Ao dar parcial provimento ao recurso especial interposto por um advogado, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que foi indevida a restrição total de acesso do proprietário à sua unidade condominial, imposta por um condomínio de salas comerciais para evitar a disseminação da Covid-19.
Segundo o colegiado, a medida adotada pelo condomínio restringiu de forma abusiva e indevida o direito de propriedade do dono do imóvel, que ficou temporariamente impossibilitado de entrar no prédio onde funciona seu escritório de advocacia.
Em março de 2020, ainda no início da crise sanitária, o proprietário ajuizou ação, com pedido de liminar, para que o condomínio liberasse sua entrada, pois o síndico havia determinado o fechamento total do edifício para evitar a disseminação do coronavírus.
Apesar de ter concedido a liminar para assegurar o acesso ao escritório, o juiz julgou improcedente o pedido formulado na petição inicial, uma vez que o condomínio estaria seguindo recomendações do Ministério da Saúde e, logo depois da liminar, flexibilizou o ingresso no edifício. A decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Síndico tem competência para adotar medidas de proteção à saúde e à vida dos condôminos
No recurso dirigido ao STJ, o condômino reiterou que o seu direito de propriedade foi violado e que o síndico não tem competência para impor a restrição de acesso aos proprietários.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, observou que, segundo os artigos 1.347 e 1.348, inciso II, do Código Civil, cabe ao síndico adotar as medidas necessárias à defesa dos interesses comuns, ainda que isso implique restrições proporcionais a outros direitos, como o de propriedade, especialmente em situações excepcionais como na pandemia da Covid-19.
Há medidas menos gravosas do que a restrição total de acesso, e igualmente adequadas
Segundo a ministra, “na hipótese de conflitos entre direitos fundamentais, para avaliar se é justificável uma determinada medida que restringe um direito para fomentar outro, deve-se valer da regra da proporcionalidade, a qual se divide em três subregras: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito”.
Na avaliação da magistrada, embora a medida restritiva tenha sido adequada para atingir o fim pretendido, evitando o contágio e assegurando o direito fundamental à saúde e à vida dos condôminos , ela não se justificava, “por não ser necessária, diante da existência de outros meios menos gravosos e igualmente adequados”, como a implementação de um cronograma para que os proprietários pudessem frequentar suas respectivas unidades em horários pré-determinados, mantendo vedado o acesso ao público externo.
Ao julgar procedente o pedido do advogado, Nancy Andrighi reconheceu que foi indevida a restrição ao seu direito de propriedade. Ela acrescentou que o proprietário tem o direito de adentrar no seu imóvel, mesmo na hipótese de a medida de restrição voltar a ser adotada pelo condomínio.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO OBJETIVANDO AUTORIZAÇÃO PARA ENTRAR EM UNIDADE CONDOMINIAL DE PROPRIEDADE DO AUTOR. VIOLAÇÃO DO ART. 7º, II, DA LEI Nº 8.906⁄1994. FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. SÚMULA 284⁄STF. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. AUSÊNCIA. DIREITO DE PROPRIEDADE. RESTRIÇÃO. POSSIBILIDADE. CONDOMÍNIO EDILÍCIO. PRÉDIO COMERCIAL. PANDEMIA DA COVID-19. MEDIDAS PARA EVITAR A DISSEMINAÇÃO DA DOENÇA. COMPETÊNCIA DO SÍNDICO. DIREITO À SAÚDE E À VIDA DOS CONDÔMINOS. PROIBIÇÃO ABSOLUTA AO PROPRIETÁRIO DE ACESSAR SUA UNIDADE CONDOMINIAL. CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS. REGRA DA PROPORCIONALIDADE. ADEQUAÇÃO. CONFIGURAÇÃO. NECESSIDADE. NÃO CONFIGURAÇÃO. EXISTÊNCIA DE OUTRAS MEDIDAS MENOS GRAVOSAS IGUALMENTE ADEQUADAS. INDEVIDA RESTRIÇÃO AO DIREITO DE PROPRIEDADE. CARACTERIZAÇÃO.1. Ação ajuizada em 21⁄03⁄2020, objetivando que o condomínio recorrido autorize a entrada do proprietário em sua unidade, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 22⁄06⁄2021 e concluso ao gabinete em 10⁄12⁄2021.2. O propósito recursal é decidir se (I) o síndico do condomínio de prédio comercial pode impedir o proprietário de entrar em sua unidade condominial, a fim de evitar a disseminação da doença COVID-19, diante da situação de pandemia; e (II) houve litigância de má-fé pelo recorrido.3. A tese recursal está dissociada do art. 7º, II, da Lei nº 8.906⁄1994, alegadamente violado, porquanto não consta no acórdão recorrido notícia de desrespeito à inviolabilidade do escritório de advocacia do recorrente. Incidência da Súmula 284⁄STF.4. Não está caracterizada a litigância de má-fé do recorrido por defender tese contrária ao texto expresso do art. 7º, II, da Lei nº 8.906⁄1994, uma vez que não foi demonstrada a violação desse dispositivo. Ademais, a interposição de recursos cabíveis não implica em litigância de má-fé. Precedentes.5. O direito de propriedade confere ao seu detentor a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, sendo ele um direito fundamental (art. 1.228 do CC⁄2002 e art. 5º, XXII, da CRFB).6. Considerando que o síndico é o administrador do condomínio, com a competência para praticar os atos necessários à defesa dos interesses comuns (arts. 1.347 e 1.348, II, do CC⁄2002 e 22, caput e § 1º, da Lei nº 4.591⁄1964), cabe a ele adotar as medidas necessárias para proteger a saúde e a vida dos condôminos, ainda que isso implique em restrições a outros direitos, como o de propriedade, especialmente em situações excepcionais, como na pandemia da doença COVID-19, desde que tais restrições sejam proporcionais.7. Na hipótese de conflitos entre direitos fundamentais, para avaliar se é justificável uma determinada medida que restringe um direito para fomentar outro, deve-se valer da regra da proporcionalidade, a qual se divide em três subregras: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.8. A medida restritiva ao direito de propriedade, consistente em impedir, de forma absoluta, o proprietário de entrar em sua unidade condominial é adequada para atingir o objetivo pretendido, qual seja, evitar a disseminação da COVID-19, assegurando o direito à saúde e à vida dos condôminos.9. Entretanto, a medida não é necessária, tendo em vista a existência de outros meios menos gravosos e igualmente adequados, como a implementação, pelo síndico, de um cronograma para que os proprietários possam acessar suas respectivas unidades condominiais em horários pré-determinados, mantendo vedado o acesso ao público externo.10. Hipótese em que se reconhece a indevida restrição ao direito de propriedade do recorrente pela medida adotada pelo síndico do condomínio recorrido de vedar totalmente o acesso do prédio aos proprietários; e, consequentemente, o direito de o recorrente adentrar em sua unidade condominial.11. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido, para julgar procedente o pedido formulado na inicial.
Leia o acórdão no REsp 1.971.304.