REsp 1.656.161-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 16/09/2021, DJe 25/10/2021. (Tema 977)
DIREITO CIVIL
Previdência complementar aberta. Reajuste dos benefícios. Circular/SUSEP n. 11/1996. Índice geral de preços de ampla publicidade. IPCA-E. Índice na falta de repactuação. Taxa Referencial (TR). Não cabimento. Tema 977.
A partir da vigência da Circular/SUSEP n. 11/1996, é possível ser pactuado que os reajustes dos benefícios dos planos administrados pelas entidades abertas de previdência complementar passem a ser feitos com utilização de um Índice Geral de Preços de Ampla Publicidade (INPC/IBGE, IPCA/IBGE, IGPM/FGV, IGP-DI/FGV, IPC/FGV ou IPC/FIPE). Na falta de repactuação, deve incidir o IPCA-E.
A questão controvertida consiste em saber se, com o advento do art. 22 da Lei n. 6.435/1977, é possível a manutenção da utilização da Taxa Referencial (TR), por período indefinido, como índice de correção monetária de benefício de previdência complementar operado por entidade aberta.
O advento da Lei n. 6.435/1977 trouxe ao ordenamento jurídico disposições cogentes e o claro intuito de disciplinar o mercado de previdência complementar, protegendo a poupança popular, e estabelecendo o regime financeiro de capitalização a disciplinar a formação de reservas de benefícios a conceder.
Destarte, o art. 22, parágrafo único, da Lei n. 6.435/1977 deixa expresso que os valores monetários das contribuições e dos benefícios dos planos de previdência complementar aberta sofrem correção monetária, e não simples reajuste por algum indexador inidôneo. Tal norma tem eficácia imediata, abrangendo até mesmo os planos de benefícios já instituídos, em vista da inexistência de ressalva e do disposto nos arts. 14 e 81 do mesmo Diploma, disciplinando que não só os benefícios, mas também as contribuições, sejam atualizados monetariamente segundo a ORTN, ou de modo diverso, contanto que instituído pelo Órgão Normativo do Sistema Nacional de Seguros Privados.
Nessa toada, em se tratando de contrato comutativo de execução continuada, em linha de princípio, não se pode descartar – em vista de circunstância excepcional, imprevisível por ocasião da celebração da avença -, que possa, em estrita consonância com a legislação especial previdenciária de regência, provimentos infralegais do órgão público regulador e anuência prévia do órgão fiscalizador, ser promovida modificação regulamentar (contratual), resguardando-se, em todo caso, o valor dos benefícios concedidos.
Na verdade, a doutrina anota que nos contratos as partes nem sempre regulamentam inteiramente seus interesses, deixando lacunas que devem ser preenchidas. Além da integração supletiva, cabível apenas diante de lacunas contratuais, há a denominada integração cogente. Esta se opera quando, sobre a espécie contratual, houver normas que devam obrigatoriamente fazer parte do negócio jurídico por força de lei. São normas que se sobrepõem à vontade dos interessados e integram a contratação por imperativo legal.
Em outro prisma, no multicitado e histórico julgamento da ADI 493, Relator Ministro Moreira Alves, realizado em 1992, o Plenário do STF já apontava ser a TR índice inadequado para correção monetária, estabelecendo balizas para o alcance até mesmo de lei de ordem pública (cogente) nos efeitos futuros de contratos celebrados anteriormente a ela (retroatividade mínima).
Ademais, o Plenário virtual do STF, em sessão encerrada em 9 de novembro de 2019, julgando a ADI n. 5.348, Relatora Ministra Cármen Lúcia, declarou a inconstitucionalidade do art. 1º-F da Lei n. 9.494/1997, alterado pela Lei n. 11.960/2009, que estabeleceu a aplicação da Taxa Referencial da poupança como critério de atualização monetária nas condenações da Fazenda Pública, determinando a utilização do IPCA-E.
Com efeito, é imprestável ao fim a que se propõe benefício previdenciário de aposentadoria que sofra forte e ininterrupta corrosão inflacionária, a ponto de os benefícios, no tempo, serem corroídos pela inflação.
Ora, a correção monetária não é um acréscimo que se dá ao benefício de caráter alimentar previdenciário, e a Súmula 563/STJ esclarece que o CDC é aplicável às entidades abertas de previdência complementar. Assim, o art. 18, § 6º, III, do CDC dispõe que são impróprios ao consumo os produtos que, por qualquer motivo, se revele inadequados ao fim a que se destinam. Já o art. 20, § 2º, estabelece que são impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade.
Registre-se, por fim, que o IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo), medido mensalmente pelo IBGE, foi criado para aferir a variação de preços no comércio ao público final, com renda mensal entre 1 e 40 salários mínimos. É utilizado pelo Banco Central como índice oficial de inflação do País, inclusive para verificar o cumprimento da meta oficial de inflação.
