Por entender presentes os requisitos para a configuração da responsabilidade civil pela perda de uma chance, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu indenização por danos materiais contra um escritório de advocacia que, contratado para atuar em ação de prestação de contas, deixou o processo tramitar durante quase três anos sem qualquer intervenção, o que culminou na condenação dos clientes ao pagamento de quase R$ 1 milhão.
De acordo com o colegiado, a falha na prestação do serviço por parte dos advogados retirou dos clientes a chance real de obterem prestação jurisdicional que lhes fosse mais favorável. Para o cálculo da indenização por danos materiais – fixada em R$ 500 mil –, a turma levou em consideração fatores como o elevado grau de culpa do escritório e a probabilidade de sucesso na ação.
Com a decisão, o colegiado reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) que havia entendido não ser o caso da aplicação da perda de uma chance, tampouco de ressarcimento dos clientes por danos materiais. O tribunal gaúcho fixou apenas indenização por danos morais de R$ 150 mil, mas a Terceira Turma do STJ afastou o dano extrapatrimonial por entender que não houve violação de direitos de personalidade no caso.
\”Na hipótese sob julgamento, não se está diante de defesa tempestiva, porém deficiente, mas sim de total ausência de defesa. A chance de se defender e de ver mitigados os seus prejuízos, tomada como bem jurídico, é que foi subtraída dos autores. Nesse sentido, não há necessidade de apurar se o objetivo final – vitória na ação de prestação de contas – foi ou não tolhido por completo, pois o que importa ressaltar é que a chance de disputar, de exercer o direito de defesa, lhes foi subtraída\”, apontou a relatora, ministra Nancy Andrighi.
Advogado contratado deve atuar com diligência na ação
A relatora explicou que, ao aceitar a causa, o advogado se obriga a conduzi-la com diligência, utilizando todos os métodos legais para intervir na ação – não se obrigando, contudo, ao dever de entregar um resultado certo no processo.
Por causa das dificuldades para definir em quais circunstâncias a atuação negligente do advogado poderia acarretar indenização, a magistrada lembrou que, no julgamento do REsp 1.254.141, a Terceira Turma estabeleceu alguns requisitos para a aplicação da teoria da perda de uma chance: a) a existência de chance, concreta, real, com alto grau de probabilidade; b) o nexo causal
entre a ação ou omissão do defensor e a perda da oportunidade de exercer a chance (sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o objeto final); c) a necessidade de atentar para o fato de que o dano não é o benefício perdido.
Nesse sentido, Nancy Andrighi também ressaltou que a responsabilidade pela perda de uma chance pode ter como consequência o dever de indenizar os prejuízos materiais e os danos morais, inclusive de forma concomitante, “a depender da espécie de posição jurídica violada em cada hipótese concreta”.
Autores tinham documentos que poderiam modificar o resultado da ação
No caso dos autos, a relatora apontou que o processo tramitou por quase três anos sem que os advogados constituídos, cientes do processo, tivessem sequer se habilitado nos autos, deixando, inclusive, de recorrer da primeira fase da ação de prestação de contas e de apresentar impugnação na segunda fase.
Além disso, a ministra destacou que, segundo o TJRS, os autores possuíam documentos de quitação que seriam relevantes na ação de prestação de contas – fato que, de forma concreta, poderia modificar o resultado do processo caso os advogados contratados tivessem atuado na demanda.
Apesar de reconhecer a existência de danos materiais no caso, Nancy Andrighi ressaltou, em relação aos danos morais, que não é possível verificar ofensa a direitos de personalidade em decorrência da má prestação dos serviços advocatícios contratados, especialmente porque a própria natureza da ação de prestação de contas é eminentemente patrimonial.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL. FALHA NA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. AÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS. AUSÊNCIA DE HABILITAÇÃO. AUSÊNCIA DE DEFESA. AUSÊNCIA DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSOS. CONDENAÇÃO DOS CLIENTES. RESPONSABILIDADE CIVIL PELA PERDA DE UMA CHANCE. CARACTERIZAÇÃO. DANO MORAL. NÃO CONFIGURAÇÃO.1 – Recursos especiais interpostos em: 13⁄5⁄2019, 15⁄5⁄2019 e 16⁄5⁄2019. Conclusos ao Gabinete em: 5⁄6⁄2020.2 – O propósito recursal consiste em dizer se: a) o acórdão recorrido conteria omissão; b) se estaria cristalizada a responsabilidade civil por perda de uma chance em virtude da falha na prestação de serviços advocatícios caracterizada pela ausência de qualquer atuação na demanda para a qual os serviços foram contratados, culminando com a condenação dos clientes ao pagamento de vultosa quantia; c) estaria caracterizada a responsabilidade civil por danos morais em virtude de falha na prestação de serviços advocatícios; e d) se o valor arbitrado a título de compensação pelos danos morais seria exorbitante.3 – A falha na prestação de serviços advocatícios, caracterizada pela ausência de qualquer atuação do advogado na demanda para a qual foi contratado pode, em tese, caracterizar responsabilidade civil pela perda de uma chance, desde que houvesse efetiva probabilidade de sucesso, não fosse a conduta desidiosa do causídico.4 – Na hipótese dos autos, partindo do arcabouço fático-probatório delineado pelas instâncias ordinárias, é forçoso concluir que se encontram cristalizados os requisitos indispensáveis à configuração da responsabilidade civil pela perda de uma chance, máxime porque a incontroversa desídia dos réus – que deixaram a ação de prestação de contas tramitar por quase três anos sem qualquer intervenção, culminando com a condenação dos autores ao pagamento de vultosa quantia – retirou destes a chance real e séria de obterem uma prestação jurisdicional que lhes fosse mais favorável.5 – Para fixação do quantum indenizatório, tendo em mira o interesse jurídico lesado – perda da chance de obter resultado mais favorável em ação de prestação de contas – e tendo em vista, ainda, o elevado grau de culpa dos réus, que a probabilidade era de 50% de sucesso na referida demanda, que houve a demonstração do dano efetivo, consubstanciado na condenação dos autores ao pagamento de R$ 947.904,20 (novecentos e quarenta e sete mil, novecentos e quatro reais e vinte centavos) em virtude da desídia dos causídicos, tudo sopesado tem-se por razoável que a indenização deve corresponder a R$ 500,000,00 (quinhentos mil reais) tudo observada a proporcionalidade na fixação do dano material com fundamento na responsabilidade pela perda da chance.6 – Na hipótese sob julgamento, não restou caracterizada a ofensa a direitos da personalidade por causa da má prestação dos serviços advocatícios contratados, motivo pelo qual não cabem danos morais.7 – Recurso especial de ANDRÉ LUIZ ANTON DE SOUZA e RAJA ADMINISTRAÇÃO COMÉRCIO E TECNOLOGIA LTDA, parcialmente provido. Recursos especiais de EMILSON CESAR COLETO FERNANDES e de LINI & PANDOLFI ADVOGADOS ASSOCIADOS, EYDER LINI e MARCOS EVALDO PANDOLFI, dou-lhes provimento, apenas para afastar a condenação ao pagamento por dano moral.
Leia o acórdão no REsp 1.877.375.