REsp 1.794.854-DF, Rel. Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 23/06/2021, DJe 01/07/2021. (Tema 1077)
DIREITO PENAL
Dosimetria da pena. Fase de individualização. Condenações pretéritas com trânsito em julgado. Impossibilidade de valoração negativa da personalidade e conduta social. Tema 1077.
Condenações criminais transitadas em julgado, não consideradas para caracterizar a reincidência, somente podem ser valoradas, na primeira fase da dosimetria, a título de antecedentes criminais, não se admitindo sua utilização para desabonar a personalidade ou a conduta social do agente.
No que concerne à fixação da pena-base, é certo que o Julgador deve, ao individualizar a pena, examinar com acuidade os elementos que dizem respeito ao fato delituoso e aspectos inerentes ao agente, obedecidos e sopesados todos os critérios legais para aplicar, de forma justa e fundamentada, a reprimenda que seja, proporcionalmente, necessária e suficiente para reprovação do crime, sobrepujando as elementares comuns do próprio tipo legal.
No art. 59 do Código Penal, com redação conferida pela Lei n. 7.209/1984, o legislador elencou oito circunstâncias judiciais para individualização da pena na primeira fase da dosimetria, quais sejam: a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias, as consequências do crime e o comportamento da vítima.
Ao considerar desfavoráveis as circunstâncias judiciais, deve o Julgador declinar, motivadamente, as suas razões, que devem corresponder objetivamente às características próprias do vetor desabonado. A inobservância dessa regra implica ofensa ao preceito contido no art. 93, inciso IX, da Constituição da República.
No caso, analisa-se a possibilidade de condenações criminais transitadas em julgado serem valoradas para desabonar os vetores personalidade e conduta social.
A doutrina diferencia detalhadamente antecedentes criminais de conduta social e esclarece que o legislador penal determinou essa análise em momentos distintos porque “os antecedentes traduzem o passado criminal do agente, a conduta social deve buscar aferir o seu comportamento perante a sociedade, afastando tudo aquilo que diga respeito à prática de infrações penais”. Especifica, ainda, que as incriminações anteriores “jamais servirão de base para a conduta social, pois abrange todo o comportamento do agente no seio da sociedade, afastando-se desse seu raciocínio seu histórico criminal, verificável em sede de antecedentes penais”.
Quanto ao vetor personalidade do agente, a mensuração negativa da referida moduladora “‘deve ser aferida a partir de uma análise pormenorizada, com base em elementos concretos extraídos dos autos, acerca da insensibilidade, desonestidade e modo de agir do criminoso para a consumação do delito […]’ (HC 472.654/DF, Rel. Ministra Laurita Vaz, Sexta Turma, DJe 11/3/2019)” (AgRg no REsp 1.918.046/SP, Rel. Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, DJe 19/04/2021).
“A jurisprudência da Suprema Corte (e a do Superior Tribunal de Justiça) orienta-se no sentido de repelir a possibilidade jurídica de o magistrado sentenciante valorar negativamente, na primeira fase da operação de dosimetria penal, as circunstâncias judiciais da personalidade e da conduta social, quando se utiliza, para esse efeito, de condenações criminais anteriores, ainda que transitadas em julgado, pois esse específico aspecto (prévias condenações penais) há de caracterizar, unicamente, maus antecedentes” (STF, RHC 144.337-AgR, Rel. Ministro Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 22/11/2019).
Em conclusão, o vetor dos antecedentes é o que se refere única e exclusivamente ao histórico criminal do agente. “O conceito de maus antecedentes, por ser mais amplo do que o da reincidência, abrange as condenações definitivas, por fato anterior ao delito, transitadas em julgado no curso da ação penal e as atingidas pelo período depurador, ressalvada casuística constatação de grande período de tempo ou pequena gravidade do fato prévio” (AgRg no AREsp 924.174/DF, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, DJe 16/12/2016).
Doutrina(1) “[é] o papel do réu na comunidade, inserido no contexto da família, do trabalho, da escola, da vizinhança etc. O magistrado precisa conhecer a pessoa que estará julgando, a fim de saber se merece uma reprimenda maior ou menor, daí a importância das perguntas que devem ser dirigidas ao acusado, no interrogatório, e as testemunhas, durante a instrução. […]. A apuração da conduta social pode ser feita por várias fontes, mas é preciso boa vontade e dedicação das partes envolvidas no processo, bem como do juiz condutor da instrução. Em primeiro lugar, é dever das partes arrolar testemunhas, que possam depor sobre a conduta social do acusado. Tal medida vale para a defesa e, igualmente, para a acusação. O magistrado, interessado em aplicar a pena justa, pode determinar a inquirição de pessoas que saibam como se dava a conduta do reu, anteriormente a prática do crime. É natural que a simples leitura a folha de antecedentes não presta para afirmar ser a conduta do acusado boa ou ruim. Mesmo no caso de existirem registros variados de inquéritos arquivados, processos em andamento ou absolvições por falta de provas, há ausência de substrato concreto para deduzir ser o reu pessoa de má conduta social. Afinal, antes de mais nada, prevalece o princípio constitucional da presunção de inocência. Se ele não foi condenado criminalmente, com trânsito em julgado, e considerado inocente e tal estado não pode produzir nenhuma medida penal concreta contra seu interesse. Entretanto, conforme o caso, tanto a acusação, como o próprio juiz, podem valer-se da folha de antecedentes para levantar dados suficientes, que permitam arrolar pessoas com conhecimento da efetiva conduta social do acusado. Lembremos que conduta social não é mais sinônimo de antecedentes criminais. Deve-se observar como se comporta o réu em sociedade, ausente qualquer figura típica incriminadora.” (Nucci, Guilherme de Sousa, Código Penal Comentado, 18.ª ed. rev., atual. e ampl; Rio de Janeiro: Forense, 2017, pp. 389).
(2) “trata-se do conjunto de caracteres exclusivos de uma pessoa, parte herdada, parte adquirida. ‘A personalidade tem uma estrutura muito complexa. Na verdade é um conjunto somatopsíquico (ou psicossomático) no qual se integra um componente morfológico, estático, que é a conformação física; um componente dinâmico-humoral ou fisiológico, que é o temperamento; e o caráter, que é a expressão psicológica do temperamento (…) Na configuração da personalidade congregam-se elementos hereditários e socioambientais, o que vale dizer que as experiências da vida contribuem para a sua evolução. Esta se faz em cinco fases bem caracterizadas: infância, juventude, estado adulto, maturidade e velhice” (GUILHERME OSWALDO ARBENZ, Compêndio de medicina legal). É imprescindível, no entanto, haver uma análise do meio e das condições onde o agente se formou e vive, pois o bem-nascido, sem ter experimentado privações de ordem econômica ou abandono familiar, quando tende ao crime, deve ser mais severamente apenado do que o miserável que tenha praticado uma infração penal para garantir a sua sobrevivência. Por outro lado, personalidade não é algo estático, mas encontra-se em constante mutação. […]. Estímulos e traumas de toda ordem agem sobre ela. Não é demais supor que alguém, após ter cumprido vários anos de pena privativa de liberdade em regime fechado, tenha alterado sobremaneira sua personalidade. O cuidado do magistrado, nesse prisma, é indispensável para realizar justiça. São exemplos de fatores positivos da personalidade: bondade, calma, paciência, amabilidade, maturidade, responsabilidade, bom humor, coragem, sensibilidade, tolerância, honestidade, simplicidade, desprendimento material, solidariedade. São fatores negativos: maldade, agressividade (hostil ou destrutiva), impaciência, rispidez, hostilidade, imaturidade, irresponsabilidade, mau-humor, covardia, frieza, insensibilidade, intolerância (racismo, homofobia, xenofobia), desonestidade, soberba, inveja, cobiça, egoísmo. […]. Segundo nos parece, a simples existência de inquéritos e ações em andamento, inquéritos arquivados e absolvições por falta de provas não são instrumentos suficientes para atestar a personalidade do réu. Em verdade, não servem nem mesmo para comprovar maus antecedentes. Aliás, personalidade distingue-se de maus antecedentes e merece ser analisada, no contexto do art. 59, separadamente. Por isso, é imprescindível cercar-se o juiz de outras fontes, tais como testemunhas, documentos etc., demonstrativos de como age o acusado na sua vida em geral, independentemente de acusações no âmbito penal. Somente após, obtidos os dados, pode-se utilizar o elemento personalidade para fixar a pena justa.” (Nucci, Guilherme de Sousa, Código Penal Comentado, 18.ª ed. rev., atual. e ampl; Rio de Janeiro: Forense, 2017, pp. 390).
(3) “Por conduta social quer a lei traduzir o comportamento do agente perante a sociedade. Verifica-se o seu relacionamento com seus pares, procura-se descobrir seu temperamento, se calmo ou agressivo, se possui algum vício, a exemplo de jogos ou bebidas, enfim, tenta-se saber como é o seu comportamento social, que poderá ou não ter influenciado no cometimento da infração penal.
Importante salientar que conduta social não se confunde com antecedentes penais, razão pela qual determinou a lei sua análise em momentos distintos. Alguns intérpretes, procurando, permissa vênia, distorcer a finalidade da expressão conduta social, procuram fazê-la de “vala comum” nos casos em que não conseguem se valer dos antecedentes penais para que possam elevar a pena-base. Afirmam alguns que se as anotações na folha de antecedentes criminais, tais como inquéritos policiais ou processos em andamento, não servirem para atestar os maus antecedentes do réu, poderão ser aproveitados para fins de aferição da conduta social. Mais uma vez, acreditamos, tenta-se fugir às finalidades da lei. Os antecedentes traduzem o passado criminal do agente, a conduta social deve buscar aferir o seu comportamento perante a sociedade, afastando tudo aquilo que diga respeito à prática de infrações penais. Assim, se inquéritos em andamento não poderão servir para fins de verificação de maus antecedentes, da mesma forma não se prestarão para efeitos de aferição de conduta social. Pode acontecer, até mesmo, que alguém tenha péssimos antecedentes criminais, mas, por outro lado, seja uma pessoa voltada à caridade, com comportamentos filantrópicos e sociais invejáveis.
Concluindo, não podemos confundir conduta social com antecedentes penais. Estes jamais servirão de base para a conduta social, pois abrange todo o comportamento do agente no seio da sociedade, afastando-se desse seu raciocínio seu histórico criminal, verificável em sede de antecedentes penais.” (Rogério Greco, Curso de Direito Penal, 18.ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2016, pp. 683-684).
LegislaçãoArt. 59, Código Penal;
Art. 93, IX, Constituição Federal de 1988
REsp 1.785.861-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021. (Tema 931)
DIREITO PENAL
Cumprimento da pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos substitutiva. Inadimplemento da pena de multa. Compreensão firmada pelo STF na ADI n. 3.150/DF. Manutenção do caráter de sanção criminal da pena de multa. Distinguishing. Impossibilidade de cumprimento da pena pecuniária pelos condenados hipossuficientes. Violação de preceitos fundamentais. Excesso de execução. Extinção da punibilidade. Revisão de tese. Tema 931.
Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial Representativo da Controvérsia n. 1.519.777/SP, assentou a tese de que “[n]os casos em que haja condenação à pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”.
Entretanto, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.150/DF, o STF firmou o entendimento de que a alteração do art. 51 do Código Penal, promovida Lei n. 9.268/1996, não retirou o caráter de sanção criminal da pena de multa, de modo que a primazia para sua execução incumbe ao Ministério Público e o seu inadimplemento obsta a extinção da punibilidade do apenado. Tal compreensão foi posteriormente sintetizada em nova alteração do referido dispositivo legal, levada a cabo pela Lei n. 13.964/2019.
Em decorrência do entendimento firmado pelo STF, bem como em face da mais recente alteração legislativa sofrida pelo artigo 51 do Código Penal, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Recursos Especiais Representativos da Controvérsia n. 1.785.383/SP e 1.785.861/SP, reviu a tese anteriormente aventada no Tema n. 931, para assentar que, “na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”.
Ainda consoante o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal julgamento da ADI n. 3.150/DF, “em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição”.
Na mesma direção, quando do julgamento do Agravo Regimental na Progressão de Regime na Execução Penal n. 12/DF, a Suprema Corte já havia ressaltado que, “especialmente em matéria de crimes contra a Administração Pública – como também nos crimes de colarinho branco em geral -, a parte verdadeiramente severa da pena, a ser executada com rigor, há de ser a de natureza pecuniária. Esta, sim, tem o poder de funcionar como real fator de prevenção, capaz de inibir a prática de crimes que envolvam apropriação de recursos públicos”.
Além disso, segundo os termos em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela indispensabilidade do pagamento da sanção pecuniária para o gozo da progressão a regime menos gravoso, “[a] exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. […] é possível a progressão se o sentenciado, veraz e comprovadamente, demonstrar sua absoluta insolvabilidade. Absoluta insolvabilidade que o impossibilite até mesmo de efetuar o pagamento parcelado da quantia devida, como autorizado pelo art. 50 do Código Penal”.
Nota-se o manifesto endereçamento das decisões retrocitadas àqueles condenados que possuam condições econômicas de adimplir a sanção pecuniária, de modo a impedir que o descumprimento da decisão judicial resulte em sensação de impunidade.
Não se pode desconsiderar que o cenário do sistema carcerário expõe disparidades sócio-econômicas da sociedade brasileira, as quais ultrapassam o inegável caráter seletivo do sistema punitivo e se projetam não apenas como mecanismo de aprisionamento físico, mas também de confinamento em sua comunidade, a reduzir o indivíduo desencarcerado ao status de um pária social. Outra não é a conclusão a que poderia conduzir – relativamente aos condenados em comprovada situação de hipossuficiência econômica – a subordinação da retomada dos seus direitos políticos e de sua consequente reinserção social ao prévio adimplemento da pena de multa.
Conclui-se que condicionar a extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa acentuar a já agravada situação de penúria e de indigência dos apenados hipossuficientes e sobreonera pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção da família (art. 226 da Carta de 1988).
Por fim, a barreira ao reconhecimento da extinção da punibilidade dos condenados pobres, para além do exame de benefícios executórios como a mencionada progressão de regime, frustra fundamentalmente os fins a que se prestam a imposição e a execução das reprimendas penais, e contradiz a inferência lógica do princípio isonômico (art. 5º, caput da Constituição Federal) segundo a qual desiguais devem ser tratados de forma desigual. Mais ainda, desafia objetivos fundamentais da República, entre os quais o de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III).
Doutrina(1) “a pena representaria (a) retribuição do injusto realizado, mediante compensação ou expiação da culpabilidade, (b) prevenção especial positiva mediante correção do autor pela ação pedagógica da execução penal, além de prevenção especial negativa como segurança social pela neutralização do autor e, finalmente, (c) prevenção geral negativa através da intimidação de criminosos potenciais pela ameaça penal e prevenção geral positiva como manutenção/ reforço da confiança na ordem jurídica etc” (SANTOS, Juarez Cirino dos. Teoria da pena: fundamentos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2005, p. 12).