Doutrina(1) Em vista da importância da previdência privada como elemento de suplementação da previdência pública oficial e de formação de poupança nacional, a atividade exercida pelo setor sofre forte regulação específica do Estado, inclusive de ordem infralegal (DIAS, Eduardo Rocha; MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Curso de direito previdenciário. São Paulo: Método, 2008, p. 661). (2) Observância do cálculo atuarial – Desde a instituição, antes da aprovação da entidade, o empreendimento deve ter a assistência técnica do atuário (Nota Técnica). No curso da administração, a presença do matemático é frequente e indispensável à segurança e equilíbrio do plano. O pensamento do executante concentra-se nas normas contábeis, atuariais e jurídicas. Por determinação do art. 23 da LBPC, a cada balanço, os planos de benefícios deverão ser apreciados por atuário ou instituto habilitado. […] O legislador busca frear as ações do administrador, opondo-se ao sistema oficial, onde tecnicamente prevalecente regime de repartição simples, mas, na verdade, orçamentário ou de caixa. (MARTINEZ, Wladimir Novaes. Curso de direito previdenciário. 4 ed. São Paulo: LTR, 2011, p. 1.246 e 1.258-1.262). (3) “[n]ão ameaçado por desequilíbrio nem presente factum principis ou outro motivo importante, mantendo-se o plano como originariamente concebido pelo atuário, realizando-se a receita integralmente e comportando-se a massa exatamente como idealizada, não há razão para modificá-lo nem se justifica juridicamente” (MARTINEZ, Wladimir Novaes. Pareceres selecionados de previdência complementar. São Paulo: LTR, 2001, p. 29). (4) a doutrina anota que nos contratos as partes nem sempre regulamentam inteiramente seus interesses, deixando lacunas que devem ser preenchidas. Além da integração supletiva, cabível apenas diante de lacunas contratuais, há a denominada integração cogente. Esta se opera quando sobre a espécie contratual houver normas que devam obrigatoriamente fazer parte do negócio jurídico por força de lei. São normas que se sobrepõem à vontade dos interessados e integram a contratação por imperativo legal (NADER, Paulo. Curso de direito civil: contratos. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pp. 73-74). (5) reservas de benefícios a conceder são as reservas matemáticas que se vão acumulando durante o período de contribuição, constituindo elas “a diferença entre o valor atual apurado atuarialmente das obrigações futuras das entidades, com pagamento de benefícios, e o valor atual, também apurado atuarialmente, das contribuições vencidas previstas para constituição dos capitais de cobertura dos mesmos benefícios”. Bem assim, o suporte do custeio, na previdência complementar, significa o pagamento efetuado, propiciando a cobertura prevista no plano de benefícios (PÓVOAS, Manuel Sebastião Soares. Previdência privada: filosofia, fundamentos técnicos, conceituação jurídica. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2007, pp. 181, 187, 423 e 424). (6) Para dar transparência e administrar os recursos, o fundo de pensão cria duas contas: a reserva de poupança e a reserva matemática. A reserva de poupança é o que o participante contribui somado ao que o patrocinador coloca, e tudo é atualizado ou corrigido mensal ou anualmente por um índice já previamente estabelecido no estatuto ou no regulamento de benefícios. A reserva matemática ou reserva de benefícios a conceder, por seu turno, é o valor que é provisionado (separado e identificado) para fazer frente ao pagamento de todas as mensalidades de complementação de aposentadoria e eventuais pensões. Não necessariamente é o mesmo montante da contribuição feita pelo participante, ou sua reserva de poupança. Se ele está longe de se aposentar, sua reserva de benefícios a conceder é menor. Perto de se aposentar é maior, porque nesse momento o fundo de pensão tem a obrigação de separar o montante necessário para fazer frente aos benefícios a serem concedidos. (Massami Uyeda, in Reflexões sobre a complementação de aposentadoria. Revista Justiça & Cidadania. n. 133, 2011, p. 40). (7) a mudança de valor aquisitivo da moeda, há muito ensina que seria “comutativamente injusto que – à grande distância no tempo – o credor recebesse menos em valor do que aquilo que levou em conta ao aceitar a oferta que lhe fizera” (Pontes de Miranda, in Tratado de Direito Privado, Tomo XXVI, Campinas: Editora BookSeller, 2003, p. 374).
Legislaçãoart. 18, § 6º, III, do CDC; art. 20 do CDC; art. 3º, III, da LC n. 109/2001; art. 3º da Lei n. 6.435/1977; art. 9º da Lei n. 6.435/1977; art. 14 da Lei n. 6.435/1977; art. 22 da Lei n. 6.435/1977; art. 24 da Lei n. 6.435/1977; art. 43 da Lei n. 6.435/1977; art. 81 da Lei n. 6.435/1977; art. 1º-F da Lei n. 9.494/1997.
