A logística está presente em todas as etapas do processo de produção de bens. Após a fabricação, a empresa tem de contratar outra para fazer o transporte, o que envolve relacionamento com motoristas, pagamento de vale-pedágio, cálculo de impostos, definição da quantidade de carga a ser transportada e outras decisões.
Toda essa atividade gera números impressionantes: o Brasil transporta anualmente 2,4 bilhões de Toneladas por Quilômetro Útil (TKU). A unidade utilizada pelo setor para medir a movimentação de cargas mensura o esforço físico, multiplicando a tonelagem transportada pela distância percorrida.
Mas o melhor indicativo da relevância do setor está no seu impacto para a economia nacional: crescimento de 2,2% em 2018 – o dobro do registrado pelo país –, chegando a R$ 256 bilhões, ou 3,75% do PIB, segundo dados da Confederação Nacional do Transporte (CNT).
Em cada etapa desse processo há leis específicas a serem aplicadas, e não raramente os agentes em conflito buscam uma resposta do Judiciário. Nesse contexto, a atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é determinante para o bom funcionamento do setor.
Segundo o presidente da Associação Brasileira de Logística e Transporte de Cargas (ABTC), Pedro Lopes, a contribuição do Judiciário tem sido fundamental.
“Sem dúvida, nesta última década, as decisões dos tribunais superiores foram de grande importância para o setor do transporte rodoviário de carga. Essas decisões atenderam o reclamo do setor transportador em várias teses, especialmente tributárias”, afirmou o presidente da ABTC.
Ele destacou que, além das decisões em processos diretamente relacionados a interesses específicos dos transportadores, a atuação do STJ em alguns assuntos de maior abrangência tem gerado efeitos relevantes para o setor, como, por exemplo, no recente julgamento do Tema 994 dos recursos repetitivos, quando a Primeira Seção fixou a tese de que “os valores de ICMS não integram a base de cálculo da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB)”, prevista na Lei 12.546/2011.
No campo da logística, 65% da movimentação de mercadorias e 95% da movimentação de passageiros acontecem por estradas. Entre os modais, há uma preponderância do terrestre via caminhão para o transporte de cargas e ônibus para o de passageiros.
De acordo com o Plano Nacional de Logística (PNL 2025), os custos com a logística dos transportes terrestres alcançam 11,7% do faturamento das empresas. É um setor vital para a economia – e pauta corriqueira no Judiciário.
Na primeira parte desta reportagem, são apresentadas algumas decisões do STJ que estabeleceram importantes precedentes para o transporte rodoviário de cargas.
Excesso de peso
Um dos problemas mais comuns enfrentados pelo motorista nas estradas são os buracos. Em grande parte, a deterioração do asfalto é causada pelo excesso de peso dos próprios caminhões.
Em 2017, ao analisar o REsp 1.574.350, a Segunda Turma decidiu que a previsão de multa no artigo 231 do Código de Trânsito Brasileiro (CTB) não impede as transportadoras de serem condenadas, em ação civil pública, a pagar indenização por danos materiais e morais coletivos decorrentes de abuso nos limites de carga.
A turma deu provimento ao recurso do Ministério Público Federal (MPF) para determinar que as instâncias ordinárias fixassem os valores da indenização, bem como para possibilitar a aplicação de multa de R$ 50 mil toda vez que um caminhão da empresa ré fosse flagrado novamente transportando cargas em excesso.
Segundo os autos de infração da Polícia Rodoviária Federal, a transportadora foi autuada 85 vezes em dez anos. O MPF notificou a empresa e buscou firmar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), porém sem sucesso. A empresa alegou que, se aceitasse o TAC, ficaria em desvantagem frente às concorrentes.
O relator do caso, ministro Herman Benjamin, disse que, para a empresa, a lucratividade com o excesso de peso compensa eventual pagamento da multa administrativa prevista no CTB – infração média cuja punição é de R$ 130,16, mais a adição de até R$ 53,20 se o excesso de carga for superior a cinco toneladas. Para o ministro, tal cenário “só comprova a absoluta incapacidade da sanção para reprimir e desencorajar a conduta legalmente vedada”.
De acordo com o relator, não há bis in idem, ou seja, não há dupla condenação pelo mesmo fato ao se permitir a aplicação de sanções no âmbito da ação civil pública, porque a multa prevista no CTB é apenas uma das punições possíveis.
O ministro explicou que as multas administrativa e civil são independentes entre si, uma vez que a administrativa destina-se a punir atos já praticados, “enquanto a multa civil imposta pelo magistrado projeta-se, em um de seus matizes, para o futuro, de modo a assegurar a coercitividade e o cumprimento de obrigações de fazer e de não fazer, legal ou judicialmente estabelecidas”.
Herman Benjamin disse que o nanismo e a leniência da pena administrativa “debocham do Estado de Direito”, desacreditando o “festejado império da lei”. Ele afirmou que a ganância da transportadora ré da ação civil pública espelha uma cultura de licenciosidade infracional, que transforma a ilegalidade em prática rotineira e hábito empresarial.