(2) “ressocializar, meta inserida na Lei de Execução Penal, significa proporcionar ao preso o retorno ao convívio social da melhor maneira possível. […] Diante disso, de modo acertado, o texto legal menciona o dever estatal de orientar o retorno ao convívio social, vale dizer, mostrar uma direção ou um caminho, que pode ser seguido ou não” (NUCCI, Guilherme de Souza. Criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 230).
LegislaçãoArts. 50, 51 e 64, I, Código Penal;
Art. 3º, III, Constituição Federal de 1988;
Arts. 5º, caput, XLV, XLVI e 226, Constituição Federal de 1988;
Arts. 1º, 25, 164 e 170, Lei de Execuções Penais;
Lei n. 9.286/1996;
Lei n. 13.964/2019;
Art. 5º do Pacto de São José da Costa Rica (Decreto n. 678/1992)
SúmulasSúmula n. 521 do STJ
Precedentes Qualificados REsp 1.519.777-SP, Rel. Min. Rogério Schietti, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 26/08/2015, DJe 10/09/2015. (Tema 931)
REsp 1.785.383-SP, Rel. Min. Rogério Schietti, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021. (Tema 931)
REsp 1.785.861-SP, Rel. Min. Rogério Schietti, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 24/11/2021, DJe 30/11/2021. (Tema 931)
HC 541.447-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 14/09/2021, DJe de 20/09/2021.
DIREITO PENAL
Imputação de crime de corrupção passiva a médico. Atendimento em hospital conveniado ao Sistema Único de Saúde. Técnica cirúrgica não coberta pelo SUS. Ressarcimento de custos pelo uso de equipamento de videolaparoscopia. Mero ressarcimento de despesas. Não caracterização da elementar normativa do art. 317 do Código Penal.
Para tipificação do art. 317 do Código Penal – corrupção passiva -, deve ser demonstrada a solicitação ou recebimento de vantagem indevida pelo agente público, não configurada quando há mero ressarcimento ou reembolso de despesa.
A questão que se coloca é se o recebimento de ressarcimento pelos gastos decorrentes do uso do equipamento de videolaparoscopia, técnica cirúrgica não coberta pelo SUS, configura ou não vantagem indevida para fins penais.
Na dicção do art. 317 do CP, configura o crime de corrupção passiva a conduta de “solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem”.
Não se ignora que a Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (Lei n. 8.080/1990) e a Portaria n. 113/1997 do Ministério da Saúde vedam a cobrança de valores do paciente ou familiares a título de complementação, dado o caráter universal e gratuito do sistema público de saúde, entendimento reforçado pelo STF no julgamento do RE n. 581.488/RS, com repercussão geral, em que se afastou a possibilidade de “diferença de classe” em internações hospitalares pelo SUS (relator Ministro Dias Toffoli, Plenário, DJe de 8/4/2016).
Assim, sob o aspecto administrativo, se eventualmente comprovada a exigência de complementação de honorários médicos ou a dupla cobrança por ato médico realizado, estaria configurada afronta à legislação citada, bem como aos arts. 65 e 66 do Código de Ética Médica.
Todavia, a tipificação do art. 317 do CP exige a comprovação de recebimento de vantagem indevida pelo médico, não configurada quando há mero ressarcimento ou reembolso de despesas, conquanto desatendidas as normas administrativas.
Com efeito, o uso da aparelhagem de videolaparoscopia importam em custos de manutenção e reposição de peças, não sendo razoável obrigar o médico a suportar tais gastos, em especial quando houver aquiescência da vítima à adoção da técnica cirúrgica por lhe ser notoriamente mais benéfica em relação à cirurgia tradicional ou “aberta”.
Desse modo, o reembolso dos gastos pelo uso do equipamento não representa o recebimento de vantagem pelo acusado, não demonstrada a elementar normativa do art. 317 do Código Penal.
Doutrina“a indiferença sobre a licitude ou ilicitude do ato objeto da conduta ativa ou omissiva do funcionário venal […] reside na gravidade do tráfico do comércio da função, que acarreta o descrédito e a degradação da administração pública perante a coletividade” (BITENCOURT, Cezar Roberto Tratado de Direito Penal: Parte Especial: crimes contra a administração pública e crimes praticados por prefeitos ? arts. 312 a 359-H e Lei n. 10.028/2000 [e-book]. v. 5. 15ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 58).
Legislaçãoart. 317 do Código Penal; Lei Orgânica do Sistema Único de Saúde (Lei n. 8.080/1990); Portaria n. 113/1997 do Ministério da Saúde; arts. 65 e 66 do Código de Ética Médica,
SúmulasSúmula n. 648/STJ: A superveniência da sentença condenatória prejudica o pedido de trancamento da ação penal por falta de justa causa feito em habeas corpus.
HC 653.641-TO, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 23/06/2021, DJe 29/06/2021.
DIREITO PENAL
Crime contra a honra. Injúria. Críticas mais contundentes. Liberdade de expressão. Homem público. Crítica política. Animus injuriandi. Inexistência.
Nos crimes contra honra não basta criticar o indivíduo ou a sua gestão da coisa pública, é necessário o dolo específico de ofender a honra alheia.
O Supremo Tribunal Federal tem reiteradas decisões no sentido de que as liberdades de expressão e de imprensa desfrutam de uma posição preferencial por serem pré-condição para o exercício esclarecido dos demais direitos e liberdades inerentes ao Estado democrático de Direito.
O respeito às regras do jogo democrático, especialmente a proteção das minorias, apresenta-se como um limite concreto a eventuais abusos da liberdade de expressão.
Estabelecidas essas balizas, é importante ressaltar que a postura do Estado, através de todos os seus órgãos e entes, frente ao exercício dessas liberdades individuais, deve ser de respeito e de não obstrução. Não é por outro motivo que, no julgamento da ADPF 130, o STF proibiu a censura de publicações jornalísticas, bem como reconheceu a excepcionalidade de qualquer tipo de intervenção estatal na divulgação de notícias e de opiniões. Esclareceu-se que eventual uso abusivo da liberdade de expressão deve ser reparado, preferencialmente, por meio de retificação, direito de resposta ou indenização.
Nesse passo, revela-se necessário ressaltar que a proteção da honra do homem público não é idêntica àquela destinada ao particular. É lícito dizer, com amparo na jurisprudência da Suprema Corte, que, “ao decidir-se pela militância política, o homem público aceita a inevitável ampliação do que a doutrina italiana costuma chamar a zona di iluminabilità, resignando-se a uma maior exposição de sua vida e de sua personalidade aos comentários e à valoração do público, em particular, dos seus adversários” Essa tolerância com a liberdade da crítica ao homem público apenas há de ser menor, “quando, ainda que situado no campo da vida pública do militante político, o libelo do adversário ultrapasse a linha dos juízos desprimorosos para a imputação de fatos mais ou menos concretos, sobretudo se invadem ou tangenciam a esfera da criminalidade” (HC 78426, Relator Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 16/03/1999).
Como cediço, os crimes contra a honra exigem dolo específico, não se contentando com o mero dolo geral. Não basta criticar o indivíduo ou sua gestão da coisa pública, é necessário ter a intenção de ofendê-lo. Nesse sentido: “os delitos contra a honra reclamam, para a configuração penal, o elemento subjetivo consistente no dolo de ofender na modalidade de ‘dolo específico’, cognominado ‘animus injuriandi’ (APn 555/DF, Rel. Ministro Luiz Fux, Corte Especial, DJe de 14/05/2009). Em igual direção: APn 941/DF, Rel. Ministro Raul Araújo, Corte Especial, DJe 27/11/2020.
É de suma importância também ressaltar que o Direito Penal é uma importante ferramenta conferida à sociedade. Entretanto, não se deve perder de vista que este instrumento deve ser sempre a ultima ratio. Ele somente pode ser acionado em situações extremas, que denotem grave violação aos valores mais importantes e compartilhados socialmente. Não deve servir jamais de mordaça, nem tampouco instrumento de perseguições políticas aos que pensam diversamente do Governo eleito.
LegislaçãoArts. 140, 141 e 145, parágrafo único, Código Penal;
Art. 5º, IV, V e X, 21, XVI, e 220, § 4, Constituição Federal de 1988;
REsp 1.943.262-SC, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 05/10/2021.
DIREITO PENAL
Excesso de exação. Art. 316, § 1º, do Código Penal. Comprovada dificuldade exegética da legislação de custas e emolumentos. Conduta resultante de equívoco na interpretação da norma tributária. Ausência de comprovação do elemento subjetivo. Atipicidade.
A mera interpretação equivocada da norma tributária não configura o crime de excesso de exação.
O tipo do art. 316, § 1º, do Código Penal, pune o excesso na cobrança pontual de tributos (exação), seja por não ser devido o tributo, ou por valor acima do correto, ou, ainda, por meio vexatório ou gravoso, ou sem autorização legal. Ademais, o elemento subjetivo do crime é o dolo, consistente na vontade do agente de exigir tributo ou contribuição que sabe ou deveria saber indevido, ou, ainda, de empregar meio vexatório ou gravoso na cobrança de tributo ou contribuição devidos.
E, consoante a doutrina, “se a dúvida é escusável diante da complexidade de determinada lei tributária, não se configura o delito”. Outrossim, ressalta-se que “tampouco existe crime quando o agente encontra-se em erro, equivocando-se na interpretação e aplicação das normas tributárias que instituem e regulam a obrigação de pagar”.
Nesse palmilhar, a relevância típica da conduta prevista no art. 316, § 1º, do Código Penal depende da constatação de que o agente atuou com consciência e vontade de exigir tributo acerca do qual tinha ou deveria ter ciência de ser indevido. Deve o titular da ação penal pública, portanto, demonstrar que o sujeito ativo moveu-se para exigir o pagamento do tributo que sabia ou deveria saber indevido. Na dúvida, o dolo não pode ser presumido, pois isso significaria atribuir responsabilidade penal objetiva ao registrador que interprete equivocadamente a legislação tributária.
No caso, os elementos constantes do acórdão recorrido evidenciam que o texto da legislação de regência de custas e emolumentos à época do fatos provocava dificuldade exegética, dando margem a interpretações diversas, tanto nos cartórios do Estado, quanto dentro da própria Corregedoria, composta por especialistas na aplicação da norma em referência. Desse modo, a tese defensiva de que “a obscuridade da lei não permitia precisar a exata forma de cobrança dos emolumentos cartorários no caso especificado pela denúncia” revela-se coerente com a prova dos autos.
Ademais, frisa-se que os elementos probatórios delineados pela Corte de origem evidenciam que, embora o réu possa ter cobrado de forma errônea os emolumentos, o fez por mero erro de interpretação da legislação tributária no tocante ao método de cálculo do tributo, e não como resultado de conduta criminosa. Temerária, portanto, a sua condenação à pena de 4 anos de reclusão e à gravosa perda do cargo público.
Outrossim, oportuno relembrar que, no RHC n. 44.492/SC, interposto nesta Corte, a defesa pretendeu o trancamento desta ação ainda em sua fase inicial. A em. Ministra Laurita Vaz, relatora do feito, abraçou a tese defensiva assentando que “não basta a ocorrência de eventual cobrança indevida de emolumentos, no caso, em valores maiores do que os presumidamente devidos, para a configuração do crime de excesso de exação previsto no § 1.º do art. 316 do Código Penal, o que pode ocorrer, por exemplo, por mera interpretação equivocada da norma de regência ou pela ausência desta, a ensejar diferentes entendimentos ou mesmo sérias dúvidas de como deve ser cobrado tal ou qual serviço cartorial. É mister que haja o vínculo subjetivo (dolo) animando a conduta do agente.”
E arrematou que “a iniciativa de acionar o aparato Estatal para persecução criminal de titular de cartório, para punir suposta má-cobrança de emolumentos, em um contexto em que se constatam fundadas dúvidas, e ainda sem a indicação clara do dolo do agente, se apresenta, concessa venia, absolutamente desproporcional e desarrazoada, infligindo inaceitável constrangimento ilegal ao acusado.” (RHC n. 44.492/SC, relatora Ministra LAURITA VAZ, relator para acórdão Ministro MOURA RIBEIRO, QUINTA TURMA, julgado em 21/8/2014, DJe 19/11/2014).
A em. relatora ficou vencida, decidindo a Turma, por maioria, pelo prosseguimento da ação penal em desfile, desfecho esse que desconsiderou que, em observância ao princípio da intervenção mínima, o Direito Penal deve manter-se subsidiário e fragmentário, e somente deve ser aplicado quando estritamente necessário ao combate a comportamentos indesejados.
Portanto, não havendo previsão para a punição do crime em tela na modalidade culposa e não demonstrado o dolo do agente de exigir tributo que sabia ou deveria saber indevido, é inviável a perfeita subsunção da conduta ao delito previsto no § 1º do art. 316 do Código Penal.
DoutrinaE, consoante a melhor doutrina, “se a dúvida é escusável diante da complexidade de determinada lei tributária, não se configura o delito” (PRADO. Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro, Parte Geral e Parte Especial. Luiz Regis Prado, Érika Mendes de Carvalho, Gisele Mendes de Carvalho. 14. ed. rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, pp. 1.342/1.343, grifei).
Outrossim, ressalta-se que “tampouco existe crime quando o agente encontra-se em erro, equivocando-se na interpretação e aplicação das normas tributárias que instituem e regulam a obrigação de pagar” (BITENCOURT. Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 730, grifei).
Ainda, importante destacar que, “utilizando uma técnica legislativa reservada a poucos crimes, o art. 316, § 1º, exige, além dos normais requisitos do dolo com relação aos elementos de fato, ‘o saber’ que a exação é indevida. Logo, o agente deverá ter ciência plena de que se trata de imposto, taxa ou emolumento não devido” (CUNHA. Rogério Sanches. Manual de Direito Penal, Parte Especial. 12. ed. rev, atual. e ampl. Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, pp. 872/873, grifei).
Outrossim, na lição de Guilherme de Souza Nucci, o elemento subjetivo do crime “é o dolo, nas modalidades direta (‘que sabe’) e indireta (‘que deveria saber’). Não há elemento subjetivo específico, nem se pune a forma culposa.” (NUCCI. Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 21. ed. rev, atual. e ampl. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2021, p. 1.253, grifei).
LegislaçãoCódigo Penal, art. 316, § 1º
CC 181.726-PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Terceira Seção, por unanimidade, julgado em 08/09/2021, DJe 17/09/2021.
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Estelionato praticado mediante depósito. Superveniência da Lei n. 14.155/2021. Competência. Local do domicílio da vítima. Norma processual. Aplicação imediata. Natureza Relativa. Perpetuatio jurisdicionis.
A modificação de competência promovida pela Lei n. 14.155/2021 tem aplicação imediata, contudo, por se cuidar de competência em razão do lugar, de natureza relativa, incide a regra da perpetuatio jurisdicionis, quando já oferecida a denúncia.
Nos termos do art. 70 do Código de Processo Penal, “a competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução”.