SúmulasSúmula 563/STJ.
Precedentes Qualificados STF: (ADI n. 493, rel. Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno). (ADI n. 3.460 ED, rel. Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 12/02/2015, DJe 12/03/2015). (ADI n. 5.348, rel. Min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno).
REsp 1.776.467-PR, Rel. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 25/11/2021, DJe 10/12/2021.
DIREITO CIVIL
Decisão assemblear. Impossibilidade jurídica da deliberação. Decisão judicial que impedia a dissolução parcial do instituto. Ato nulo. Vício não suscetível de prescrição ou decadência.
A impossibilidade jurídica do objeto da deliberação assemblear acarreta a sua nulidade e não anulabilidade.
Em relação aos prazos decadenciais, há que se destacar o disposto no art. 207 do CC/2002, que preceitua que salvo disposição legal em contrário, a eles não se aplicam as normas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.
Importante frisar, também, que não há dúvidas acerca da possibilidade de decretar-se, em sede de ação cautelar, a prescrição da pretensão ou a decadência do direito cuja satisfação será buscada na ação principal.
Além do mais, o art. 48, parágrafo único, do CC/2002, estatui que decai em três anos o direito de anular as decisões de pessoa jurídica que possuir administração coletiva quando estas violarem a lei ou estatuto, ou ainda foram eivadas de erro, dolo, simulação ou fraude.
No caso, a matéria tratada guarda estrita relação com a teoria das nulidades, de modo que o deslinde da controvérsia impõe a sua abordagem. A anulabilidade é vício com menor grau de reprovabilidade, não exorbitando os interesses das partes. Já a nulidade é vício de maior gravidade e verifica-se quando falta ao ato jurídico um dos seus requisitos essenciais.
Como se sabe, nos termos do art. 169 do CC/2002, o ato nulo não convalesce pelo decurso do tempo, motivo pelo qual o vício de nulidade pode ser conhecido de ofício e suscitado a qualquer tempo, não se sujeitando a prazos prescricionais ou decadenciais.
Na espécie, apesar de o art. 48, parágrafo único, do CC/2002 mencionar a simulação, esta constitui vício de nulidade e não de anulabilidade (art. 167 do CC/2002). Ademais, a depender da espécie de violação à lei ou ao estatuto, o vício não será de anulabilidade, mas sim de nulidade.
A propósito, Pontes de Miranda bem destaca que “os atos das assembleias, contrários à lei, ou ao ato constitutivo, são anuláveis, se a lei não os tem por nulos”.
No caso, a decisão da assembleia teve por base exclusivamente o suposto trânsito em julgado da decisão do Tribunal de origem que admitiu a dissolução parcial, mas que, frise-se, havia sido modificada por esta Corte. Ou seja, na data da reunião, a decisão que motivou a deliberação assemblear já não subsistia.
Assim, tendo havido alteração da decisão que serviu como único subterfúgio para exclusão do quadro de associados, o objeto da deliberação não era juridicamente possível. Logo, sendo grave a falha que macula a deliberação assemblear, o vício é de nulidade e não de anulabilidade, não se sujeitando ao prazo decadencial consagrado no art. 48, parágrafo único, do CC/2002.
Doutrina(1) “os atos das assembleias, contrários à lei, ou ao ato constitutivo, são anuláveis, se a lei não os tem por nulos” (Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado. Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 536).
(2) “tem-se por graves e, por conseguinte, caracterizadores de nulidade pleno jure, tão só a violação que impeça absolutamente a deliberação de alcançar a sua finalidade. (…). Trata-se de defeitos extremamente graves, como, por exemplo, a ausência da própria reunião dos sócios, se ela for de rigor, a não observância ao quórum estabelecido em atenção ao princípio majoritário, ou a ilicitude ou impossibilidade do objeto da deliberação. (…) Em suma, portanto, se a falha é tão grave que atinge aquele núcleo fundamental, a espécie é de nulidade pleno jure; no extremo oposto, se falha houve, mas se apresenta despida de qualquer gravidade, porque de modo algum afeta a funcionalidade da deliberação em ofende direitos dos membros, o caso é de mera irregularidade; se a falha carrega algum desses efeitos prejudiciais, os quais, porém, não se mostram demasiadamente graves, por não se referirem ao interesse público, mas a mera conveniência dos particulares, a hipótese é de anulabilidade, exatamente a de que trata o dispositivo em comentário. (Monteiro Filho, Rafael de Barros, [et al.] Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Comentários ao Código Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2010, pp. 770-771).
LegislaçãoArts. 48, parágrafo único, 167, 169, 207, Código Civil;
HC 706.825-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 23/11/2021, DJe 25/11/2021.
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
Execução de alimentos. Coronavírus. Atual estágio da pandemia. Retorno das atividades econômicas, sociais, culturais e de lazer. Avanço substancial da vacinação. Prisão civil do devedor em regime fechado. Retomada da adoção dessa medida coercitiva. Possibilidade.
