Considerando o direito à educação previsto constitucionalmente e os prejuízos à aprendizagem ocasionados aos estudantes com deficiência auditiva pela ausência de interprete de Libras, a 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) confirmou a sentença que determinou à União e ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Triângulo Mineiro (IFTM) a contratação emergencial de interprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras) para atender a esses estudantes. A providência tem a finalidade de suprir a ausência de servidora que se encontra de licença médica.
Após a sentença, a União e o IFTM recorreram ao TRF1. A União alegou a autonomia administrativa e financeira da instituição de ensino para aplicar os recursos orçamentários e suscitou o princípio da legalidade e da separação dos poderes, porque “somente a Administração Pública possui condições de bem avaliar a necessidade e conveniência de realizar as contratações necessárias de acordo com a demanda e com a disponibilidade orçamentária”. Por sua vez, o IFTM defendeu que a contratação seria ilegal porque existe a carreira profissional no órgão, sendo vedada a terceirização e que instituiu processo administrativo, mas que depende da autorização dos Ministérios da Educação e da Economia para contratação temporária de profissional especializado.
Igualdade de condições – Mas, para o relator, desembargador federal Souza Prudente, ficou comprovada a necessidade de contratação temporária de um intérprete de Libras, uma vez que se encontram matriculados alunos com deficiência auditiva que não têm sido devidamente assistidos dado o afastamento da única profissional capacitada para essa tarefa.
Esses estudantes, prosseguiu o desembargador, devem ter assegurado o exercício efetivo do direito constitucional à educação, bem como a dignidade da pessoa humana e a igualdade de condições com os demais estudantes, nos termos do art. 206 da Constituição Federal.
Quanto ao princípio da separação dos poderes, a jurisprudência consolidada dos tribunais é no sentido de que constatada a inércia da Administração Pública com risco de dano aos interesses e direitos dos alunos é legítima a intervenção do Poder Judiciário para suprir a omissão, sem que represente violação ao princípio, concluiu o magistrado.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL, CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO À EDUCAÇÃO. INSTITUTO FEDERAL DE EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA DO TRIÂNGULO MINEIRO – IFTM. ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA AUDITIVA. AUSÊNCIA DE INTÉRPRETE DE LIBRAS. PREJUÍZOS À APRENDIZAGEM. ILEGALIDADE. GARANTIA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DE IGUALDADE DE CONDIÇÕES COM OS DEMAIS ESTUDANTES. RESERVA DO POSSÍVEL. INAPLICABILIDADE. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. POSSIBILIDADE. ILEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO FEDERAL. PRELIMINAR REJEITADA. SENTENÇA CONFIRMADA.
I – Não há que se falar em ilegitimidade passiva da União Federal, na medida em que, para a contratação temporária prevista na Lei nº. 8.745/93, a autonomia e a discricionariedade do IFTM não são plenas, sendo que a efetivação da contratação depende da participação conjunta do atual Ministério da Economia e do Ministério da Educação. Preliminar rejeitada.
II – Segundo os artigos 27 e 28 da Lei nº. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), “a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem”, competindo ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar o referido sistema educacional, de modo “a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena”, por meio de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência.
III – De outra banda, a educação consiste em direito constitucional de todos e dever do Estado, devendo observar as diretrizes que garantam igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, em conformidade com as necessidades próprias das pessoas portadoras de necessidades especiais, a fim de garantir a ministração do ensino com base no princípio da igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (CF, art. 206, I), assim como cumprir com o dever do Estado prestar atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (CF, art. 208, inciso III). Em reforço, estabelece o art. 59 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que “os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação” a assistência de “professores com especialização adequada em nível médio ou superior, para atendimento especializado, bem como professores do ensino regular capacitados para a integração desses educandos nas classes comuns.”
IV – Na espécie, restou comprovada a necessidade de contratação temporária de intérprete de Libras para o IFTM, uma vez que se encontram matriculados alunos com deficiência auditiva, que não têm sido devidamente assistidos em virtude de afastamento da única profissional capacitada para essa tarefa, por licença médica por prazo indeterminado, a autorizar a procedência do pedido inicial, para assegurar-lhes o exercício efetivo do direito constitucional à educação, bem como a dignidade da pessoa humana e a igualdade de condições com os demais estudantes.
V – Na inteligência jurisprudencial do egrégio Supremo Tribunal Federal, “a cláusula da reserva do possível – que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição – encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança” (ARE 639337 AgR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, SEGUNDA TURMA, DJe 15/09/2011).
VI – Ademais, a orientação jurisprudencial já consolidada no âmbito de nossos Tribunais, inclusive nos colendos Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, é no sentido de que, embora não competindo, em princípio, ao Poder Judiciário imiscuir-se no mérito administrativo, limitando-se a sua atuação, em casos assim, ao exame dos aspectos da legalidade e da moralidade do ato administrativo, cabendo à Administração Pública decidir sobre os critérios de conveniência e oportunidade, constatada a inércia do Poder Público, com riscos iminentes de danos irreversíveis, notadamente em se tratando de interesses difusos e coletivos, como na hipótese em comento, afigura-se legítima a intervenção jurisdicional, para suprir a referida omissão, sem que isso represente violação ao princípio da separação dos poderes.
VII – Apelações do IFTM e da União Federal desprovidas. Sentença confirmada. Inaplicabilidade, no caso, do art. 85, § 11, do CPC, por se tratar de recurso interposto em sede de ação civil pública.
A decisão do Colegiado foi unânime, nos termos do voto do relator.
Processo: 1000175-82.2020.4.01.3824