O delito de estelionato, tipificado no art. 171, caput, do Código Penal, se consuma no lugar onde aconteceu o efetivo prejuízo à vítima.
Por essa razão, a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, no caso específico de estelionato praticado por meio de depósito em dinheiro ou transferência de valores, firmara a compreensão de que a competência seria do Juízo onde se auferiu a vantagem ilícita em prejuízo da vítima, ou seja, o local onde se situava a conta que recebeu os valores depositados.
Já nos casos de estelionato praticado por meio de cheque adulterado ou falsificado, o efetivo prejuízo se dá no local do saque da cártula, ou seja, onde o lesado mantém a conta bancária.
Entretanto, a Lei n. 14.155/2021, incluiu o § 4º ao art. 70 do Código de Processo Penal, com a seguinte redação:”§ 4º Nos crimes previstos no art. 171 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), quando praticados mediante depósito, mediante emissão de cheques sem suficiente provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado ou mediante transferência de valores, a competência será definida pelo local do domicílio da vítima, e, em caso de pluralidade de vítimas, a competência firmar-se-á pela prevenção.”
Diante da modificação legislativa, criando hipótese específica de competência no caso de crime de estelionato praticado mediante depósito, transferência de valores ou cheque sem provisão de fundos em poder do sacado ou com o pagamento frustrado, não mais subsiste a distinção outrora consolidada por esta Corte Superior, devendo ser reconhecida a competência do Juízo do domicílio da vítima.
A lei processual penal tem aplicação imediata. Contudo, por se cuidar de competência em razão do lugar, de natureza relativa, incide a regra da perpetuatio jurisdicionis, quando já oferecida a denúncia, nos termos do art. 43 do atual Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 3º do Código de Processo Penal.
LegislaçãoArts. 3º e 70, § 4º, Código de Processo Penal;
Art. 171, caput, Código Penal;
Art. 43, Código de Processo Civil/2015;
Lei n. 14.155/2021
Saiba mais:
HC 679.715-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 26/10/2021, DJe de 03/11/2021.
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Progressão de regime especial. Art. 112, § 3º, V, LEP. Proibição de participação de organização criminosa. Extensão do conceito ao condenado por associação ao tráfico. Impossibilidade. Vedação à interpretação extensiva in malam partem de normas penais. Princípios da legalidade, taxatividade e do favor rei.
Em prol da legalidade, da taxatividade e do favor rei, a interpretação do art. 112, §3°,V da LEP deve se dar de modo restritivo, considerando organização criminosa somente a hipótese de condenação nos termos da Lei 12.850/2013, não abrangendo apenada que tenha participado de associação criminosa (art. 288 do CP) ou associação para o tráfico (art. 35 da Lei 11.343/2006).
Trata-se a discussão sobre a possível equiparação da condenação pelo crime de associação ao tráfico com o delito de organização criminosa, só não incidindo a Lei n. 12.850/2013, mas a Lei de Drogas (n. 11.343/2006), em razão do princípio da especialidade, para fins de progressão especial da pena.
Vale ressaltar que não é legítimo que o julgador, em explícita violação ao princípio da taxatividade da lei penal, interprete extensivamente o significado de organização criminosa a fim de abranger todas as formas de societas sceleris. Tal proibição fica ainda mais evidente quando se trata de definir requisito que restringe direito executório implementado por lei cuja finalidade é aumentar o âmbito de proteção às crianças ou pessoas com deficiência, reconhecidamente em situação de vulnerabilidade em razão de suas genitoras ou responsáveis encontrarem-se reclusas em estabelecimentos prisionais.
Assim, tem-se que organização criminosa é a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.
Por sua vez, a associação para o tráfico de drogas, cuja tipificação se encontra no art. 35, caput, da Lei n. 11.343/2006, pune a seguinte conduta: associarem-se duas ou mais pessoas para o fim de praticar, reiteradamente ou não, qualquer dos crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1º, e 34 desta Lei.
Desse modo, a condenação pelo crime de associação não impede, por si só, a concessão do benefício da progressão especial da pena (fração de 1/8), já que o art. 112, § 3º, inciso V, da Lei de Execução Penal faz referência à organização criminosa.
De outro lado, a diretriz contida nos dois precedentes invocados pelo Ministério Público Federal não tem sido confirmada pela Suprema Corte de Justiça Nacional. Recentemente, em longa e alentada decisão, o eminente Ministro EDSON FACHIN, após historiar a jurisprudência do Excelso Pretório no sentido de que o crime de organização criminosa tem definição autônoma e limites próprios, não sendo intercambiável com o delito de quadrilha (atual associação criminosa) ou mesmo associação para o tráfico, reafirmou a interpretação não ampliativa quanto ao termo “organização criminosa” ( HC 200630 MC/SP, DJe de 02/07/2021), proclamando, em seguida, a Segunda Turma do Excelso Pretório, em definitivo, a tese jurídica de que, em prol da legalidade, da taxatividade e do favor rei, a interpretação do art. 112, §3°,V da LEP deve se dar de modo restritivo.
Nessa trilha, organização criminosa é somente a hipótese de condenação nos termos da Lei 12.850/2013, não abrangendo apenada que tenha participado de associação criminosa (art. 288 do CP) ou associação para o tráfico (art. 35 da Lei 11.343/2006).
Se, como pondera o Parquet, houve, por parte do legislador, “incoerência legislativa”, ou se “o ordenamento jurídico brasileiro possui mais de uma definição para o que vem a ser uma organização criminosa”, deve-se, de toda sorte, tomar, conforme a orientação do STF, o termo em sua acepção mais favorável à acusada, em atenção ao princípio do favor rei.
Aliás, essa particular forma de parametrar a interpretação das normas jurídicas (internas ou internacionais) é a que mais se aproxima da Constituição Federal, que faz da cidadania e da dignidade da pessoa humana dois de seus fundamentos, bem como tem por objetivos fundamentais erradicar a marginalização e construir uma sociedade livre, justa e solidária (incisos I, II e III do art. 3º). Tudo na perspectiva da construção do tipo ideal de sociedade que o preâmbulo da respectiva Carta Magna caracteriza como “fraterna”.
DoutrinaBRITTO, Carlos Ayres. O Humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Forum, 2007; MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. A Fraternidade como Categoria Jurídica: fundamentos e alcance (expressão do constitucionalismo fraternal). Curitiba: Appris, 2017; MACHADO, Clara. O Princípio Jurídico da Fraternidade – um instrumento para proteção de direitos fundamentais transindividuais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017; VERONESE, Josiane Rose Petry; OLIVEIRA, Olga Maria Boschi Aguiar de; Direito, Justiça e Fraternidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.
LegislaçãoArt. 33, caput e § 1º, e 34, 35, caput, da Lei n. 11.343/2006; 112, § 3º, inciso V, da Lei de Execução Penal; art. 288 do CP; art. 3º, I, II e III da CF; Lei 12.850/2013
HC 682.633-MG, Rel. Min. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região), Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 05/10/2021, DJe de 11/10/2021
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Falta grave cometida em execução penal. Tema submetido à repercussão geral do STF. Sobrestamento do recurso pelo Tribunal de origem. Suspensão do lapso prescricional. Ausência de previsão legal. Interpretação in malam partem vedada.
Não há a suspensão dos prazos prescricionais em execução penal, por ausência de previsão legal, em razão da submissão de tema à repercussão geral na hipótese prevista no art. 1.035, § 5º, do CPC, sem a declaração de sobrestamento dos processo, nem a suspensão expressa dos prazos citados.
A prescrição das faltas disciplinares de natureza grave, em virtude da inexistência de legislação específica, regula-se, por analogia, pelo menor dos prazos previstos no art. 109, VI, do Código Penal, de 3 (três) anos.
Como a decisão proferida na QO no RE n. 966.177/RS refere-se especificamente à hipótese prevista no art. 1.035, § 5º, do CPC, e não houve o sobrestamento dos processos, nem a suspensão do prazo prescricional, pelo Supremo Tribunal Federal no RE n. 972.598/RS – tema 941, verifica-se a ocorrência de manifesta ilegalidade na suspensão do prazo prescricional sem prévia previsão legal.
Isso porque, apesar de o artigo 1.030, III, do CPC prever a possibilidade de o relator sobrestar o recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo, nada dispõe sobre a possibilidade de suspensão do prazo prescricional nos casos em que reconhecida a repercussão geral do tema.
Assim, em observância ao princípio da legalidade, as causas suspensivas da prescrição demandam expressa previsão legal, o que não se vislumbra na hipótese prevista no art. 1.030, III, do CPC, utilizada para sobrestar o processo no Tribunal de origem, não sendo admissível a analogia in malam partem.
Com efeito, decorrido lapso superior a 3 (três) anos, previsto no art. 109, VI, do CP, desde a prática da falta disciplinar grave e o seu reconhecimento, deve ser reconhecida a prescrição.
LegislaçãoArt. 109, VI, do CP; art. 1.035, § 5º, do CPC
Precedentes Qualificados A oitiva do condenado pelo Juízo da Execução Penal, em audiência de justificação realizada na presença do defensor e do Ministério Público, afasta a necessidade de prévio Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD), assim<
RHC 136.624-PR, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 13/04/2021, DJe 05/05/2021.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Pedido de acesso a procedimento sigiloso. Medidas investigatórias em curso. Súmula vinculante n. 14. Acesso aos procedimentos documentados. Arquivos criptografados. Impossibilidade técnica. Dados não utilizados na denúncia.
Não ofende o princípio da ampla defesa a negativa de acesso ao conteúdo de medidas investigativas em curso que ainda não foram documentadas e cujo sigilo, no momento, é imprescindível à sua efetividade.
Trata-se de procedimento jurisdicional instaurado para a autorização e o controle de medidas investigativas submetidas à cláusula de reserva de jurisdição que se destinam à colheita de elementos de informação para a formação da opinio delicti do Ministério Público Federal.
No caso, todos os elementos de informação que já foram formalizados em documentos em virtude do encerramento de investigações e que importam para o pleno exercício do direito de defesa do recorrente podem ser acessados sem nenhum embaraço, circunstância jurídico-processual esta que, na dicção da Súmula Vinculante n. 14, constitui justamente a hipótese de manutenção da reserva de publicidade dos autos de inquérito policial ou outro procedimento investigativo criminal.
Entretanto, não ofende o princípio da ampla defesa a negativa de acesso ao conteúdo de medidas investigativas em curso que ainda não foram documentadas e cujo sigilo, no momento, é imprescindível à sua efetividade, especialmente na hipótese em que a autoridade já declarou que, encerradas as investigações e documentados os seus resultados, será franqueado ao recorrente e à sua defesa técnica o integral acesso aos elementos de informação necessários para o exercício do direito de defesa.
Ademais, o conteúdo das mídias eletrônicas arrecadadas por meio de mandados de busca e apreensão não foram acessados nem mesmo pelo Ministério Público Federal, em virtude de criptografia intransponível, de modo que não foram usados para subsidiar o oferecimento da denúncia. Logo, seu acesso não só é impossível, dada a criptografia que os reveste, como não interessa ao exercício do direito de defesa.
SúmulasSúmula vinculante n. 14: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judici
HC 574.573-RJ, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 22/06/2021, DJe de 28/06/2021
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Prisão preventiva. Crimes cibernéticos. Modus operandi e periculosidade do agente. Prisão domiciliar ou monitoração eletrônica. Insuficiência. Necessidade de desarticulação de grupo criminoso e prevenção de reiteração delituosa.
É idônea a fundamentação do decreto prisional assentada na periculosidade do agente, evidenciada pelo modus operandi, e na necessidade de interromper atuação de líder de organização criminosa voltada para a prática de crimes informáticos.
Trata-se de decreto prisional expedido pela prática, em tese, dos crimes de lavagem de dinheiro e furto em que os agentes utilizavam de meios tecnológicos para conseguir dados bancários das vítimas e transferir as quantias para contas de laranjas.
A recente promulgação da Lei n. 14.155, de 27/5/2021, revela a preocupação do legislador com o crescente aumento dos crimes informáticos, particularmente no período de pandemia do novo coronavírus, tendo sido inserida nova qualificadora no § 4º-B do art. 155 do CP, que estabelece a pena de 4 a 8 anos quando o “furto praticado mediante fraude é cometido por meio de dispositivo eletrônico ou informático, conectado ou não à rede de computadores, com ou sem a violação de mecanismo de segurança ou a utilização de programa malicioso, ou por qualquer outro meio fraudulento análogo”.
O incremento de cibercriminalidade exige das autoridades judiciárias a adoção de medidas adequadas para coibir a reiteração delituosa, tendo em vista os mecanismos utilizados pelos hackers para a prática de furtos eletrônicos e a provável ineficácia das medidas cautelares diversas da prisão para acautelar o meio social e econômico. De fato, o modus operandi dos crimes cibernéticos torna, por exemplo, insuficiente a prisão domiciliar ou a monitoração eletrônica para prevenção do risco de reiteração.
Nesse aspecto, como destacado no julgamento do HC 34.715/PA, no qual a Quinta Turma denegou a ordem de habeas corpus em favor de acusados de delitos informáticos, “não há como não reconhecer que, uma vez em liberdade, os pacientes não terão absolutamente nenhuma dificuldade em acessar à internet através de qualquer computador e utilizar o programa desenvolvido por eles próprios ou, em último caso, confeccionar outro, pois são eles pessoas de profundo conhecimento técnico, tristemente utilizado a serviço do ilícito, em tese (HC n. 34.715/PA relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, DJ de 18/10/2004).
Assim, considera-se idônea a fundamentação do decreto prisional assentado na periculosidade do agente, evidenciada pelo modus operandi, e na necessidade de interromper atuação de líder de organização criminosa voltada para a prática de crimes informáticos.
Doutrina“Praticadas por meio facilitador e com alta capacidade lesiva”, em circunstâncias que “encorajam a ação do delinquente” (SYDOW, Spencer Toth, Crimes informáticos e suas vítimas. 2ª ed., versão eletrônica. São Paulo: Saraiva, 2015)
LegislaçãoArts. 1°, § 1º, da Lei n. 9.613/1998; 155, § 4º-B, do Código Penal; Lei n. 14.155, de 27/5/2021; PL n. 4.554/2020.
HC 653.515-RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, Rel. Acd. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por maioria, julgado em 23/11/2021.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Quebra da cadeia de custódia da prova. Consequências para o processo penal. Princípio da mesmidade. Necessidade do magistrado sopesar todos os elementos produzidos na instrução
As irregularidades constantes da cadeia de custódia devem ser sopesadas pelo magistrado com todos os elementos produzidos na instrução, a fim de aferir se a prova é confiável.
A controvérsia que se estabelece diz respeito às consequências para o processo penal da quebra da cadeia de custódia da prova.
Segundo o disposto no art. 158-A do CPP, “Considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte”.
É imperioso salientar que a autenticação de uma prova é um dos métodos que assegura ser o item apresentado aquilo que se afirma ele ser, denominado pela doutrina de princípio da mesmidade.
