para empresas comerciais exportadoras fazem parte de uma única operação de exportação. Com a extensão da isenção, a política de não exportação de tributos permaneceria intacta.
Distinção de serviços
Para o ministro Mauro Campbell Marques, porém, não é possível estender a essas empresas o benefício concedido às exportadoras.
“As receitas decorrentes da prestação de serviços conexos ao de frete e dele apartados não são receitas de exportação de mercadorias ao exterior, pois o que está sendo vendido pela empresa transportadora que pleiteia o benefício isencional é o serviço conexo ao de frete, e não a mercadoria em si”, explicou o relator.
Ele destacou que o serviço conexo ao de frete está sendo vendido para empresa que atua no mercado interno, e não para o exterior: “Não há, portanto, receita decorrente de operação de exportação de mercadorias para o exterior”.
“Seria absurda a ideia de se presumir que os referidos artigos de lei traduzam uma isenção genérica para toda prestação de serviços que ocorre internamente em uma cadeia de exportação”, concluiu o ministro.
CDC
Nos debates judiciais relacionados ao sistema de transporte de cargas, um dos pontos mais controvertidos é a possibilidade de caracterizar como consumidor alguma das partes envolvidas na relação comercial. A definição é importante porque, caso se entenda que o Código de Defesa do Consumidor é aplicável ao litígio, alteram-se pontos fundamentais, como prazos prescricionais e limites de responsabilização.
Por exemplo, no transporte de bens entre duas empresas, em que o contrato é necessário para a execução de atividade-meio na cadeia de produção, não se configura relação de consumo, mesmo que, isoladamente, uma das partes contratantes seja destinatária do bem ou serviço.
O entendimento da Terceira Turma foi fixado ao afastar a aplicação do CDC a contrato entre duas empresas, firmado para o transporte rodoviário de uvas entre o Chile e o Brasil. Segundo a empresa de importação, no momento da descarga, as frutas estavam em elevado grau de maturação por causa da temperatura inadequada no trajeto. Por isso, a importadora alegou que não conseguiu vender as uvas no mercado interno.
Em primeira instância, a empresa de transporte foi condenada a restituir o valor da carga, além de pagar cerca de R$ 21 mil a título de lucros cessantes pelos prejuízos causados à importadora. Na sentença, o juiz considerou o prazo prescricional de cinco anos previsto pelo artigo 27 do CDC.
Entretanto, o TJSP decidiu que o código não poderia ser aplicado à ação e, portanto, levou em consideração o prazo prescricional de um ano previsto no artigo 18 da Lei 11.442/2007 (que dispõe sobre o transporte rodoviário de cargas por terceiros). Como o sinistro ocorreu em abril de 2012 e a ação indenizatória foi distribuída apenas em julho de 2013, a corte paulista reconheceu a prescrição.
Em recurso especial, a importadora afirmou que, apesar de não ser a destinatária final da carga, era a última destinatária dos serviços de transporte, o que a caracterizaria como consumidora e justificaria o prazo de prescrição de cinco anos previsto pelo CDC.
A ministra Nancy Andrighi destacou que, em caso análogo relativo ao transporte aéreo de cargas, a Terceira Turma concluiu que a pessoa jurídica que o contrata não é a última destinatária do serviço quando transfere seu custo para o preço final da mercadoria transportada, realizando uma espécie de “consumo intermediário”.
Segundo a ministra, se o vínculo contratual entre as partes é necessário para a atividade empresarial (operação de meio) – movida pelo objetivo de lucro –, não é possível falar em relação de consumo, ainda que, no plano restrito do acordo, uma delas seja destinatária fática do bem.
“Revela-se pertinente a premissa em que se baseia o acórdão recorrido para afastar a configuração da relação de consumo, pois a recorrente não pode ser considerada destinatária final – no sentido fático e econômico – do serviço de transporte rodoviário de cargas. Vale dizer que o mencionado serviço é utilizado para propriamente viabilizar a sua atividade comercial, configurando inegável consumo intermediário (operação de meio)”, concluiu a ministra ao manter o prazo prescricional de um ano da Lei 11.442/2007 (REsp 1.669.638).
Insumos
No REsp 1.442.674, originário de ação que discutia contrato de transporte internacional de insumos para a indústria brasileira de autopeças, a Terceira Turma também afastou a aplicação do CDC.
As peças automotivas deveriam ser transportadas por via aérea entre Xangai, na China, e Curitiba. Contudo, no trajeto, as mercadorias sumiram. O TJPR julgou o pedido de indenização aplicando as normas do CDC, por concluir que o contrato de transporte era diferente do contrato principal, de compra das peças.
O relator do recurso especial, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, apontou que a condição de destinatário final de um bem ou serviço constitui a principal limitação estabelecida pela legislação para a fixação do conceito de consumidor e para a própria incidência do CDC. O ministro lembrou que é considerado destinatário final aquele que, no ato de consumir, retira o bem do mercado.
No caso dos autos, Sanseverino destacou que não poderia ser flexibilizada essa interpretação, já que a empresa importadora nem sequer alegou a sua vulnerabilidade perante a empresa chinesa de exportação e não poderia ser caracterizada como destinatária final do serviço.
“Uma vez que a carga transportada é insumo, o contrato celebrado para o transporte desse insumo fica vinculado a essa destinação, não havendo necessidade de se perquirir acerca da destinação econômica do serviço de transporte”, concluiu o ministro ao afastar a aplicação do CDC.