A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) invalidou provas e determinou o trancamento de ação penal contra réu que foi alvo de busca pessoal e veicular apenas com base em antecedente por tráfico de drogas. Para o colegiado, esse fato isolado – sem outros indícios concretos de que, naquele momento específico, o acusado transportasse entorpecentes – não é suficiente para autorizar a ação policial.
O caso aconteceu na cidade de Tupã (SP), quando policiais faziam patrulhamento de rotina e viram o réu empurrando um veículo para fazê-lo funcionar. Sob o pretexto de que ele tinha antecedente por tráfico de drogas, os agentes decidiram abordá-lo para revista pessoal. Quando inspecionaram o interior do veículo, teriam encontrado “pinos” de cocaína embaixo de um tapete, o que motivou a prisão em flagrante.
Ao analisar o pedido de trancamento da ação penal, o juiz de primeiro grau apontou que o denunciado admitiu a posse da droga. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) negou habeas corpus com base na tese de que o antecedente criminal do réu bastaria para configurar a justa causa da abordagem policial.
Ação apontada como suspeita não tinha relação com tráfico de drogas
Segundo o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, o fato de o réu estar empurrando um veículo com problemas mecânicos para fazê-lo funcionar “no tranco” não poderia ser considerado indício, nem mesmo remoto, de que houvesse entorpecentes no interior do carro. Ele observou que não havia nenhuma relação entre as circunstâncias relatadas pelos policiais e a prática de tráfico de drogas, nem se cogitou a suspeita de tentativa de furto de automóvel – o que poderia motivar a averiguação da conduta do réu.
Schietti explicou que a busca pessoal, prevista no artigo 244 do Código de Processo Penal, já foi alvo de análise criteriosa pelo STJ (RHC 158.580), devendo a justa causa ser descrita com a maior precisão possível e justificada pelos indícios e pelas circunstâncias do caso concreto, de forma que fique clara a urgência da diligência.
Buscas sem critério adequado configuram restrição indevida de liberdade
Desse modo – acrescentou o ministro –, os objetos ilícitos encontrados durante a revista, independentemente da quantidade, não podem ser utilizados para convalidar a ilegalidade prévia, pois seria necessário que a fundada suspeita – necessária para justificar a busca – fosse aferida com base nas informações disponíveis antes da diligência.
“Admitir a validade desse fundamento para, isoladamente, autorizar uma busca pessoal implicaria, em última análise, permitir que todo indivíduo que um dia teve algum registro criminal na vida seja diuturnamente revistado pelas forças policiais”, afirmou o relator. Para ele, a situação revelaria “uma espécie de perpetuação da pena restritiva de liberdade, por vezes até antes que ela seja imposta”.
De acordo com Schietti, o histórico criminal do indivíduo deve ser levado em consideração, mas precisa estar acompanhado de outros indícios objetivos que reforcem a suspeita.
“É completamente diferente, todavia, a hipótese do caso em tela, no qual – além da mera existência de um registro de processo criminal por tráfico, iniciado dois anos antes, sem condenação – absolutamente nenhum outro elemento concreto indicava que o réu, naquele instante determinado, escondia objetos ilícitos”, concluiu o ministro ao votar pela concessão da ordem.
O recurso ficou assim ementado:
HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. BUSCA PESSOAL. MANIFESTA AUSÊNCIA DE FUNDADA SUSPEITA DA POSSE DE CORPO DE DELITO. TRANCAMENTO DO PROCESSO. ORDEM CONCEDIDA.
1. Por ocasião do julgamento do RHC n. 158.580/BA (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 6ª T, DJe 25/4/2022), a Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, à unanimidade, propôs criteriosa análise sobre a realização de buscas pessoais e apresentou as seguintes conclusões: a) Exige-se, em termos de standard probatório para busca pessoal ou veicular sem mandado judicial, a existência de fundada suspeita (justa causa) – baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e circunstâncias do caso concreto – de que o indivíduo esteja na posse de drogas, armas ou de outros objetos ou papéis que constituam corpo de delito, evidenciando-se a urgência de se executar a diligência. b) Entretanto, a normativa constante do art. 244 do CPP não se limita a exigir que a suspeita seja fundada. É preciso, também, que esteja relacionada à “posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”. Vale dizer, há uma necessária referibilidade da medida, vinculada à sua finalidade legal probatória, a fim de que não se converta em salvo-conduto para abordagens e revistas exploratórias (fishing expeditions), baseadas em suspeição genérica existente sobre indivíduos, atitudes ou situações, sem relação específica com a posse de arma proibida ou objeto que constitua corpo de delito de uma infração penal. O art. 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como “rotina” ou “praxe” do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata. c) Não satisfazem a exigência legal, por si sós, meras informações de fonte não identificada (e.g.