Com vistas a salvaguardar o potencial epistêmico do processo penal, a Lei n. 13.964/2019 (Pacote Anticrime) disciplinou – de maneira, aliás, extremamente minuciosa – uma série de providências que concretizam o desenvolvimento técnico-jurídico da cadeia de custódia.
De forma bastante sintética, pode-se afirmar que o art. 158-B do CPP detalha as diversas etapas de rastreamento do vestígio: reconhecimento, isolamento, fixação, coleta, acondicionamento, transporte, recebimento, processamento, armazenamento e descarte. O art. 158-C, por sua vez, estabelece o perito oficial como sujeito preferencial a realizar a coleta dos vestígios, bem como o lugar para onde devem ser encaminhados (central de custódia). Já o art. 158-D disciplina como os vestígios devem ser acondicionados, com a previsão de que todos os recipientes devem ser selados com lacres, com numeração individualizada, “de forma a garantir a inviolabilidade e a idoneidade do vestígio”.
Uma das mais relevantes controvérsias que essa alteração legislativa suscita diz respeito às consequências jurídicas, para o processo penal, da quebra da cadeia de custódia da prova (break on the chain of custody) ou do descumprimento formal de uma das exigências feitas pelo legislador no capítulo intitulado “Do exame de corpo de delito, da cadeia de custódia e das perícias em geral”: essa quebra acarreta a inadmissibilidade da prova e deve ela (e as dela decorrentes) ser excluída do processo? Seria caso de nulidade da prova? Em caso afirmativo, deve a defesa comprovar efetivo prejuízo, para que a nulidade seja reconhecida (à luz da máxima pas de nulitté sans grief)? Ou deve o juiz aferir se a prova é confiável de acordo com todos os elementos existentes nos autos, a fim de identificar se eles são capazes de demonstrar a sua autenticidade e a sua integridade?
Se é certo que, por um lado, o legislador trouxe, nos arts. 158-A a 158-F do CPP, determinações extremamente detalhadas de como se deve preservar a cadeia de custódia da prova, também é certo que, por outro, quedou-se silente em relação aos critérios objetivos para definir quando ocorre a quebra da cadeia de custódia e quais as consequências jurídicas, para o processo penal, dessa quebra ou do descumprimento de um desses dispositivos legais.
Respeitando aqueles que defendem a tese de que a violação da cadeia de custódia implica, de plano e por si só, a inadmissibilidade ou a nulidade da prova, de modo a atrair as regras de exclusão da prova ilícita, parece ser mais adequada aquela posição que sustenta que as irregularidades constantes da cadeia de custódia devem ser sopesadas pelo magistrado com todos os elementos produzidos na instrução, a fim de aferir se a prova é confiável. Assim, à míngua de outras provas capazes de dar sustentação à acusação, deve a pretensão ser julgada improcedente, por insuficiência probatória, e o réu ser absolvido.
DoutrinaDoutrinariamente, a cadeia de custódia da prova tem sido conceituada como um “método por meio do qual se pretende preservar a integridade do elemento probatório e assegurar sua autenticidade em contexto de investigação e processo” (PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Marcial Pons, 2021, p. 162). “a cadeia de custódia fundamenta-se no princípio universal de ‘autenticidade da prova’, definido como ‘lei da mesmidade’, isto é, o princípio pelo qual se determina que ‘o mesmo’ que se encontrou na cena [do crime] é ‘o mesmo’ que se está utilizando para tomar a decisão judicial” (PRADO, Geraldo. op. cit., p. 151). “imputação objetiva da ilicitude probatória” (PRADO, Geraldo. A cadeia de custódia da prova no processo penal. 2. ed. Marcial Pons. São Paulo, 2021, p. 205-211) Não se pode olvidar que, consoante bem observa Rodrigo de Andrade Figaro Caldeira, “a preservação da cadeia de custódia das provas e da prova da cadeia de custódia garante o pleno exercício, em especial, do contraditório sobre a prova, possibilitando o rastreamento da prova apresentada e a fiscalização do histórico de posse da prova, a fim de aferir sua autenticidade e integridade” ( DUTRA, Bruna Martins Amorim; AKERMAN, William (org.).Cadeia de custódia: arts. 158-A a 158-F do CPP. In: Pacote Anticrime.
Análise crítica à luz da Constituição Federal. Revista dos Tribunais, 2021, p. 209-210). “a cadeia de custódia em si deve ser entendida como a sucessão encadeada de pessoas que tiveram contato com a fonte de prova real, desde que foi colhida, até que seja apresentada em juízo” (BADARÓ, Gustavo, A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson B. Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 254) “a preservação da cadeia de custódia das provas e da prova da cadeia de custódia garante o pleno exercício, em especial, do contraditório sobre a prova, possibilitando o rastreamento da prova apresentada e a fiscalização do histórico de posse da prova, a fim de aferir sua autenticidade e integridade” (CALDEIRA, Andrade Figaro Caldeira, Cadeia de custódia: arts. 158-A a 158-F do CPP. In: DUTRA, Bruna Martins Amorim; AKERMAN, William (org.).
Pacote Anticrime. Análise crítica à luz da Constituição Federal. Revista dos Tribunais, 2021, p. 209-210). “o descumprimento de alguma regra legal pode não ensejar a sua automática imprestabilidade, tendo em vista a possibilidade de a fiabilidade ser provada por outros meios. Da mesma forma, a prova pode perder sua fiabilidade sem que se tenha descumprido norma expressa”. Isso porque, segundo alerta o autor, o cumprimento formal das regras não impede que alguém (um perito, por exemplo) adultere a prova, caso realmente esteja de má-fé (CAMBI, Eduardo; SILVA, Danni Sales; MARINELA, Fernanda (org.). A quebra da cadeia de custódia e suas consequências. In: Pacote Anticrime. v. II. Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2021, p. 111). Em sentido diverso, há uma corrente que sustenta que a violação da cadeia de custódia decorre da inobservância de normas processuais, o que torna a prova ilegítima; aplica-se, nesse caso, a teoria das nulidades. Exemplificativamente: LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 8. ed. atual. ampl. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 722-723. O Código de Processo Penal colombiano, por exemplo, prevê que a inobservância das regras da cadeia de custódia implica a necessidade de que ela seja comprovada por outros meios (“Art. 277. A demonstração da autenticidade dos elementos materiais probatórios e evidência fática não submetidos a cadeia de custódia estará a cargo da parte que os apresente”). Ou seja, o cumprimento do regime legal estabelece presunção de autenticidade da prova, mas o descumprimento do previsto em lei não impede que ela seja demonstrada de outras formas (BRANDÃO, Bruno Monteiro de Castro. A quebra da cadeia de custódia e suas consequências. In: CAMBI, Eduardo; SILVA, Danni Sales; MARINELA, Fernanda (org.).
Pacote Anticrime. v. II. Curitiba: Escola Superior do MPPR, 2021, p. 118). […] as irregularidades da cadeia de custódia não são aptas a causar ilicitude da prova, devendo o problema ser resolvido, com redobrado cuidado e muito maior esforço justificativo, no momento da valoração. Não é a cadeia de custódia a prova em si. Mas sim uma “prova sobre prova”. Sua finalidade é assegurar a autenticidade e integridade da fonte de prova, ou a sua mesmidade. Ela, em si, não se destina a demonstrar a veracidade ou a falsidade de afirmações sobre fatos que integram o thema probandum.
Ainda que com cuidados redobrados, é possível que, mesmo em casos nos quais haja irregularidade na cadeia de custódia, a prova seja aceita e admitida sua produção e valoração. Por outro lado, no caso de vícios mais graves, em que se tenha dúvidas sobre a autenticidade ou integridade da fonte de prova, em que haja uma probabilidade de que a mesma tenha sido adulterada, substituída ou modificada, isso enfraquecerá seu valor, cabendo ao julgador, motivadamente, fazer tal análise. (BADARÓ, Gustavo. A cadeia de custódia e sua relevância para a prova penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson B. Temas atuais da investigação preliminar no processo penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018, p. 535). “A certeza perseguida pelo direito penal mínimo está, ao contrário, em que nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possa ficar impune” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 85).
LegislaçãoArt. 158-A a 158-F, 155, caput, art. 157, §§ 1º e 2º do CPP; art. 5º, LV, da CF; arts. 33, caput, e 35, caput, da Lei n. 11.343/2006
REsp 1.948.350-RS, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios), Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 09/11/2021, DJe de 17/11/2021
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Recusa de oferecimento do acordo de não persecução penal. Não obrigatoriedade de intimação do investigado pelo Ministério Público para fins do art. 28, §14º do CPP.
Não há necessidade do Ministério Público, ao entender pelo não cabimento do acordo de não persecução penal, intimar o acusado para que esta possa recorrer da decisão, nos termos do art. 28-A, § 14, do CPP.
O acordo de não persecução penal não constitui direito subjetivo do investigado, podendo ser proposto pelo Ministério Público conforme as peculiaridades do caso concreto e quando considerado necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção da infração penal.
Por outro lado, o art. 28-A, § 14, do CPP garantiu a possibilidade de o investigado requerer a remessa dos autos ao órgão superior do Ministério Público nas hipóteses em que a Acusação tenha se recusado a oferecer a proposta de acordo de não persecução penal. A norma condiciona o direito de revisão à observância da forma prevista no art. 28 do CPP, cuja redação a ser observada continua sendo aquela anterior à edição da Lei n. 13.964/2019, tendo em vista que a nova redação está com a eficácia suspensa desde janeiro de 2020 em razão da concessão de medida cautelar, nos autos da ADI n. 6.298/DF.
No entanto, na legislação vigente atualmente que permanece em vigor não existe a obrigatoriedade do Ministério Público notificar o investigado em caso de recusa em se propor o acordo de não persecução penal.
Desse modo, o Juízo de 1º grau deve decidir acerca do recebimento da denúncia, sem que exija do Ministério Público a comprovação de que intimou o acusado, até porque não existe condição de procedibilidade não prevista em lei.
Apenas a partir desse momento processual, caso seja recebida a denúncia, será o acusado citado, oportunidade em que poderá, por ocasião da resposta a acusação, questionar o não oferecimento de acordo de não persecução penal por parte de Ministério Público e requerer ao Juiz que remeta os autos ao órgão superior do Ministério Público, nos termos do art. 28, caput e 28-A, § 14, ambos do CPP.
Embora seja assegurado o pedido de revisão por parte da defesa do investigado, impende frisar que o Juízo de 1º grau analisará as razões invocadas, considerando a legislação em vigor atualmente (art. 28, caput do CPP), e poderá, fundamentadamente, negar o envio dos autos à instância revisora, em caso de manifesta inadmissibilidade do ANPP, por não estarem presentes, por exemplo, seus requisitos objetivos, pois o simples requerimento do acusado não impõe a remessa automática do processo.
Doutrina“Uma vez oferecida denúncia pelo Membro do Ministério Público, com a respectiva recusa em propor o acordo de não persecução penal, a defesa poderá requerer ao Juiz a remessa dos autos ao órgão superior de revisão do Ministério Público, para analisar a negativa do Promotor ou Procurador de 1º Grau. Veja-se que ? apesar da vagueza do § 14, do art. 28-A, CPP ? esse pedido de remessa deverá ser formulado ao Juiz, pois caso tenha ocorrido a negativa do ANPP, haverá, obviamente, oferecimento de denúncia (e essa recusa, como já dito, deve ser feita na quota que acompanha a acusação), estando, portanto, os autos, sob a responsabilidade do magistrado, para apreciação. (…) Mas, então, surge a seguinte pergunta: quando deve ser formulado esse pedido de remessa dos autos ao órgão revisional do MP? Existe prazo para ele ser formulado? (…) Desse modo, nos parece que a melhor solução seria entender que o pedido ao juiz de remessa dos autos ao órgão de revisão do Ministério Público deverá ser feito por ocasião e no prazo da resposta à acusação, prevista nos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal” (CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira, Manual do acordo de não persecução penal. Salvador, ed. Juspodivm, 2020, p. 167-173).
LegislaçãoArt. 28, caput, 28-A, § 14, do CPP
AgRg no REsp 1.954.056-PR, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 13/12/2021, DJe 16/03/2021.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Readequação do bloqueio de valores. Reformatio in pejus. Art. 617 do Código de Processo Penal. Inocorrência.
A readequação do bloqueio de valores não constitui reformatio in pejus, disciplinada no art. 617 do Código de Processo Penal.
Inicialmente cumpre salientar que, o Tribunal de origem deu parcial provimento à apelação da defesa tão somente para readequar a medida constritiva a título de arresto.
A proibição de reforma para pior, disciplinada no art. 617 do Código de Processo Penal, visa impedir que a situação do réu seja agravada em virtude do julgamento do seu próprio recurso, ainda que para correção de erro material.
No entanto, in casu, não se verifica a alegada reformatio in pejus, porquanto não houve piora da situação do réu, o que ocorreu foi a readequação do bloqueio de valores – no limite do requerido pelo órgão ministerial em relação ao valor a ser bloqueado -, em razão da reconhecida incompatibilidade da medida de sequestro para assegurar o valor da pena de multa imposta ao réu que pôde ser constrito a título de arresto.
LegislaçãoCPP, art. 617
AgRg no RMS 62.562-MT, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Rel. Acd. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, por maioria, julgado em 07/12/2021, DJe 13/12/2021
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Busca e apreensão. Medida invasiva anterior aos indícios de autoria. Fishing expedition. Impossibilidade. Garantias constitucionais. Violação.
Os indícios de autoria antecedem as medidas invasivas, não se admitindo em um Estado Democrático de Direito que primeiro sejam violadas as garantias constitucionais para só então, em um segundo momento, e eventualmente, se justificar a medida anterior, sob pena de se legitimar verdadeira fishing expedition.
Inicialmente, constata-se que a investigação que ensejou a busca e apreensão na pessoa jurídica não lhe dizia respeito, referindo-se apenas à investigação de crimes de organização criminosa, com participação de funcionário público, e de peculato contra a Prefeitura Municipal de Poconé/MT.
De uma leitura atenta do pedido e da decisão que deferiu a medida de busca e apreensão na sede da agravante, constata-se, sem grande esforço, que não foi indicado sobre a pessoa jurídica nenhum indício de participação nos delitos narrados. A própria autoridade policial afirmou que “somente após a análise dos e-mails poderá se verificar se houve conluio fraudulento e prévio entre a Recorrente e os servidores público da Prefeitura de Poconé, a fim de fraudar a apropriar de dinheiro público”.
Os indícios de autoria antecedem as medidas invasivas, não se admitindo em um Estado Democrático de Direito que primeiro sejam violadas as garantias constitucionais para só então, em um segundo momento, e eventualmente, se justificar a medida anterior, sob pena de se legitimar verdadeira fishing expedition.
Como é de conhecimento, “Fishing expedition, ou pescaria probatória, é a procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem ‘causa provável’, alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém”.