No atual momento da pandemia causada pelo coronavírus, é admissível a retomada da prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado.
Cinge-se a controvérsia a definir se, no atual momento da pandemia causada pelo coronavírus, é admissível a retomada da prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado.
Desde o início da pandemia causada pelo coronavírus, observa-se que a jurisprudência desta Corte oscilou entre a determinação de cumprimento da prisão civil do devedor de alimentos em regime domiciliar, a suspensão momentânea do cumprimento da prisão em regime fechado e a possibilidade de escolha, pelo credor, da medida mais adequada à hipótese, se diferir o cumprimento ou cumprir em regime domiciliar.
Passados oito meses desde a última modificação de posicionamento desta Corte a respeito do tema, é indispensável que se reexamine a questão à luz do quadro atual da pandemia no Brasil, especialmente em virtude da retomada das atividades econômicas, comerciais, sociais, culturais e de lazer e do avanço da vacinação em todo o território nacional.
Diante do cenário em que se estão em funcionamento, em níveis próximos ao período pré-pandemia, os bares, restaurantes, eventos, shows, boates e estádios, e no qual quase três quartos da população brasileira já tomou a primeira dose e quase um terço se encontra totalmente imunizada, não mais subsistem as razões de natureza humanitária e de saúde pública que justificaram a suspensão do cumprimento das prisões civis de devedores de alimentos em regime fechado.
No caso, a devedora de alimentos é empresária, jovem e não possui nenhuma espécie de problema de saúde ou comorbidade que impeça o cumprimento da prisão civil em regime fechado, devendo ser considerado, ademais, que nas localidades em que informa possuir domicílio, o percentual da população totalmente imunizada supera 80%.
Ademais, anote-se a existência de recentíssima Recomendação n. 122/2021 do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, que, em seu art. 1º, sinaliza a necessidade de retomada das prisões civis dos devedores de alimentos.
Por fim, não se está afirmando – é importante destacar – que a pandemia está inteiramente superada no Brasil, mas, sim, que não mais subsistem as razões que justificaram a excepcional suspensão do cumprimento de ordens de prisão em regime fechado.
Com efeito, pelo longo período de quase 02 anos, entendeu-se por bem tutelar mais fortemente o direito à vida dos devedores de alimentos em significativo detrimento ao direito à vida dos credores dos alimentos, especialmente por razões humanitárias e de saúde pública.
É chegada a hora, pois, de reequilibrar essa balança, recolocando os credores de alimentos, tão atingidos não apenas pela pandemia, mas pela reiterada inadimplência das obrigações alimentares, em posição mais privilegiada, facultando-lhes requerer a adoção de uma técnica coercitiva sabidamente eficaz e eficiente para dobrar a renitência dos devedores.
LegislaçãoArt. 6º, Recomendação n. 62/2020 do CNJ;
Art. 1º, Recomendação n. 122/2021 do CNJ;
Art. 15, Lei n. 14.010/2020;
Art. 528, §3º, Código Processo Civil/2015
REsp 1.803.803-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por maioria, julgado em 09/11/2021, DJe 25/11/2021.
DIREITO CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL
Contrato de patrocínio. Rescisão antecipada. Adimplemento parcial. Cláusula penal. Finalidade coercitiva. Redução equitativa do valor. Art. 413 do Código Civil. Inaplicabilidade. Assimetria entre os contratantes. Inexistência. Manutenção do valor pactuado.
Quando na estipulação da cláusula penal prepondera a finalidade coercitiva, a diferença entre o valor do prejuízo efetivo e o montante da pena não pode ser novamente considerada para fins de redução da multa convencional com fundamento na segunda parte do art. 413 do Código Civil.
Prevalece nesta Corte o entendimento de que a cláusula penal possui natureza mista, ou híbrida, agregando, a um só tempo, as funções de estimular o devedor ao cumprimento do contrato e de liquidar antecipadamente o dano.
Sobre o tema, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem admitido o controle judicial do valor da multa compensatória pactuada, sobretudo quando esta se mostrar abusiva, para evitar o enriquecimento sem causa de uma das partes, sendo impositiva a sua redução quando houver adimplemento parcial da obrigação.
No entanto, não é necessário que a redução da multa, na hipótese de adimplemento parcial da obrigação, guarde correspondência matemática exata com a proporção da obrigação cumprida, sobretudo quando o resultado final ensejar o desvirtuamento da função coercitiva da cláusula penal.
Isso porque, a preponderância de uma ou outra finalidade da cláusula penal implica a adoção de regimes jurídicos distintos no momento da sua redução.