O ministro destacou que o Brasil tem um dos trânsitos mais violentos do mundo, e estima-se que 43% dos acidentes nas estradas federais terminem com mortos ou feridos, totalizando uma morte para cada dez quilômetros de rodovia e 234 para cada milhão de habitantes.
Entendimento ratificado
Recentemente, ao julgar o AREsp 1.137.714, os ministros da Segunda Turma ratificaram aquele entendimento. Coube ao ministro Francisco Falcão, relator, enfatizar a independência entre as instâncias administrativa e judicial para justificar a possibilidade de uma ação civil pública como meio de coibir o excesso de peso nas estradas.
Também nesse caso, acolhendo a proposta do MPF para desestimular a conduta indesejada, os ministros consideraram razoável a multa de R$ 50 mil para cada veículo de carga da empresa ré que fosse flagrado transitando com excesso de peso.
O ministro Francisco Falcão lembrou que a sanção administrativa não esgota o rol de respostas persuasivas, dissuasórias e punitivas do ordenamento jurídico no esforço de reparar e reprimir infrações.
“A admissibilidade de cumulação de multa administrativa e de multa civil integra o próprio tecido jurídico do Estado Social de Direito brasileiro, inseparável de um dos seus atributos básicos, o imperativo categórico e absoluto de eficácia de direitos e deveres” – resumiu o ministro ao justificar a fixação da multa civil pretendida pelo MPF.
Eixo suspenso
Com o objetivo de reduzir os custos de operação, novas tecnologias foram introduzidas no setor de transportes, como o sistema que permite ao caminhão trafegar com um ou mais eixos suspensos quando está vazio. O avanço tecnológico surgiu antes da lei: o STJ teve que se pronunciar a respeito da possibilidade de isenção do pedágio para o eixo suspenso.
Em 2009, a Primeira Turma analisou no REsp 1.077.298 o pedido de uma concessionária de rodovias para possibilitar a cobrança do pedágio pelo número de eixos, independentemente do contato com o solo.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) havia admitido a isenção do pedágio para o eixo suspenso.
Ao dar provimento ao recurso da concessionária e permitir a cobrança, a relatora, ministra Denise Arruda, chamou a atenção para o fato de que o eixo poderia ser erguido com um simples toque de botão na cabine do motorista – o que, na visão da magistrada, daria margem a fraudes.
Além da ausência de previsão legal para a isenção, os ministros analisaram a questão sob o ponto de vista da conservação das estradas.
“Basta imaginar que um caminhão de 15 toneladas com os cinco eixos tocando o asfalto produzirá menos desgaste que outro, nas mesmas condições, que estiver com um dos seus eixos suspenso, ainda que observadas as normas administrativas que definem os limites de peso, normalmente fixados com base na quantidade de eixos do veículo”, explicou Denise Arruda.
Desgaste da via
A ministra frisou que, nessa hipótese, ocorrerá maior desgaste da via, o que poderia até justificar a cobrança de tarifa mais alta.
“Considerando que a legislação que trata da matéria não impede a fixação da tarifa com base no número de eixos dos veículos e que essa parece ser a forma mais objetiva de fixá-la, deve prevalecer a sistemática prevista no contrato de concessão”, concluiu.
Após a decisão do STJ, o Congresso Nacional buscou maneiras de solucionar o conflito entre transportadores e administradores de rodovias. Em 2015, a Lei 13.103 previu a isenção da tarifa de pedágio para o eixo suspenso no caso de caminhão vazio (regra aplicável às rodovias federais).
Em 2018, uma das providências do governo para responder à greve dos caminhoneiros ocorrida em maio foi a edição de uma medida provisória que permitiu a isenção do pedágio também nas rodovias estaduais, alterando a redação da Lei 13.103/2015. A MP foi convertida na Lei 13.711/2018.
Vale-pedágio
Outra questão relacionada a pedágio analisada pelo tribunal foi o vale-pedágio. A Lei 10.209/2001 instituiu a regra de que o pedágio deve ser pago antecipadamente ao transportador pelo contratante do serviço de transporte, sob pena de multa no valor correspondente ao dobro do frete.
Em julgamento recente, a Terceira Turma analisou o REsp 1.694.324 e concluiu que a multa prevista no artigo 8º da lei é legítima e não caracteriza violação aos artigos 412, 421 e 422 do Código Civil.
No caso julgado pelo STJ, uma transportadora entrou com ação para cobrar de uma empresa de alimentos os valores referentes ao vale-pedágio não pagos antecipadamente. A sentença e o acórdão, mantidos pela Terceira Turma, foram favoráveis à transportadora.
Lei específica
Os ministros discutiram a aplicabilidade do artigo que prevê multa igual ao dobro do frete. Para o ministro Moura Ribeiro, a razão do vale-pedágio foi beneficiar, de modo geral, os transportadores, os embarcadores (donos das cargas) e as concessionárias de rodovias. Segundo o ministro, a norma é bem articulada para prestigiar os interesses das partes envolvidas na prestação de transporte de mercadorias.