Ademais, chama a atenção também a informação constante da decisão que deferiu a busca e apreensão, no sentido de que “as investigações concluíram que os documentos podem ser encontrados em dois locais diferentes, razão pela qual se faz necessária a medida de busca e apreensão em todos os endereços indicados e de forma simultânea”.
Ora, se os documentos podem ser encontrados no Poder Executivo Municipal de Poconé, vítima do peculato sob investigação, não há porque se violar direito constitucional da agravante, que não figura nem como vítima nem como autora dos delitos sob investigação, sem que se tenham declinados quaisquer elementos que autorizem a violação de seus direitos constitucionais.
DoutrinaDenomina-se pescaria (ou expedição) probatória a prática relativamente comum de se aproveitar dos espaços de exercício de poder para subverter a lógica das garantias constitucionais, vasculhando-se a intimidade, a vida privada, enfim, violando-se direitos fundamentais, para além dos limites legais. O termo se refere à incerteza própria das expedições de pesca, em que não se sabe, antecipadamente, se haverá peixe, nem os espécimes que podem ser fisgados, muito menos a quantidade, mas se tem “convicção” (o agente não tem provas, mas tem convicção). Com o uso de tecnologia (Processo Penal 4.0), cada vez mais se obtém a prova por meios escusos (especialmente em unidades de inteligência e/ou investigações paralelas, todas fora do controle e das regras democráticas), requentando-se os “elementos obtidos às escuras” por meio de investigações de origem duvidosa, “encontro fortuito” dissimulado ou, ainda, por “denúncias anônimas fakes”.
HC 684.254-MG, Rel. Min. Reynaldo Soares Da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 23/11/2021, DJe 29/11/2021
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Promotor de Justiça. Prática de crime comum que não guarda relação com o exercício da função. Competência para julgamento. Tribunal de Justiça. Extensão do entendimento exarado pelo STF na QO na AP 937. Inviabilidade.
A competência para o julgamento de crime praticado por Promotor de Justiça, em contexto que não guarda relação com as atribuições do cargo, é do Tribunal de Justiça, revelando-se inviável a extensão do entendimento exarado pelo STF na QO na AP 937.
Cinge-se a controvérsia a definir se a competência para o julgamento de suposto crime praticado por Promotor de Justiça, em contexto que não guarda relação com as atribuições do cargo, é do Tribunal de Justiça, por força do disposto no art. 96, III, da Constituição Federal, ou se seria da Justiça de 1º grau, em razão da interpretação restritiva de prevalência do foro por prerrogativa de função dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Questão de Ordem na AP 937/RJ.
Inicialmente, o precedente estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da QO na AP 937/RJ não deliberou expressamente sobre o foro para processo e julgamento de magistrados e membros do Ministério Público, limitando-se a estabelecer tese em relação ao foro por prerrogativa de função de autoridades indicadas na Constituição Federal que ocupam cargo eletivo.
A interpretação se corrobora tanto pelo fato de que, na Questão de Ordem no Inquérito 4.703-DF, Primeira Turma, Rel. Ministro Luiz Fux, os eminentes Ministros Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes ressalvaram a pendência deliberativa da questão, em relação aos magistrados e membros do Ministério Público (CF/88, art. 96, III), quanto pelo fato de que a Suprema Corte, em 28/5/2021, nos autos do ARE 1.223.589/DF, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio, por unanimidade, afirmou que a questão ora em debate possui envergadura constitucional, reconhecendo a necessidade de se analisar, com repercussão geral (Tema 1.147), a possibilidade de o STJ, com amparo no artigo 105, inciso I, alínea “a”, da CF, processar e julgar Desembargador por crime comum, ainda que sem relação com o cargo.
A Corte Especial do STJ reconheceu a competência do STJ para o julgamento de delito cometido por desembargador, entendendo inabalada a existência de foro por prerrogativa de função, ainda que o crime a ele imputado não estivesse relacionado às funções institucionais de referido cargo público e não tenha sido praticado no exercício do cargo.
Salientou-se ser recomendável a manutenção do foro por prerrogativa de função de desembargador, perante o Superior Tribunal de Justiça, ainda que o suposto crime não tenha sido praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função, uma vez que “o julgamento de Desembargador por Juiz vinculado ao mesmo Tribunal gera situação, no mínimo, delicada, tanto para o julgador como para a hierarquia do Judiciário, uma vez que os juízes de primeira instância têm seus atos administrativos e suas decisões judiciais imediatamente submetidas ao crivo dos juízes do respectivo Tribunal de superior instância” e que “A atuação profissional do juiz e até sua conduta pessoal, podem vir a ser sindicados, inclusive para fins de ascensão funcional, pelos desembargadores do respectivo Tribunal. Essa condição, inerente à vida profissional dos magistrados, na realidade prática, tende a comprometer a independência e imparcialidade do julgador de instância inferior ao conduzir processo criminal em que figure como réu um desembargador do Tribunal ao qual está vinculado o juiz singular”. ” (QO na Sd 705/DF, Rel. Ministro Raul Araújo, Corte Especial, DJe 19/12/2018).
Ainda que não haja relação de hierarquia entre promotor de justiça e magistrado de 1º grau, revela-se inviável a extensão do entendimento exarado na QO na AP 937 a promotores acusados de crimes que não guardam relação com as atribuições da função.
A uma, porque a ratio decidendi do precedente da Corte Suprema teve como mote a busca de de atenuação de problema prático decorrente do fato de que eventuais diplomações sucessivas de detentores de mandatos eletivos – ou mesmo de ocupantes de cargos em comissão de investidura provisória – não raro conduzem a constantes alterações dos foros competentes, com prejuízos à efetividade da aplicação da justiça criminal, situação que não corresponde à de ocupantes de cargos vitalícios detentores de foro por prerrogativa de função.
A duas, porque o comprometimento da imparcialidade do órgão julgador ou acusador não se revela apenas nas hipóteses em que juiz de 1º grau ou promotor se deparam com a situação de valorar conduta criminosa atribuída ao chefe da instituição a que pertencem. A imparcialidade indispensável para a realização da efetiva justiça criminal ainda estaria comprometida nas hipóteses em que, por dever de ofício, magistrado e membro do Ministério Público tivessem que desempenhar suas funções em processo criminal em que figurasse como réu um colega de comarca ou de promotoria, perante ainda o juízo de primeiro grau da própria comarca.
A três, porque resvala na ofensa ao princípio da isonomia a restrição do alcance do foro por prerrogativa de função de magistrados e promotores (art. 96, III, da CF), quando esta Corte, em várias ocasiões, já afirmou que deve ser mantido o foro por prerrogativa de função de Desembargadores, ainda que respondam por crime não praticado em razão e durante o exercício do cargo ou função.
Doutrina“E os membros do Poder Judiciário e do Ministério Público? Ao menos por ora, estão fora desse novo entendimento. Até o momento do fechamento desta edição, não houve manifestação do STF sobre o tema e tem prevalecido o entendimento de que se aplicam as regras anteriores, ou seja: se alguém comete um crime (qualquer crime) hoje e posteriormente vem a tomar posse como juiz ou promotor (ou ascende pelo quinto constitucional para algum tribunal), ele adquire a prerrogativa, que valerá para qualquer crime (sem a limitação de ter que ser propter officium) até que seja exonerado ou aposentado. Assim, os juízes e promotores, por exemplo, seguem com a prerrogativa de serem julgados pelo respectivo tribunal de justiça, por qualquer crime que venham a praticar (independentemente de ser ou não em razão do cargo) e também pelos crimes cometidos antes da posse. Para eles, segue valendo a regra anterior de que, uma vez empossados, adquirem a prerrogativa inclusive para o julgamento dos crimes praticados anteriormente.” (Lopes Junior, Aury Celso L. Direito processual penal. Editora Saraiva, 2020, p. 323 – negritei)
“Assim, é impossível simplesmente estender a ratio decidendi da Questão de Ordem da Ação Penal n. 937/RJ para as carreiras jurídicas portadoras de garantias constitucionais, principalmente no que se refere a vitaliciedade. É de se observar, que na Petição 7.115/DF, a decisão monocrática do STF foi aplicada a um Ministro do Tribunal Superior Eleitoral que detinha cargo temporário exercido por mandato” (Caldeira, Rodrigo de Andrade Figaro. Foro por prerrogativa de função: conexão e continência. Ed Lumen Juris. Rio de Janeiro. 2020, pág 77/78 – negritei).
“A primeira questão a ser analisada é a do indivíduo que não goza de foro por prerrogativa de função e passa a exercer um cargo ou função – pouco importa se em razão de admissão por concurso público, de nomeação para cargo em confiança ou de eleição – para o qual seja prevista tal prerrogativa. Por exemplo, um cidadão comum que toma posse num concurso para juiz de direito ou que é nomeado Ministro ou que se elege Presidente da República. Considerando que tal indivíduo já tivesse praticado um fato tido por criminoso, antes da posse no cargo, a mudança de seu status profissional ou político implicaria mudança da competência penal? A resposta é positiva.” (Badaró, Gustavo Tadeu Ivahy. Juiz Natural no Processo Penal. Ed RT Thomson Reuters, 2019, p 273).
LegislaçãoCF, arts. 96, III, e 105, I, “a”
REsp 1.847.488-SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por maioria, julgado em 20/04/2021, DJe 26/04/2021
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Ações penais. Mesmos fatos. Justiça Comum Estadual e Justiça Eleitoral. Garantia contra dupla incriminação. Violação.
O ajuizamento de duas ações penais referentes aos mesmos fatos, uma na Justiça Comum Estadual e outra na Justiça Eleitoral, viola a garantia contra a dupla incriminação.
No caso, os mesmos fatos que levaram ao oferecimento da denúncia discutida também foram apreciados em ação de improbidade administrativa e ação penal na Justiça Eleitoral, sendo que ambas culminaram com a absolvição.
Frisa-se que a sentença absolutória por ato improbidade não vincula o resultado do presente feito, porquanto proferida na esfera do direito administrativo sancionador que é independente da instância penal, embora seja possível, em tese, considerar como elementos de persuasão os argumentos nela lançados.
No entanto, quanto à absolvição perante a Justiça Eleitoral, a questão adquire peculiaridades que reclamam tratamento diferenciado. Isso porque a sentença, não recorrida pelo MPE, foi proferida no exercício de verdadeira jurisdição criminal, de modo que o prosseguimento da ação penal da qual se originou este habeas corpus encontra óbice no princípio da vedação à dupla incriminação, também conhecido como double jeopardy clause ou (mais comumente no direito brasileiro) postulado do ne bis in idem, ou ainda da proibição da dupla persecução penal.
Embora não tenha previsão expressa na Constituição Federal de 1988, a garantia do ne bis in idem é certamente um limite implícito ao poder estatal, derivada da própria coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da Carta Magna) e decorrente de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil (§ 2º do mesmo art. 5º). Isso porque a Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8º, n. 4) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14, n. 7), incorporados ao direito brasileiro com status supralegal pelos Decretos 678/1992 e 592/1992, respectivamente, tratam da vedação à dupla incriminação.
Tendo o Ministério Público, instituição una (à luz do art. 127, § 1º, da CF/1988) ajuizado duas ações penais referentes aos mesmos fatos, uma na Justiça Comum Estadual e outra na Justiça Eleitoral, há violação à garantia contra a dupla incriminação.
Por conseguinte, a independência de instâncias não permite, por si só, a continuidade da persecução penal na Justiça Estadual, haja vista que a decisão proferida na Justiça Especializada foi de natureza penal, e não cível. Tanto o processo resolvido na esfera eleitoral como o presente versam sobre crimes, e como tais se inserem na jurisdição criminal, una por natureza. O que diferencia as hipóteses de atuação da Justiça Comum Estadual e da Justiça Eleitoral, quando exercem jurisdição penal, é a sua competência; ambas, contudo, realizam julgamentos em cognição exauriente sobre a prática de condutas delitivas. Sendo distintas as imputações vertidas num e noutro processo, é certo que cada braço do Judiciário poderá julgá-las; inobstante, tratando-se de acusações idênticas, não é o argumento genérico de independência entre as instâncias que permitirá o prosseguimento da ação penal remanescente.
Doutrina“o princípio da dupla incriminação não era inteiramente desconhecido por gregos e romanos, embora o ambiente jurídico fosse bastante diferente. Este princípio encontrou expressão final no Digesto de Justiniano, como o preceito de que o governador não deverá permitir que a mesma pessoa seja acusada novamente por um crime do qual já foi absolvida” (SIGLER, JAY. A history of double jeopardy. The american journal of legal history, Oxford, v. 7, n. 4., 1963, p. 283, tradução direta).
Numa das melhores obras sobre o tema em nosso país, fala-se mesmo na velada presença da proibição da dupla persecução penal no Direito Brasileiro, uma vez que está ausente da Constituição de modo explícito (CRUZ, Rogerio Schietti Machado. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 105).
“sem proteção contra a dupla incriminação, a capacidade do réu de conduzir sua vida seria impedida pelo medo de nova exposição à vergonha, ao custo e ao suplício do processo. Assim, a garantia protege o interesse do acusado à tranquilidade, ou seu interesse em poder, de uma vez por todas, concluir seu confronto com a sociedade” (BURTON, Donald Eric. A closer look at the Supreme Court and the double jeopardy clause. Ohio State Law Journal, Columbus, v. 49, n. 3, 1988, p. 803, tradução direta).
“o ne bis in idem somente poderia ser cumprido quando baseado na ideia de limitação do poder estatal. Isso porque, para cada ato delituoso não pode ser dada mais do que uma resposta. Do contrário, o homem seria submetido a uma situação jurídica indefinida, indigna com a condição humana […]. E, nos tempos presentes, sob o signo dos valores edificantes dos Estados Democráticos de Direito, tal desiderato já não se coaduna com a necessária tutela jurídica da liberdade dos indivíduos que estão sob o ius persequendi estatal”. (SABOYA, Keity. Ne Bis in Idem: história, teoria e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, pp. 163-164).
Além disso, o risco de condenações errôneas, em virtude da inobservância deste princípio, é uma preocupação prática relevante, por “diminuir a capacidade do réu de se defender, não apenas em razão dos crescentes custos da litigância, mas também porque cada julgamento dá à acusação uma oportunidade de prever e se ajustar à estratégia defensiva” (HESSICK, Carissa Byrne; HESSICK, F. Andrew. Double jeopardy as a limit on punishment. Cornell Law Review, Ithaca, v. 97, n. 1, 2011, p. 59, tradução direta).
Realmente, é indubitável “a incidência da regra do ne bis in idem nas hipóteses em que distintas justiças – no plano internacional e no plano interno de um Estado – se ocupam do mesmo comportamento ilícito.” (CRUZ, ob. cit., p. 221; grifou-se).