Com efeito, a preponderância da função coercitiva da cláusula penal justifica a fixação de uma pena elevada para a hipótese de rescisão antecipada, especialmente para o contrato de patrocínio, em que o tempo de exposição da marca do patrocinador e o prestígio a ela atribuído acompanham o grau de desempenho da equipe patrocinada.
Em tese, não se mostra excessiva a fixação da multa convencional no patamar de 20% (vinte por cento) sobre o valor total do contrato de patrocínio, de modo a evitar que, em situações que lhe pareçam menos favoráveis, o patrocinador opte por rescindir antecipadamente o contrato.
No caso concreto, a cláusula penal está inserida em contrato empresarial firmado entre empresas de grande porte, tendo por objeto valores milionários, inexistindo assimetria entre os contratantes que justifique a intervenção em seus termos, devendo prevalecer a autonomia da vontade e a força obrigatória dos contratos.
Doutrina(1) CASSETARI, Cristiano. Multa contratual: teoria e prática da cláusula penal [livro eletrônico], 5. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
(2) Não parece, contudo, que esta seja uma justificativa juridicamente plausível para a redução determinada, tendo em vista as diversas finalidades da cláusula penal, que, de acordo com a lição de Judith Martins-Costa, não visa apenas a “(…) reparar o credor por meio da prefixacão das perdas e danos”, mas também tem por escopo “(…) estimular o devedor ao adimplemento através da ameaça de uma outra prestação que o credor terá a faculdade de exigir, ou de maneira substitutiva à prestação, a título sancionatório; ou de modo cumulativo à execução específica da prestação ou à indenização pelo inadimplemento.” (Judith Martins-Costa. Comentários ao novo código civil, vol. V, tomo II: do inadimplemento das obrigações, 2. ed., Rio de Janeiro: 2009, págs. 607-608).
(3) “(…) Esse estímulo ao ‘reforço’ ao cumprimento, é bem verdade, se apresenta por meio de uma coação indireta ao devedor, de um ‘constrangimento de sua vontade, impulsionando-o ao regular cumprimento da obrigação principal, sob a coerção das conseqüências derivadas da aplicação da pena’. Assim ocorrerá, por exemplo, quando, na fixação do seu montante, determina-se um valor deliberadamente acima daquele que é previsível para o dano, justamente para que essa quantia possa funcionar como um incentivo maior do que aquele resultante da obrigação de indenizar. Tem-se, portanto, coligada à função garantista (para o credor), uma função preventiva (do inadimplemento) e dissuasória (para o devedor), ainda que não garanta, efetivamente, que a obrigação principal será cumprida e nem outorgue nenhuma preferência ao credor, como a que lhe é alcançada por uma garantia real. O papel dissuasório, em relação ao devedor, está em que este é constrangido a estimar que é mais vantajoso cumprir a obrigação do que suportar a pena.” (ob. cit., págs. 618-619).
(4) “(…) Diante dessa distinção entre as espécies aponta-se à existência de certas peculiaridades na incidência do regime jurídico, o que é alcançado por via de argumentos de ordem lógica, sistemática e teleológica. Por exemplo, se a cláusula penal foi pactuada como cláusula de perdas e danos (finalidade de prévia liquidação do dano), o juízo sobre a redução do dano, previsto no art. 413, deverá ter em conta o critério da proporcionalidade, pois a natureza da cláusula é francamente indenizatória. Já se foi pactuada cláusula penal em sentido estrito, ou puramente coercitiva (finalidade compulsivo-sancionatória, visando-se gerar pressão no devedor de modo a estimulá-lo ao adimplemento), o foco está no cumprimento, e não no dano. O juízo sobre o grau da redução, portanto, atuará diferentemente quer se trate de uma ou de outra espécie. Também assim a consideração da regra do art. 416, segundo a qual não é necessário que o credor alegue prejuízo: se o devedor provar a inexistência do prejuízo haverá conseqüências diferentes caso se trate de uma cláusula penal de fixação das perdas e danos ou de uma cláusula penal em sentido estrito, como melhor apontaremos nos comentários àquela regra, conquanto, a depender do regime adotado e estando diante de uma cláusula de fixação antecipada de indenização, a prova do devedor quanto à ausência de dano, por exemplo, possa repercutir na exigibilidade e na revisão da cláusula.” (ob. cit., págs. 622-623).