Moura Ribeiro afirmou que, embora o artigo 412 do Código Civil proíba a adoção de cláusula penal superior ao valor da obrigação principal, deveria prevalecer no caso a penalidade conhecida no meio dos transportes como “dobra do frete”, instituída em lei específica.
“Por se tratar de norma especial, a Lei 10.209/2001 afasta a possibilidade de convenção das partes para alterar o conteúdo do seu artigo 8º, bem assim a possibilidade de se fazer incidir o ponderado artigo 412 do CC/2002, lei geral.”
Entendimento em sentido oposto, segundo o ministro, poderia esvaziar a lei específica, tornando-a ineficaz e trazendo transtornos aos agentes econômicos ligados ao transporte rodoviário de cargas.
Além disso, Moura Ribeiro assinalou que “a cláusula penal é uma penalidade, de natureza civil, pactuada pelas partes no caso de violação da obrigação, mantendo relação direta com o princípio da autonomia privada”, enquanto “a penalidade prevista no artigo 8º da Lei 10.209/2001 é uma sanção legal, de caráter especial, prevista na lei que instituiu o vale-pedágio obrigatório”.
Roubo de cargas
Quando a carga nem chega ao destino, surge, muitas vezes, a discussão judicial sobre quem fica responsável pelos prejuízos. Desde 1994, o STJ tem o entendimento de que o roubo de carga constitui motivo de força maior capaz de afastar a responsabilidade da transportadora, a menos que seja demonstrado que ela não adotou as cautelas que razoavelmente se poderiam esperar. A tese foi fixada pela Segunda Seção no REsp 435.865.
Em 2018, ao analisar o REsp 1.676.764, a Terceira Turma condenou uma transportadora a indenizar em R$ 170 mil a cliente cuja carga foi roubada em São Paulo. Para o colegiado, o alto valor da carga impunha à empresa a obrigação de adotar outras cautelas além de realizar o transporte por uma rota em horário movimentado.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) entendeu que o roubo à mão armada era motivo suficiente para excluir a responsabilização civil da transportadora.
No caso analisado, a empresa contratada para o transporte de chapas de inox avaliadas em R$ 340 mil subcontratou o serviço; além disso, não fez seguro suficiente para cobrir o valor integral da mercadoria.
Além das regras de trânsito, transporte de carga envolve outras normas, como a lei que fixa o vale-pedágio obrigatório.
Risco previsível
No julgamento do recurso, o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, destacou que a transportadora poderia ter adotado algumas medidas para minimizar o prejuízo ou até mesmo evitar o sinistro.
“Há evidente previsibilidade do risco de roubo de mercadorias na realização do contrato de transporte de carga, tanto é assim que há obrigatoriedade na realização de seguro. E há, também, evitabilidade, se não do roubo em si, mas de seus efeitos, especialmente a atenuação dos prejuízos causados”, afirmou o ministro.
A pergunta a ser feita no caso, segundo ele, é se a transportadora efetivamente adotou todas as medidas possíveis diante do risco, já que, embora o roubo à mão armada seja difícil de ser evitado, “os seus efeitos danosos podem ser, pelo menos, atenuados”.
Triste realidade
Sanseverino disse que o caso ilustra bem a situação do transporte de cargas no Brasil, mostrando a triste realidade vivida cotidianamente nas estradas do país. Por um lado, citou o ministro, a empresa demandante pagou o valor “irrisório” de R$ 2.800 para que sua carga, avaliada em R$ 340 mil, fosse transportada através das regiões Sul e Sudeste.
“Ou seja, pagou 0,81% do valor da carga para realizar o transporte por uma das regiões com maior risco de assaltos e roubos de cargas do país”, comentou.
Por outro lado, a transportadora que aceitou esse preço para levar “incólume” a carga valiosa subcontratou o serviço sem o consentimento do contratante; não contratou seguro pelo valor integral da carga; não atendeu exigências do contrato de seguro – por exemplo, o uso de rastreamento via satélite ou assistência de escolta armada –, além de não comunicar a rota de viagem à seguradora.
Tal cenário, segundo Sanseverino, demonstra os descuidos de ambas as partes, o que ampara a decisão do colegiado de dividir a responsabilidade entre as empresas.
“Nesse contexto, deve ser buscada a solução mais razoável para o presente caso, que penso estar situada na distribuição dos prejuízos financeiros advindos dessa malfadada criminalidade do roubo de carga no Brasil entre os personagens acima descritos” – justificou o ministro ao votar pela divisão da responsabilidade, limitando a condenação da transportadora à metade do valor da carga.
Neste domingo (4), a segunda parte da reportagem sobre o STJ e o setor de transporte e logística no Brasil traz a discussão de temas como a aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos contratos e as normas internacionais relativas ao transporte aéreo de cargas.