“é importante realçar, ainda, que, embora, eventualmente, existam entre as diversas imputações diferenças de tempo, de lugar, de modo de execução, ou mesmo do objeto do fato imputado, é possível a subsistência da identidade nuclear do fato, devendo, para tanto, ser analisado o acontecimento singularmente ocorrido. […]. Além do mais, não se há de esquecer que, como estabelecido desde os romanos, os fatos imputados no processo compreendem o deduzido, assim como o dedutível. Com efeito, a resolução do caso penal, com a prolação de decisão definitiva, põe termo ao conteúdo da pretensão processual penal, em sua totalidade, estendendo-se a proibição de renovação da demanda não apenas sobre a ‘porção do fato’ descrito no processo, mas sobre todo o fato, ainda que tenha havido deficiência na imputação. Assim, […], sustenta-se que a proibição (ne) de imposição de mais de uma (bis) consequência jurídico-repressiva pela prática dos mesmos fatos (idem) ocorre, ainda, quando o comportamento definido espaço-temporalmente imputado ao acusado não foi trazido por inteiro para apreciação do juízo. Isso porque o objeto do processo eì informado pelo princípio da consunção, pelo qual tudo aquilo que poderia ter sido imputado ao acusado, em referência a dada situação histórica, e não o foi, jamais poderá vir a se^-lo novamente. E também se orienta pelos princípios da unidade e da indivisibilidade, devendo o caso penal ser conhecido e julgado na sua totalidade – unitária e indivisivelmente – e, mesmo quando não o tenha sido, considerar-se-á irrepetivelmente decidido”. (SABOYA, ob. cit., pp. 180-181).
“manifesta prevalência do sopesamento dos fatos, e não dos conceitos normativos dos crimes, como critério para a identificação de duas ações penais, conforme se depreende da leitura dos julgados que indica, a saber: Recurso de HC 52.959, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Bilac Pinto, DJ de 21/3/75; Recurso Criminal 1.299, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Rodrigues Alckmin, DJ de 25/11/77; Recurso de HC 62.715-3, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 29/11/85; Recurso de HC 63.989-4, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Octavio Gallotti, DJ de 1/8/86; Recurso de HC 66.317-6, 2ª Turma, unânime, Rel. Min. Aldir Passarinho, DJ de 1/7/88; HC 71.125-1, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 9/9/94; HC 74.171-1, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 20/8/96; HC 76.550-1, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 18/9/98; HC 76.852-8, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Sydney Sanches, DJ de 10/3/2000.” (CRUZ, ob. cit., pp. 107-108. O trabalho por ele referenciado, de MAIA, Rodolfo Tigre, é O princípio do bis in idem e a Constituição Brasileira de 1988. Boletim Científico da Escola Superior do Ministério Público da União, ano 4, n. 16, pp. 11-75, jul./set.2005).
Quanto aos demais acusados, os quais não integraram o feito criminal eleitoral, poder-se-ia pensar que, como não foram julgados pela sentença respectiva (e considerando a divisibilidade das ações penais públicas), seria cabível a restauração da decisão do juiz de primeiro grau que, na Justiça Comum Estadual, recebeu a denúncia em seu desfavor. Afinal, a vedação à dupla incriminação tem seus limites subjetivos, pois “caso determinado acusado seja absolvido em virtude da ausência de provas, isso não significa que outro coautor ou partícipe não possa ser julgado posteriormente pela mesma imputação” (LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal. 8. ed. Salvador: JusPodivm, 2020, p. 1.231).
LegislaçãoCF, arts. 5º, XXXVI, e § 2º, e 127, § 1º
Convenção Americana de Direitos Humanos, art. 8º, n. 4
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, art. 14, n. 7
CP, art. 288
Lei n. 9.613/1998, art. 1º
CPP, arts. 78, IV, e 580 do CPP
Código Eleitoral, art. 350
CPC/2015, art. 282, § 2º
REsp 1.922.012-RS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 05/10/2021, DJe 08/10/2021.
DIREITO PENAL
Execução Penal. Livramento condicional. Período de prova. Limite temporal previsto no art. 75 do Código Penal. Aplicabilidade.
Aplica-se o limite temporal previsto no art. 75 do Código Penal ao apenado em livramento condicional.
Inicialmente cumpre salientar que, no caso em tela, o Juiz da Execução Penal havia negado a extinção da pena, eis que entendeu inaplicável a consideração do tempo em livramento condicional para alcance do limite do art. 75 do CP.
Deve ser sopesado que o art. 75 do CP decorre de balizamento da duração máxima das penas privativas de liberdade, em atenção ao disposto na Emenda Constitucional n. 1 de 17/10/1969 que editou o novo texto da Constituição Federal de 24/01/1967.
Analisando-se a legislação infraconstitucional, tem-se que o livramento condicional é um instituto jurídico positivado, tanto no CP (arts. 83 a 90) quanto na Lei n. 7.210/1984 (Lei de Execução Penal – LEP) (arts. 131 a 146), a ser aplicado ao apenado para que ele fique solto, mediante condições, por um tempo determinado e denominado de “período de prova” (art. 26, II, da LEP), com a finalidade de extinguir a pena privativa de liberdade. Ultrapassado o período de prova, ou seja, não revogado o livramento condicional, encerra-se seu período declarando-se extinta a pena privativa de liberdade.
Embora não se extraia da leitura dos dispositivos legais expressamente o prazo de duração do livramento condicional, é pacífica a compreensão de que o tempo em livramento condicional corresponderá ao mesmo tempo restante da pena privativa de liberdade a ser cumprida. Inclusive e em reforço de tal compreensão, o CP e a LEP dispõem que o tempo em livramento condicional será computado como tempo de cumprimento de pena caso o motivo de revogação do livramento condicional decorra de infração penal anterior à vigência do referido instituto.
Com o norte nos princípios da isonomia e da razoabilidade, podemos afirmar que o instituto do livramento condicional deve produzir os mesmos efeitos para quaisquer dos apenados que nele ingressem e tais efeitos não devem ser alterados no decorrer do período de prova, ressalvado o regramento legal a respeito da revogação, devendo o término do prazo do livramento condicional coincidir com o alcance do limite do art. 75 do CP.
Logo, em atenção ao tratamento isonômico, o efeito ordinário do livramento condicional (um dia em livramento condicional equivale a um dia de pena privativa de liberdade), aplicado ao apenado em pena inferior ao limite do art. 75 do CP, deve ser aplicado em pena privativa de liberdade superior ao referido limite legal. Sob outra ótica, princípio da razoabilidade, não se pode exigir, do mesmo apenado em livramento condicional sob mesmas condições, mais do que um dia em livramento condicional para descontar um dia de pena privativa de liberdade, em razão apenas de estar cumprindo pena privativa de liberdade inferior ou superior ao limite do art. 75 do CP.
Assim, o Juiz da Execução Penal, para conceder o livramento condicional, observará a pena privativa de liberdade resultante de sentença(s) condenatória(s). Alcançado o requisito objetivo para fins de concessão do livramento condicional, a duração dele (o período de prova) será correspondente ao restante de pena privativa de liberdade a cumprir, limitada ao disposto no art. 75 do CP.
Legislaçãoart. 75 do CP arts. 83 a 90 do CP; arts. 131 a 146 da Lei n. 7.210/1984; art. 26, II da Lei n. 7.210/1984.
SúmulasSúmula n. 715 do STF.
Saiba mais:
RHC 136.911-MT, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 09/03/2021, DJe 19/03/2021.
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Feminicídio tentado. ADPF n. 779/DF. Tese de legítima defesa da honra. Inconstitucionalidade. Utilização em sede de habeas corpus. Impossibilidade.
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF n. 779/DF, considerou inconstitucional a tese da legítima defesa da honra, ainda que utilizada no Tribunal de Júri, não sendo possível dar guarida à referida tese em sede de habeas corpus.
Inicialmente cumpre salientar que a defesa tenta diminuir a gravidade da conduta do recorrente por intermédio do rechaçado instituto da “legítima defesa da honra”. Aponta como “normal” a reação violenta ao descontentamento com o relacionamento e coloca, ainda, a culpa na vítima por tamanha brutalidade.
Hoje se colhe os frutos de um período no qual a “legítima defesa da honra” encontrava guarida na Justiça brasileira. É justamente a normalização desse tipo de reação violenta e intempestiva que coloca o país no patamar de países com os mais altos índices de feminicídio.
Não se pode mais dar espaço a esse tipo de argumentação. A jurisprudência do Tribunal da Cidadania, inclusive, é firme ao pontuar que o ciúme autoriza, inclusive, a exasperação da pena-base por derivar da sensação de domínio do homem em detrimento da mulher.
Por fim, o eminente Ministro Dias Toffoli deferiu liminar, no julgamento da ADPF n. 779/DF, para obstar a utilização da tese de “legítima defesa da honra” perante o Tribunal do Júri por considerá-la inconstitucional.
Na mesma linha de raciocínio, não há como dar guarida à tese em sede de habeas corpus.
LegislaçãoArt. 312 do CPP Art. 319 do CPP Lei n. 13.104/2015
Precedentes Qualificados ADPF n. 779/DF
AgRg no RHC 144.053-RJ, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado Do TJDFT), Rel. Acd. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por maioria, julgado em 19/10/2021, DJe 03/11/2021
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Princípio da pessoalidade da sanção penal. Responsabilidade criminal tão somente pelo estado de filiação. Impossibilidade. Peculato-desvio. Mero proveito econômico. Não tipificação.
O mero proveito econômico não é suficiente para tipificar o crime de peculato-desvio, é necessário que o agente pratique alguma conduta voltada ao desvio de verbas públicas.
Da peça acusatória, extrai-se que a mãe da recorrente, então ocupante do cargo de Diretora do Museu Imperial, é acusada de várias irregularidades envolvendo a Sociedade de Amigos do Museu Imperial – SAMI, inclusive desvio de recursos públicos. Através da sociedade apontada e de contratos supostamente fraudulentos, sem prévia licitação, a ex-diretora remetia valores diretamente à entidade privada em vez de promover o devido recolhimento aos cofres da União. Dentre as irregularidades, a denúncia aponta a contratação da empresa da filha da gestora pública, também sem licitação, e, nesse ensejo, imputa à extranea a conduta de peculato-desvio.
Não obstante a gravidade da conduta da agente pública, mãe da recorrente, não se encontra, na denúncia, nenhuma conduta criminosa imputada à ora recorrente. Vale lembrar que o mero proveito econômico não é suficiente para tipificar o crime de peculato-desvio, é necessário que o agente pratique alguma conduta voltada ao desvio de verbas públicas.
No caso, a codenunciada não deu destinação diversa à verba pública. Apenas recebeu valores por um serviço que efetivamente prestou, sendo desarrazoado exigir-lhe, em razão de sua qualidade de extranea, o conhecimento exato do trajeto das verbas públicas, ainda que a gestora fosse sua mãe. Destaque-se que o princípio da pessoalidade da sanção penal não permite conclusão diversa.
DoutrinaA segunda parte do art. 312 do Código Penal prevê o peculato-desvio. Aqui, o agente não atua com animus rem sibi habendi, ou seja, não atua no sentido de inverter a posse da coisa, agindo como se fosse dono, mas sim desvia o dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, em proveito próprio ou alheio. Conforme esclarece Noronha: “Desviar é desencaminhar e distrair. É a destinação diversa que o agente dá à coisa, em proveito seu ou de outrem. Ao invés do destino certo e determinado do bem de que tem a posse, o agente lhe dá outro, no interesse próprio ou de terceiro, já que, se for em proveito da própria administração, não poderá haver desvio de verba. […]. (GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial, volume III. 14ª ed. Niterói, RJ: Impetus, 2017, p. 755-756).
LegislaçãoCP, art. 312
AgRg no REsp 1.928.705-RS, Rel. Min. Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios), Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 23/11/2021, DJe 03/12/2021
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Mensagens enviadas por meio de aparelhos Blackberry. Coleta de dados telemáticos. Licitude.
É lícita a coleta de dados telemáticos de mensagens enviadas por meio de aparelhos Blackberry.
No caso, a defesa argumenta que “(…) (i) tratados também são fonte de direito processual e seu cumprimento constitui garantia fundamental ínsita ao devido processo legal; (ii) o fato de existir decisão fundamentada de quebra de sigilo proferida pelo Juízo brasileiro não afasta a necessidade de observância das disposições do tratado para a obtenção da prova no Canadá, sob pena de violação do princípio locus regit actum; (iii) a quebra de sigilo telemático foi dirigida e cumprida pela empresa estrangeira, sendo a existência de sede brasileira irrelevante; (iv) o tratado bilateral é aplicável a todo procedimento investigativo que busca elementos, informações e provas no território estrangeiro, sendo irrelevante que o investigado seja ou não nacional, residente ou não em um dos estados signatários; (v) os julgados relativos ao Mutual Legal Assistance Treaty (MLAT), celebrado entre o Brasil e os Estados Unidos da América, são inaplicáveis ao caso sub examine”.
O Brasil e o Governo do Canadá firmaram, em 27/11/1995, Tratado de Assistência Mútua em Matéria Penal, promulgado por meio do Decreto n. 6.747/2009. Nada obstante, se os serviços de telefonia, por meio dos quais foram interceptadas as comunicações – BlackBerry Messenger (BBM), encontravam-se ativos no Brasil, por intermédio de operadoras de telefonia estabelecidas no território nacional, o sigilo está submetido à jurisdição nacional, não sendo necessária a cooperação jurídica internacional.
Com efeito, a conclusão é de que é lícita a coleta de dados telemáticos de mensagens enviadas por meio de aparelhos Blackberry.
LegislaçãoDecreto 6.747/2009, arts. 10 e 11
AREsp 1.940.381-AL, Rel. Min. Ribeiro Dantas, Quinta Turma, por unanimidade, julgado em 14/12/2021, DJe 16/12/2021.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Acusação. Produção de todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos. Necessidade. Condenação com fundamento nas provas remanescentes. Inviabilidade.
Quando a acusação não produzir todas as provas possíveis e essenciais para a elucidação dos fatos, capazes de, em tese, levar à absolvição do réu ou confirmar a narrativa acusatória caso produzidas, a condenação será inviável, não podendo o magistrado condenar com fundamento nas provas remanescentes.
Originária do direito francês, a teoria da perda de uma chance (perte d’une chance) foi concebida no âmbito da responsabilidade civil para considerar indenizável a perda da oportunidade de se alcançar um resultado favorável, de ocorrência futura, incerta e dependente de fatores não submetidos ao controle total das partes envolvidas. Segundo a teoria, a vítima de um ilícito civil tem direito à reparação quando esse ato lhe subtrair a chance de, exercendo suas competências, chegar a determinada situação que lhe seria vantajosa, mesmo na impossibilidade de garantir que tal situação se implementaria no futuro não fosse a prática do ato ilícito.
A transposição da perte d’une chance do direito civil para o processo penal é uma ideia original de ALEXANDRE MORAIS DA ROSA e FERNANDA MAMBRINI RUDOLFO.