(5) “(…) Vimos que, nos mais arcanos significados, está a eqüidade como correção da lei em atenção às particularidades do caso concreto em tudo o que a lei se revele insuficiente em seu caráter universal. Daí passou a eqüidade a denotar as idéias de ‘temperamento’ ao que é demasiadamente inflexível valendo como correção ao que é injustamente rígido, amoldando a solução jurídica às particularidades do caso concreto como a régua de Lesbos adapta-se à forma da pedra. Aqui se põe, pois, a eqüidade como correção da lex privata, isto é, do contrato, por meio de um poder interventor unidimensional, isto é: deve o juiz reduzir, tão-somente, a pena quando ela é manifestamente excessiva, mas não ‘renegociar’ a cláusula pelas partes. A noção de razoabilidade é fluida como são comumente os standards, porém, não é indeterminável. O que é irrazoável deve poder ser objetivamente apurado, conforme o contexto significativo (fático e jurídico) em que inserido o contrato, segundo critérios racionalmente apreensíveis, pois essa é também uma noção relacional, tal qual a de ‘abusividade’, sendo ‘irrazoável’ (no sentido de não-eqüitativo) o que é ‘desmedido’ ou ‘excessivo’ tendo em conta certo ponto de equilíbrio dado pela compreensão do contrato em suas concretas circunstâncias contextuais. Assim, é preciso atenção aos requisitos de incidência da regra, pois o mandamento de eqüidade (como razoabilidade) significa vedação ao excesso, mas nunca um passaporte para a livre produção de sentidos pelo órgão jurisdicional, estando firmemente atado à implementação de certos requisitos averiguáveis, por sua vez, por meio de elementos objetivos que funcionam como bússolas para o intérprete. (…) Excessivo é o exorbitante do comum, do adequado para certa situação em certo momento e local, é o excepcional, tendo-se em conta o que ‘normalmente acontece’. Sendo próprio da cláusula penal (notadamente na função de compelir ao pagamento) consignar um valor superior ao da prestação cujo inadimplemento visa prevenir, não é, pois, qualquer superioridade no valor da pena que induzirá à revisão. Essa revisão só se justificará em face de um valor de per si exorbitante, isto é: ‘manifestamente excessivo’, considerando-se ‘manifesto’ aquilo que não é implícito ou sugerido, antes saltando aos olhos, evidenciando-se com clareza palmar segundo padrões de experiência comum aplicados ao caso concreto. A noção assemelha-se, portanto, a de abuso no sentido dicionarizado de ‘uso excessivo, exorbitância de atribuições ou poderes’, ‘descomedimento’, e, igualmente, no sentido etimológico (abusas = abuti), isto é, ‘fazer mau uso’, a saber: mau uso das funções e finalidades a que a cláusula penal, como legítimo instituto jurídico, está vocacionada.” (ob. cit., fls. 697-699)
(6) “(…) a adstrição à natureza e à finalidade determina que a revisão seja processada – ou não – à luz das circunstâncias do caso e da finalidade do negócio, finalidade concreta, a ser averiguada cuidadosamente na declaração negocial situada, compreendida ‘no complexo unitário de seus motivos e circunstâncias’, entre as quais está a nacionalidade econômica subjacente ao ajuste. (…) Antes de mais é necessário precisar a ambiência em que pactuado o contrato: trata-se de um ajuste de Direito Civil ou de Direito Comercial? Trata-se de um contrato de compra e venda entre particulares que se esgota em si mesmo? Ou de um contrato agrário, inserido numa verdadeira cadeia ou ‘galáxia’ contratual cujo inadimplemento terá reflexos nos demais elos da cadeia, inclusive podendo conduzir à inutilidade de alguns dos negócios nela inseridos? Atine apenas a relações de direito interno ou comporta uma ambiência internacional? Tenhamos presente que cada um desses campos tem a sua ‘lógica peculiar’. Nas relações de Direito Comercial, por exemplo, ressalta o seu ‘talho prático’, elemento modelador da sua estrutura jurídica e da sua especial racionalidade econômica, de modo que a racionalidade do agente econômico ‘é também fator determinante na interpretação contratual’. Isto não significa, em absoluto, em uma sujeição do Direito ao determinismo econômico, em curvar-se a normatividade à facticidade, mas, tão-somente, na consideração do que normalmente acontece (id quod plerunque accidit) relativamente a determinado tipo de negócio em determinado segmento econômico-social (‘mercado’), na medida em que os mercados são ‘estatutos normativos’ que têm a sua ‘normalidade’ específica ao segmento considerado: financeiro, imobiliário, bancário, automotivo etc. Esta sua contextual ‘normalidade implica calculabilidade e previsibilidade e, portanto, em geração de legítimas expectativas. Os riscos assumidos pelos contratantes atinem, portanto, a essas legítimas expectativas face ao que ‘normalmente acontece’. A determinação da lei no sentido de ser considerada, para a redução da cláusula penal, ‘a natureza e a finalidade do negócio’, afasta, assim, a adoção de critérios fixos e idênticos para todas as espécies e modalidades de cláusula penal, dirigindo o intérprete, à busca da racionalidade econômica do negócio; à identificação das estratégias das partes, incluindo elementos não-econômicos; à consideração ao que é habitual no segmento econômico em que situado o contrato bem como à natureza e às características do contrato (por exemplo, se formado por adesão ou após processo negociatório, se pactuado entre contraentes situados num patamar de relativa igualdade ou se há manifesta assimetria contratual) etc. Em suma: a excessividade manifesta há de ser apurada de forma relacional à natureza do negócio à finalidade do negócio. Isto significa dizer que não haverá um ‘metro fixo’ para medir a excessividade. O juízo é de ponderação, e não de mera subsunção, atendendo-se às ‘circunstâncias do caso’.” (ob. cit., fls. 699-701).