denúncias anônimas) ou intuições/impressões subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta, baseadas, por exemplo, exclusivamente, no tirocínio policial. Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de “fundada suspeita” exigido pelo art. 244 do CPP. d) O fato de haverem sido encontrados objetos ilícitos – independentemente da quantidade – após a revista não convalida a ilegalidade prévia, pois é necessário que o elemento “fundada suspeita” seja aferido com base no que se tinha antes da diligência. Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida. e) A violação dessas regras e condições legais para busca pessoal resulta na ilicitude das provas obtidas em decorrência da medida, bem como das demais provas que dela decorrerem em relação de causalidade, sem prejuízo de eventual responsabilização penal do(s) agente(s) público(s) que tenha(m) realizado a diligência.
2. Na espécie, policiais estavam em patrulhamento de rotina quando avistaram o réu empurrar um veículo com o intuito de fazê-lo funcionar. Depois que ele teve êxito, os agentes decidiram abordá-lo, sob o argumento de que o acusado tinha antecedente por tráfico de drogas. Em revista pessoal, nada de ilícito foi encontrado, mas, na sequência, embaixo de um tapete no interior do veículo, os militares localizaram “pinos” de cocaína.
3. De início, cabe destacar que a circunstância de o réu estar empurrando um veículo com problemas mecânicos para fazê-lo funcionar “no tranco”, no caso concreto dos autos, não era indício, nem mesmo remoto, de que houvesse entorpecentes no interior do automóvel, porque tal fato em absolutamente nada se relaciona com a prática do crime de tráfico de drogas. É pertinente frisar, nesse sentido, que nem sequer se cogitava de suspeita de tentativa de furto do veículo a ensejar alguma averiguação dessa conduta do réu.
4. Descartado esse elemento inidôneo e irrelevante, o simples fato de o acusado ter um antecedente por tráfico (na verdade, uma ação penal ainda em andamento na ocasião, por crime supostamente praticado dois anos antes), por si só, não autorizava a busca pessoal, tampouco a veicular, porquanto desacompanhado de outros indícios concretos de que, naquele momento específico, o réu trazia drogas em suas vestes ou no automóvel.
5. Admitir a validade desse fundamento para, isoladamente, autorizar uma busca pessoal, implicaria, em última análise, permitir que todo indivíduo que um dia teve algum registro criminal na vida seja diuturnamente revistado pelas forças policiais, a ensejar, além da inadmissível prevalência do “Direito Penal do autor” sobre o “Direito Penal do fato”, uma espécie de perpetuação da pena restritiva de liberdade, por vezes até antes que ela seja imposta, como na hipótese dos autos, em que o processo existente contra o réu ainda estava em andamento. Isso porque, mesmo depois de cumprida a sanção penal (ou até antes da condenação), todo sentenciado (ou acusado ou investigado) poderia ser eternamente detido e vasculhado, a qualquer momento, para “averiguação” da sua conformidade com o ordenamento jurídico, como se a condenação criminal (no caso, frise-se, a mera existência de ação em andamento) lhe despisse para todo o sempre da presunção de inocência e lhe impingisse uma marca indelével de suspeição.
6. Assim, diante da manifesta inexistência de prévia e fundada suspeita de posse de corpo de delito para a realização das buscas pessoal e veicular, conforme exigido pelo art. 244 do Código de Processo Penal, deve-se reconhecer a ilicitude da apreensão das drogas e, por consequência, de todas as provas derivadas, o que conduz ao trancamento do processo.
7. Ordem concedida para o fim de reconhecer a ilicitude das provas obtidas com base nas buscas pessoal e veicular, bem como todas as demais que dela decorreram e, por conseguinte, determinar o trancamento do processo.
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