Inconformados com a baixa qualidade de investigações policiais, os juristas argumentam que quando o Ministério Público se satisfaz em produzir o mínimo de prova possível – por exemplo, arrolando como testemunhas somente os policiais que prenderam o réu em flagrante -, é na prática tirada da defesa a possibilidade de questionar a denúncia. Por isso, a acusação não pode deixar de realmente investigar o caso, transferindo à defesa o ônus de fazê-lo. Ao contrário, a polícia e o Ministério Público devem buscar o que os autores chamam de comprovação externa do delito: a prova que, sem guardar relação de dependência com a narrativa montada pela instituição estatal, seja capaz de corroborá-la.
Nessa perspectiva, quando há outras provas em tese possíveis para auxiliar o esclarecimento dos fatos, é ônus do Parquet produzi-las, ou então justificar a inviabilidade de sua produção. Diversos exemplos práticos ilustram a aplicabilidade da teoria. Para mencionar alguns: (I) se há testemunhas oculares do delito, a condenação não pode prescindir de sua prévia ouvida em juízo e fundamentar-se em testemunhos indiretos; (II) existindo câmeras de vigilância no local de um crime violento, a juntada da filmagem aos autos é necessária para aferir as reais condições em que ocorreu o delito e avaliar sua autoria ou excludentes de ilicitude; (III) sendo possível a consulta aos dados de geolocalização de aparelho celular do réu, a fim de verificar se estava na cena do crime, a produção da prova é necessária; e (IV) havendo coleta de sêmen do agressor em um caso de estupro, deve ser realizado exame de DNA para confirmar sua identidade.
Às ponderações dos autores, acrescento que a prova imprescindível é aquela que, se fosse produzida, poderia em tese levar a um de dois resultados: (I) demonstrar a inocência do acusado ou (II) confirmar a procedência da acusação. Faço essa diferenciação porque, se a prova diz respeito apenas à inocência do réu, mas sem guardar pertinência direta com a narrativa da denúncia (porquanto incapaz de confirmar seus fatos caso produzida), é ônus exclusivo da defesa apresentá-la. O melhor exemplo dessa hipótese é a prova relativa ao álibi do réu.
Imagine-se que, acusado de um crime violento, o demandado pretenda comprovar com documento (registro de frequência em seu ambiente de trabalho, exemplificativamente) que se encontrava em outro local no momento do crime. Nesse caso, a eventual produção da prova até poderá demonstrar sua inocência, mas como não guarda nenhuma relação com os fatos da denúncia em si, é ônus exclusivo da defesa produzi-la. É certo que, não logrando o acusado êxito na comprovação do álibi, ainda assim poderá ser absolvido, porque permanece incólume o ônus probatório do Ministério Público quanto aos fatos da imputação por ele formulada.
Diferentemente, se a prova se refere a um fato exposto na denúncia e, a depender do resultado de sua produção, pode em tese gerar a absolvição ou condenação do réu, o Parquet não pode dispensá-la, sob pena de incorrer na perda da chance probatória. Aqui se inserem, dentre muitas outras, as quatro situações que exemplifiquei acima: a ouvida de testemunhas oculares, a juntada do registro do crime em vídeo, os dados de geolocalização, o exame de DNA… Essa distinção que proponho respeita a tradicional compreensão jurisprudencial de que, nos termos do art. 156 do CPP, a prova que interessa exclusivamente à defesa (como o álibi) deve ser por ela produzida, ao mesmo tempo em que impede a acusação de agir como fez o MP/AL nestes autos, apresentando somente um mínimo de provas e ignorando diversas outras linhas de extrema relevância.
Ficam excluídas dessa determinação, certamente, as provas irrelevantes e protelatórias, nos termos do art. 400, § 1º, do CPP, que nada acresceriam à apuração dos fatos. O conceito de irrelevância, aqui, se atrela à formulação de ROSA e RUDOLFO: irrelevante é a prova incapaz de, mesmo em tese, conduzir à absolvição do réu (ou, acrescento eu, confirmar a acusação) caso produzida, como a ouvida testemunhas de caráter, apenas para trazer um exemplo.
Doutrina“O prejuízo causado pelo fato gerador [o ato ilícito] é gravado por um risco irredutível, porque não é possível testar retroativa e concretamente a questão da ausência do fato gerador. Não se pode, nem no melhor dos casos, apreciar a contribuição do fato gerador ao resultado desfavorável por um raciocínio probabilístico fundado em dados empíricos suscetíveis de uma análise estatística. É possível substituir a prova estatística de uma relação causal pela sua prova concreta? E qual deve ser, então, o impacto na mensuração do dano ou da indenização? É o que está em jogo na doutrina da perda de uma chance, que repousa em uma observação essencial: uma resposta negativa faz, injustamente, com que a vítima suporte todos os danos, porque isenta o autor de qualquer indenização, independentemente de sua contribuição efetiva para a ocorrência aleatória do dano” (La perte d’une chance et sa réparation. In: WERRO, Franz. Quelques questions fondamentales du droit de la responsabilité civile: actualités et perspectives. Berna: Stämpfli, 2002, p. 240; grifei).
“Nas hipóteses em que o Estado se omite e deixa de produzir provas que estavam ao seu alcance, julgando suficientes aqueles elementos que já estão à sua disposição, o acusado perde a chance – com a não produção (desistência, não requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato etc.) -, de que a sua inocência seja afastada (ou não) de boa-fé. Ou seja, sua expectativa foi destruída” (ROSA, Alexandre Morais da; RUDOLFO, Fernanda Mambrini. A teoria da perda de uma chance probatória aplicada ao processo penal. Revista Brasileira de Direito, v. 13, n. 3, 2017, p. 462; grifei).
“A perda da chance de que todas as provas contra si sejam produzidas implica uma perda, sem possibilidade de produção pela parte contrária, lembrando-se, ainda, que o acusado nada deve provar (e, mesmo quando solicita tais provas, isso só é oportunizado em momento que já não permite a obtenção de êxito – as imagens já foram deletadas, as impressões digitais já desapareceram etc.). Dito de outra forma: o Estado não pode perder a oportunidade de produzir provas contra o acusado, tirando-lhe a chance de um resultado pautado na (in)certeza. Todas as provas possíveis se constituem como preceitos do devido processo substancial, já que a vida e a liberdade do sujeito estão em jogo. Enquanto na seara civil se fala em probabilidade de ocorrência do evento desejado (obtenção da vantagem ou não ocorrência do prejuízo, obstada pelo fato antijurídico), no processo penal não se pode falar em probabilidade. Para a condenação, exige-se a certeza, e não deve haver elemento algum que faça presumir a culpa de alguém. A culpa deve ser devidamente comprovada. Nos casos em que a prova estava ao alcance do Estado e não foi produzida, não se pode substituí-la por outros elementos, sob alegação da ausência de probabilidade de que aquela prova faltante fosse absolver o acusado. O Estado é garante dos direitos fundamentais e deve assegurar que os preceitos legais, constitucionais e convencionais sejam devidamente respeitados. Não pode, pois, eximir-se de sua responsabilidade, quando o ônus de afastar a inocência presumida lhe incumbe integralmente” (op. cit., p. 464; grifei).
LegislaçãoCPP, arts. 6º, 156, 158 e 167
HC 660.332-RJ, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 24/08/2021, DJe 16/09/2021
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PENAL
Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho – IPPSC. Resolução editada em 22/11/2018 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Computo em dobro cada dia de privação de liberdade. Prova técnica. Providências do Juízo das Execuções Criminais. Urgência.
Para fins de cumprimento da Resolução editada em 22/11/2018 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Juízo das Execuções Criminais deve adotar providências para a elaboração da prova técnica com urgência.
Consta na Resolução editada em 22/11/2018 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH que o Estado brasileiro deverá arbitrar os meios para que se compute em dobro cada dia de privação de liberdade cumprido no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho – IPPSC, localizado no Complexo Penitenciário de Gericinó, na cidade do Rio de Janeiro/RJ, para todas as pessoas ali alojadas que não sejam acusadas de crimes contra a vida ou a integridade física, ou de crimes sexuais, ou não tenham sido por eles condenadas.
No caso, o paciente praticou crimes contra a integridade física da pessoa, segundo os itens 128, 129 e 130 da Resolução, exige-se um tratamento diferente, com abordagem particularizada, tornando-se imprescindível a realização de exame criminológico que indique, inclusive, o grau de agressividade do sentenciado. A resolução da CIDH indica que a perícia criminológica deva ser realizada por uma equipe de, no mínimo, três profissionais, constituída especialmente por psicólogos e assistentes sociais (sem prejuízo de outros), de comprovada experiência e adequada formação acadêmica, não sendo suficiente o parecer de um único profissional.
Somente depois da realização de tal exame, com base nas afirmações/conclusões constantes dessa prova, é que caberá, exclusivamente, ao Juízo das execuções a análise da possibilidade ou não da redução de 50% do tempo real de privação de liberdade, ou se a redução deve ser abreviada em medida inferior a 50%.
A produção célere dessa prova técnica, imprescindível para deslinde da controvérsia, é que está em choque com a realidade atual da pandemia da Covid-19, que o país e o mundo vivenciam. O Judiciário brasileiro, como um todo, vem sendo afetado pela crise sanitária mundial, e muitos serviços estão suspensos ou são realizados num ritmo mais demorado do que se deseja, até diante da insuficiência de quadros técnicos aptos à sua execução.
Assim, embora a Câmara Julgadora tenha sublinhado a insuficiência de quadros técnicos aptos à sua execução, e o Juízo das Execuções Criminais já tenha encaminhado, recentemente, ofícios à SEAP e à direção da unidade prisional, é possível determinar que se promova gestões junto aos órgãos responsáveis pela elaboração da prova técnica, visando sua célere produção, e, em último caso, recorrendo, para tanto, ao Sistema Único de Saúde – SUS.
RHC 135.617-PR, Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 14/09/2021, DJe 30/09/2021.
DIREITO PENAL, DIREITO PROCESSUAL PENAL
Depósito de entorpecente para uso pessoal e posse de objetos destinados ao plantio de Cannabis sativa. Crime do art. 34 da Lei n. 11.343/2006. Delito autônomo. Não configuração.
Não é possível que o agente responda pela prática do crime do art. 34 da Lei n. 11.343/2006 quando a posse dos instrumentos configura ato preparatório destinado ao consumo pessoal de entorpecente.
O crime capitulado no art. 34 da Lei n. 11.343/2006 se destina a punir atos preparatórios e, portanto, é tido como subsidiário em relação ao crime previsto no art. 33 da mesma Lei, sendo por este absorvido quando as ações são praticadas em um mesmo contexto fático.
É possível, no entanto, que o crime previsto no art. 34 da Lei de Drogas se consuma de forma autônoma, circunstância na qual [d]eve ficar demonstrada a real lesividade dos objetos tidos como instrumentos destinados à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, ou seja, relevante analisar se os objetos apreendidos são aptos a vulnerar o tipo penal em tela.” (AgRg no AREsp 303.213/SP, Rel. Ministro Marco Aurelio Bellizze, Quinta Turma, DJe 14/10/2013).
Significa dizer que a lesão ao bem jurídico – saúde pública – somente ocorrerá quando a ação envolvendo os objetos (possuir, guardar, adquirir, entre outras) tenha o especial fim de fabricar, preparar, produzir ou transformar drogas, visando o tráfico.
Portanto, ainda que o crime previsto no art. 34 da Lei n. 11.343/2006 possa subsistir de forma autônoma, não é possível que o agente responda pela prática do referido delito quando a posse dos instrumentos se configura como ato preparatório destinado ao consumo pessoal de entorpecente.
Com efeito, as condutas previstas no art. 28 da Lei de Drogas recebem tratamento legislativo mais brando, razão pela qual não há respaldo legal para punir com maior rigor as ações que antecedem o próprio consumo pessoal do entorpecente.
Considerando que, nos termos do §1º do art. 28 da Lei de Drogas, nas mesmas penas do caput incorre quem cultiva a planta destinada ao preparo de pequena quantidade de substância ou produto (óleo), seria um contrassenso jurídico que a posse de objetos destinados ao cultivo de planta psicotrópica, para uso pessoal, viesse a caracterizar um crime muito mais grave, equiparado a hediondo e punido com pena privativa de liberdade de três a dez anos de reclusão, além do pagamento de vultosa multa.
A toda evidência, aquele que cultiva uma planta naturalmente faz uso de ferramentas típicas de plantio, tais como a maior parte dos itens apreendidos no caso (vasos, substrato de plantas, gotejador, lona, hastes de estufa, fibra de coco), razão pela qual se deve concluir que a posse de tais objetos está abrangida pela conduta típica prevista no aludido §1º do art. 28 da Lei n. 11.343/2006 e, portanto, não é capaz de configurar delito autônomo.
Por fim, é consenso jurídico que o legislador, ao despenalizar a conduta de posse de entorpecente para uso pessoal, conferiu tratamento penal mais brando aos usuários de drogas. Nesse contexto, se a própria legislação reconhece o menor potencial ofensivo da conduta do usuário que adquire drogas diretamente no mercado espúrio de entorpecentes, não há como evadir-se à conclusão de que também se encontra em situação de baixa periculosidade o agente que sequer fomentou o tráfico, haja vista ter cultivado pessoalmente a própria planta destinada à extração do óleo, para seu exclusivo consumo.
Doutrina“No Direito Penal brasileiro os atos preparatórios, em regra, não são puníveis, sequer na forma tentada. De fato, o art. 14, II, do Código Penal vincula a tentativa à prática de ao menos um ato de execução. Em casos excepcionais, entretanto, é possível a punição de atos preparatórios nas hipóteses em que a lei opta por incriminá-los de forma autônoma, como acontece com os chamados crimes-obstáculo ou tipos de realização imperfeita. (…) Por meio desse crime hediondo por equiparação e subsidiário em relação ao tráfico de drogas propriamente dito (quando as ações forem praticadas no mesmo contexto fático), o legislador almejou alcançar situações que constituiriam mera preparação do delito contido no art. 33, caput, da Lei de Drogas. (…) Nesse cenário, o art. 34 da Lei de Drogas, funcionando como autêntico soldado de reserva, visa punir justamente ações preparatórias do narcotráfico, como a aquisição de maquinário, aparelho, instrumento ou qualquer objeto destinado à fabricação, preparação, produção ou transformação de drogas, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.” (Lei de drogas: aspectos penais e processuais/ Cleber Masson, Vinicius Marçal – 2.ª ed. – Rio de Janeiro: Forense; MÉTODO, 2021, pp. 135-136)
LegislaçãoArt. 28, Lei n. 11.343/2006;
Art. 28, §1º, Lei n. 11.343/2006;
Arts. 33 e 34, Lei n. 11.343/2006;
RMS 61.084-RJ, Rel. Min. Rogério Schietti, Rel. Acd. Min. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, por maioria, julgado em 14/09/2021, DJe 03/11/2021.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Medida cautelar para liberar bloqueio de ativos financeiros de sociedade empresária. Artigos 3º e 4º do Decreto-Lei n. 3.240/1941 e art. 4° da Lei n. 9.613/1998. Ausência de prova do uso da pessoa jurídica para a prática delitiva.