LegislaçãoArt. 413 e 416, Código Civil
Saiba mais:
REsp 1.800.265-MS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 21/09/2021, DJE 23/09/2021.
DIREITO ELEITORAL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Ação de cobrança. Serviços de publicidade e marketing eleitoral. Cumprimento de sentença. Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC. Recursos públicos. Penhora. Impossibilidade. Vedação legal.
São impenhoráveis os recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC, criado pela Lei n. 13.487/2017.
O Fundo Especial de Financiamento de Campanha – FEFC foi criado para, a partir da utilização de recursos públicos, suprir as doações de empresas a candidatos e partidos, visto que o Supremo Tribunal Federal, na assentada do dia 17/9/2015, ao examinar a ADIn n. 4.650, Rel. Min. Luiz Fux (Tribunal Pleno, DJe 23/2/2016), declarou a inconstitucionalidade das doações feitas por pessoas jurídicas.
O Código de Processo Civil de 2015, na redação do art. 833, inciso XI, assentou que “são impenhoráveis os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei”.
Por sua vez, extrai-se do art. 16-C da Lei n.13.487/2017, que cria o FEFC, que o novo Fundo Especial é constituído exclusivamente a partir de verbas destacadas do orçamento da União, tendo a mesma finalidade do denominado Fundo Partidário, cuja impenhorabilidade, inclusive, já foi afirmada pelo STJ em precedentes de ambas as Turmas integrantes da Segunda Seção.
Nesse contexto, a partir da regra de hermenêutica que reza que onde há a mesma razão de ser, deve prevalecer a mesma razão de decidir (ubi eadem legis ratio ibi eadem), é lícito concluir que as verbas oriundas do novo fundo se enquadram na disposição normativa contida no inciso XI do art. 833 do CPC/2015, haja vista que se amoldam, à perfeição, no conceito de “recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político”.
Com efeito, o melhor sentido a ser extraído da aludida norma deve ser o de que, ao mencionar “os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político”, a intenção do legislador foi abranger não apenas um fundo eleitoral específico, mas todas as verbas públicas integrantes de fundos partidários destinadas ao financiamento eleitoral.
Sob esse prisma, merece relevo o fato de que, além de ter a mesma finalidade do Fundo Partidário, o novo Fundo Especial (FEFC) é composto exclusivamente de verbas públicas, o que acentua o caráter de impenhorabilidade dos recursos nele depositados.
Nesse ponto, merece ser lembrada a clássica lição de Hely Lopes Meirelles de que, “(…) mesmo que os bens públicos repassados às entidades privadas possuam destinação especial e administração particular, sua natureza continua sendo pública, pois são destinados à consecução de serviços do Estado ou atividades que o engrandecem. A origem e a natureza total ou predominante desses bens continuam públicas; sua destinação é de interesse público; apenas sua administração é confiada a uma entidade de personalidade privada, que os utilizará na forma da lei instituidora e do estatuto regedor da instituição. A destinação especial desses bens sujeita-os aos preceitos da lei que autorizou a transferência do patrimônio estatal ao paraestatal, a fim de atender aos objetivos visados pelo Poder Público criador da entidade”.
Por fim, deve ser consignado que, a despeito da impenhorabilidade dos recursos do FEFC, não deve ser esquecido que o patrimônio dos partidos políticos também é composto por bens privados (contribuições dos filiados e doações de pessoas físicas), sendo, desde logo, reconhecida a possibilidade de penhora dos seus demais recursos financeiros, motivo pelo qual não se verifica a frustração absoluta dos legítimos interesses da credor.
Doutrina“(…) mesmo que os bens públicos repassados às entidades privadas possuam destinação especial e administração particular, sua natureza continua sendo pública, pois são destinados à consecução de serviços do Estado ou atividades que o engrandecem. A origem e a natureza total ou predominante desses bens continuam públicas; sua destinação é de interesse público; apenas sua administração é confiada a uma entidade de personalidade privada, que os utilizará na forma da lei instituidora e do estatuto regedor da instituição. A destinação especial desses bens sujeita-os aos preceitos da lei que autorizou a transferência do patrimônio estatal ao paraestatal, a fim de atender aos objetivos visados pelo Poder Público criador da entidade.” (Meirelles, Hely Lopes, Direito administrativo brasileiro. 33ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, pág. 520).
LegislaçãoArt. 16-C da Lei n. 13.487/2017;
Lei n. 9.096/1995;
Lei n. 9.504/1997;
Art. 833, inciso XI, Código de Processo Civil/2015
REsp 1.629.470-MS, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 30/11/2021, DJe 17/12/2021.