Para o bloqueio de ativos financeiros de sociedades empresárias é necessário a existência de indícios veementes de que tenha sido usada na conduta criminosa.
O Código de Processo Penal prevê que “caberá o seqüestro dos bens imóveis, adquiridos pelo indiciado com os proventos da infração, ainda que já tenham sido transferidos a terceiro” (art. 125); que “para a decretação do seqüestro, bastará a existência de indícios veementes da proveniência ilícita dos bens” (art. 126); e que se procederá ao seqüestro dos bens móveis se, verificadas as condições previstas no art. 126, não for cabível a medida regulada no Capítulo XI do Título VII deste Livro, que se trata da busca e apreensão (art. 132).
Por sua vez, o Decreto-Lei n. 3.240/1941 estabelece que “o sequestro pode recair sobre todos os bens do indiciado, e compreender os bens em poder de terceiros desde que estes os tenham adquirido dolosamente, ou com culpa grave” (art. 4º). São necessários, portanto, indícios veementes de que os bens sequestrados sejam produtos do crime, ou, sendo bens em poder de terceiros, que tenham sido adquiridos dolosamente, ou com culpa grave.
Não é diferente a previsão do art. 4° da Lei n. 9.613/1998, de que o juiz “poderá decretar medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores do investigado ou acusado, ou existentes em nome de interpostas pessoas, que sejam instrumento, produto ou proveito dos crimes previstos nesta Lei ou das infrações penais antecedentes”.
Sobre o tema, esta Corte Superior tem precedentes, segundo o quais, para o bloqueio de ativos financeiros de sociedades empresárias é necessário a existência de indícios veementes de que ela tenha sido usada na conduta criminosa.
No caso, o bloqueio do ativo financeiro da empresa apenas se deu porque um dos seus sócios teria participado do esquema criminoso. Contudo, além de não constar como a sociedade empresaria teria sido usada pelo grupo criminoso, ou ainda como se beneficiou com os crimes, o sócio administrativo não responde pelo crime de lavagem de dinheiro, e nem por evasão de divisas.
Assim, constata-se que a empresa está, na prática, sendo responsabilizada por danos que, se de fato existentes, para eles não concorreu, ou seja, objetivamente.
Além disso, tendo a empresa personalidade jurídica e patrimônio próprios, independentemente dos seus sócios, não parece defensável, e sem que tenha havido a desconsideração inversa da personalidade jurídica (afastamento da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigação do sócio), que tenha a sua sobrevivência posta em risco e mesmo comprometida – deixando de pagar empregados, tributos, fornecedores etc.-, em razão de crimes dados como perpetrados pelo seu sócio, e por conduta alheia ao seu objeto social, em franca violação do exercício da atividade econômica, fundada na livre iniciativa (art. 170 – CF) e, no limite, do direito de propriedade, que tem a proteção constitucional (art. 5º, caput e inciso XXII).
LegislaçãoArt. 317 e 333, Código Penal; art, 2º, § 4º, II – Lei 12.850/2013; art. 1º, caput, c/c § 1º, I, 4° da Lei 9.613/1998; art. 22, parágrafo único, 2ª parte, da Lei 7.492/1986; art. 125, 126, art. 132 do Código de Processo Penal; art. 4º do Decreto-lei n. 3.240/1941; art. 5º, caput e inciso XXII, e art. 170 da Constituição Federal.
EDcl no RHC 151.405-MG, Rel. Min. Olindo Menezes (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 19/10/2021, DJe 12/11/2021.
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Rompimento da barragem em Brumadinho. Crimes conexos de âmbitos federal e estadual. Interesse direto e específico da Autarquia Federal – Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM. Competência da Justiça Federal.
A Justiça Federal é competente para processar e julgar os crimes ambientais e contra a vida decorrentes do rompimento da barragem em Brumadinho/MG.
A questão referente à competência possui regramento próprio e específico, tendo esta Corte Superior, em muitas oportunidades, se manifestado em habeas corpus sobre a competência da Justiça Federal, a fim de evitar julgamentos díspares de fatos correlatos ou até idênticos, não sendo razoável somente após longo período, com todos os desdobramentos na Justiça Estadual, demandando esforços de serventuários e peritos estaduais e federais, ter-se a certeza do interesse da União e declinar a competência.
Assim sendo, a competência deve ser aferida pelos fatos da causa de pedir narrados na denúncia com todas as suas circunstâncias, que devem ser analisados e julgados pelo Judiciário, e não pelo pedido ou pela capitulação do dominis litis, que é provisória, podendo ser mudada pela sentença.
Com efeito, busca o MP a responsabilização penal porque não foi observada a Política Nacional de Segurança de Barragens, e, por isso, os réus não teriam garantido a observância de padrões de segurança de barragem de maneira a reduzir a possibilidade de acidentes e suas consequências, o que gerou o rompimento da barragem em Brumadinho-MG, com a morte de 270 pessoas, além de outros eventos.
Importante ressaltar que há várias manifestações desta Corte Superior, segundo as quais, a atividade fiscalizatória exercida pela autarquia federal não é suficiente, por si só, para atrair a competência federal, sendo possível cogitar da competência federal apenas quando evidenciado interesse direto e específico do ente federal no crime sob apuração.
No caso, há ofensa a bem e interesse direto e específico de órgão regulador federal e da União: as Declarações de Estabilidade da Barragem, apresentadas ao antigo DNPM (autarquia federal), seriam ideologicamente falsas; os acusados teriam omitido informações essenciais à fiscalização da segurança da barragem, ao não fazê-las constar do SIGBM, sistema de dados acessado pela Agência Nacional de Mineração – ANM; e danos a sítios arqueológicos, bem da União, dados como atingidos pelo rompimento da barragem.
Dessa forma, considerando a apuração de fatos correlatos em ambas as esferas – federal e estadual – e, ainda, os indícios de danos ambientais aos “sítios arqueológicos”, é de aplicar-se o verbete n. 122 da Súmula desta Corte Superior, pelo qual, “compete à Justiça Federal o processo e julgamento unificado dos crimes conexos de competência federal e estadual, não se aplicando a regra do art. 78, II, a, do Código de Processo Penal”.
LegislaçãoArts. 78, II, a, 95, II, 108, 406, §3º, Código de Processo Penal;
Arts. 383 e 384, Código de Processo Penal;
Art. 5º, LIII, 20, X, Constituição Federal de 1988;
Art. 109, IV, Constituição Federal de 1988
SúmulasSúmula n. 122 do STJ
Saiba mais:
HC 640.770-SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 15/06/2021, DJe 21/06/2021
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Foragido por considerado período. Interrogatório de forma virtual. Impossibilidade.
Não cabe a pretensão de realizar o interrogatório de forma virtual ao foragido por considerável período, pois a situação não se amolda ao art. 220 do CPP.
Na controvérsia tratada, ainda na fase inquisitorial, o paciente teve a prisão preventiva decretada, por prática descrita nos arts. 157, § 3º, II, c/c o art. 29, e 288, parágrafo único, todos do Código Penal.
A impetração do habeas corpus sustenta-se na ausência de indícios de autoria e no fato de a audiência de instrução e julgamento ser desmarcada por três vezes, por não ter o Estado providenciado o transporte do réu, ora paciente, cujo pedido de videoconferência foi indeferido.
Não cabe a pretensão de realizar o interrogatório de forma virtual, sob pena de premiar a condição de foragido do paciente, sendo inaplicável ao caso o art. 220 do CPP. Como destacou o Tribunal de origem:
“Também não é caso de aplicação do artigo 220 do Código de Processo Penal, já que o paciente não se enquadra nas hipóteses de incidência (enfermidade ou velhice). Além disso, é evidente que o paciente furtar-se à aplicação da lei penal já que, desde a decretação de sua prisão preventiva (junto com o recebimento da denúncia), não foi mais localizado pelo Poder Público, constando como procurado em consulta ao sistema VEC. Assim, não é caso de aplicação do artigo 220 do Código de Processo Penal, ainda que realizada uma interpretação in bonam partem, sob pena de premiar a astúcia do acusado em escapar da decisão que decretou sua prisão preventiva”.
CPP, art. 220.
HC 652.068-DF, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 24/08/2021, DJe 30/08/2021
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Citação realizada por aplicativo de mensagem (whatsapp). Verificação da identidade do citando. Ausência de cautela. Nulidade.
É nula a citação realizada por aplicativo de mensagem (whatsapp) quando verificada a ausência de cautela apta a atestar, de forma cabal, a identidade do citando.
Cinge-se em definir se é possível a citação do réu por aplicativo de mensagem (whatsapp) e se o contexto verificado no caso sob exame evidencia a existência de vício apto a macular o ato de modo a atrair a declaração de nulidade.
Em se tratando de denunciado solto, não diviso óbice objetivo a que Oficial de Justiça, no cumprimento do mandado de citação expedido pelo Juízo (art. 351 do CPP), dê ciência remota ao citando da imputação penal, inclusive por intermédio de diálogo mantido em aplicativo de mensagem, desde que o procedimento adotado pelo serventuário seja apto a atestar, com suficiente grau de certeza, a identidade do citando e que sejam observadas as diretrizes estabelecidas no art. 357 do CPP, a saber: a leitura do mandado e a entrega da respectiva contrafé, constando o dia e horário da citação.
Veja-se que, nessa modalidade de citação, não há exigência do encontro do citando com o oficial de justiça, sendo certo que, verificada a identidade e cumprida as diretrizes previstas na normal processual, ainda que de forma remota, a citação não padece de vício.
Embora a viabilidade desse meio de comunicação, para fins de citação, seja objeto de polêmica, fato é que a jurisprudência desta Corte só tem declarado a nulidade quando verificado prejuízo concreto ao denunciado.
Verifica-se, no entanto, que, no caso sob exame, a diligência foi efetivada sem nenhuma cautela apta a atestar, de forma cabal, a identidade do citando, nem mesmo subsequentemente – o serventuário (Oficial de Justiça) não circunstanciou qual procedimento foi adotado para verificar a identidade do citando, aludindo à simples captura de telas -, sendo que, em decorrência da diligência e da ausência de procuração subscrita pelo denunciado nos autos, sobreveio a nomeação de Defensor Público, que passou a atuar no processo em favor do paciente, inclusive arguindo a nulidade do ato, rechaçada pelo Juízo processante.
Cumpre destacar, ainda, que as informações obtidas em consulta ao portal eletrônico do Tribunal de origem indicam que ainda não foi designada audiência de instrução em julgamento, ou seja, o réu ainda não compareceu pessoalmente ao Juízo, circunstância que afasta a aplicação da regra prevista no art. 563 do CPP.
LegislaçãoCPP, arts. 351, 357 e 563.
HC 703.912-RS, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 23/11/2021, DJe 30/11/2021
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Tribunal do Júri. Sessão de julgamento. Tempo de debates. Art. 477 do CPP. Possibilidade de dilação do prazo. Necessidade de acordo entre as partes.
No Tribunal do Júri é possível, mediante acordo entre as partes, estabelecer uma divisão de tempo para os debates entre acusação e defesa que melhor se ajuste às peculiaridades do caso.
A plenitude de defesa é um dos princípios constitucionais básicos que amparam o instituto do júri (art. 5º, XXXVIII, da CF/1988), razão pela qual é louvável a decisão do magistrado que busca efetivar tal garantia aos acusados.
Entretanto, é importante que as normas processuais que regem o referido instituto sejam observadas, a fim de que sejam evitadas futuras alegações de nulidades.
Dessa forma, considerado o rigor formal do procedimento do júri, não é possível que, unilateralmente, o juiz de primeiro grau estabeleça prazos diversos daqueles definidos pelo legislador, para mais ou para menos, sob pena de chancelar uma decisão contra legem.
Não obstante, nada impede que, no início da sessão de julgamento, mediante acordo entre as partes, seja estabelecida uma divisão de tempo que melhor se ajuste às peculiaridades do caso concreto.
O Código de Processo Civil de 2015, consagrou a denominada cláusula geral de negociação processual, ao dispor, em seu art. 190, que “Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”. Na hipótese, à luz do disposto no art. 3º do CPP, é viável a aplicação analógica do referido dispositivo.
À vista de tal consideração, ponderadas as singularidades do caso em análise, em reforço ao que já prevê o art. 477 do CPP, constata-se a viabilidade de que as partes interessadas entrem em um consenso a fim de dilatar o prazo de debates, respeitados os demais princípios que regem o instituto do júri.
DoutrinaPossui maior abrangência do que a ampla defesa – exigida em todos os processos criminais (art. 5º, LV, da CF/1988) -, porquanto ao acusado deve ser garantida uma defesa efetiva, que, no entendimento de Rodrigo Faucz Pereira e Silva e Daniel Ribeiro Surdi de Avelar, precisa ser “completa, perfeita, absoluta, ou seja, deve ser oportunizada ao acusado a utilização de todas as formas legais de defesa possíveis, podendo causar, inclusive, um desequilíbrio em relação à acusação” (in Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 138).
Acerca da possibilidade aventada, leciona Walfredo Cunha Campos:
[…] tal dilação do discurso não traz prejuízo às partes (muito pelo contrário) e permite aos jurados ampla compreensão das teses dos tribunos e conhecimento profundo das provas dos autos, devolvendo a eles o direito de decidir com responsabilidade. É a única maneira de se respeitar o Júri como instituição: possibilitar-lhe o exercício responsável de sua competência para julgar os crimes dolosos contra a vida. Isso sem falar que, na situação de mais de dois réus acusados na mesma sessão plenária, fica mais claro ainda que a decisão de aumento do tempo de discurso das partes se coaduna perfeitamente com o princípio da plenitude de defesa. Chega-se, assim, à conclusão de que nulidade haveria (e absoluta), por menoscabo ao espírito da Lei Maior, se, a pretexto de aplicar-se a lei, com seus limites irreais de tempo de debates, fosse desrespeitado o poder de o Tribunal do Júri decidir com consciência, o dever de o Ministério Público acusar com eficiência e o direito de o advogado do réu defendê-lo com plenitude. É preferível extrapolar os limites da lei, na sua literalidade prematuramente senil (e a lei do rito do Júri parece mesmo ter nascido velha e esclerosada…), a menoscabar-se o espírito da Lei Maior. A resolução de que tratamos, claro, deve constar da ata. Esse parece ser o entendimento pelo menos de parte do STF, pois, segundo o Ministro Gilmar Mendes, diante de casos considerados excepcionais, tendo em vista, por exemplo, a complexidade da causa e a existência de diversos acusados, “não há óbice ao juiz-presidente, especialmente se tiver a concordância das partes, que assegure prazos mais largos, desde que mantida a proporcionalidade dos tempos previstos em lei, levando em conta sempre a razoabilidade e a busca da verdade real”. (in Tribunal do Júri – Teoria e Prática, 6ª edição. Disponível em: STJ Minha Biblioteca, Grupo GEN, 2018).
LegislaçãoCF, art. 5º, XXXVIII e LV da CF/1988
CPP, arts. 3º e 476 a 479
CPC/2015, art. 190
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