DIREITO REGISTRAL, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR
Cessão fiduciária de direito de crédito. Recuperação judicial. Não submissão. Cartório de títulos e documentos. Registro para constituição da garantia. Desnecessidade.
A cessão fiduciária de título de crédito não se submete à recuperação judicial, independentemente de registro em cartório.
É pacífico na jurisprudência do STJ que os contratos gravados com garantia fiduciária não se submetem ao regime da recuperação judicial, cuidando-se de bens ou valores extraconcursais, conforme previsto no art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005.
Ademais, a ausência de registro, que é requisito apenas para a preservação de direito de terceiros, não constitui requisito para perfectibilizar a garantia. Tal formalidade não está prevista no art. 66-B da Lei n. 4.728/1995, na redação introduzida pela Lei n. 10.931/2004, nem possui respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu o caráter de facultatividade do registro (Pleno, RE 611.639/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio, unânime, DJe de 15/4/2016).
Tal convicção decorre de que o Código Civil, art. 1.361, § 1º, e seguintes, cuida exclusivamente de bens infungíveis, qualidade que não alcança os recebíveis e os direitos de crédito em geral.
Os direitos cedidos fiduciariamente integram o patrimônio do credor fiduciário e não da empresa em recuperação. No caso de cessão fiduciária de recebíveis, dada a especificidade da legislação de regência, até mesmo a posse direta do bem dado em garantia, bem como todos os direitos e ações a ele concernentes, são transferidos ao credor fiduciário tão logo contratada a garantia. A necessidade de registro se destina a salvaguardar eventuais direitos de terceiros, vale dizer, no caso de recebíveis, direitos que possam ser alegados pelos devedores da empresa em soerguimento, e não pelos seus credores, aos quais é indiferente o destino de bem que não integra o patrimônio sujeito à recuperação.
Do mesmo modo, não cabe a invocação do princípio da preservação da empresa, com apoio na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, segundo o qual durante o stay period não podem ser retirados do estabelecimento do devedor “os bens de capital essenciais a sua atividade empresarial”.
Direitos de crédito cedidos fiduciariamente não se encontram sob o abrigo de tal regra, seja por não estarem no estabelecimento empresarial sob a posse direta da empresa em recuperação, por força de sua disciplina legal específica, seja por não se constituírem “bem de capital”.
Para que o bem se compreenda na ressalva contida no § 3º do art. 49, é imprescindível que se trate de bem corpóreo, na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível e nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period.
Com maior razão ainda não podem ser considerados bens de capital os títulos de crédito dados em alienação fiduciária. Estes, ao contrário do estoque, sequer estão na posse direta do devedor e, muito menos, são bens utilizados como insumo de produção. Trata-se patrimônio alienado pelo devedor, em caráter resolúvel, é certo, para garantia de obrigações por ele assumidas.
O credor que financia a atividade produtiva, mediante a alienação fiduciária de recebíveis dados em garantia de CPRs, certamente o faz contando com a segurança da garantia segundo sua disciplina legal, garantia essa que saberia débil, caso recaísse sobre bens de capital utilizados na produção, fossem eles móveis ou imóveis.
Considerar que a mera intenção de fazer caixa, mediante a apropriação de recebíveis (de propriedade resolúvel do credor fiduciário), possa justificar exceção à regra do art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, implicaria tornar sem substância o regime legal da propriedade fiduciária, uma vez que recursos financeiros sempre serão essenciais à recuperação de qualquer empreendimento.
LegislaçãoArt. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005; Art. 66-B da Lei n. 4.728/1995 arts. 1.361, § 1 da lei n. 10.406/2002; Art. 37 da Constituição Federal
Precedentes Qualificados (Pleno, RE 611.639/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio, unânime, DJe de 15/4/2016)
CC 181.190-AC, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, por unanimidade, julgado em 30/11/2021, DJe 07/12/2021.
DIREITO TRIBUTÁRIO, DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO EMPRESARIAL
Execução fiscal contra empresa em recuperação judicial. Realização de atos constritivos. Conflito de competência. Necessidade de oposição concreta do Juízo da execução fiscal à efetiva deliberação do Juízo da recuperação judicial. Lei n. 14.112/2020.
A partir da vigência da Lei n. 14.112/2020, a caracterização de conflito de competência perante esta Corte de Justiça pressupõe a materialização da oposição concreta do Juízo da execução fiscal à efetiva deliberação do Juízo da recuperação judicial a respeito do ato constritivo.
Inicialmente cumpre salientar que, a Lei n. 14.112/2020 delimitou a competência do Juízo em que se processa a execução fiscal (a qual não se suspende pelo deferimento da recuperação judicial) para determinar os atos de constrição judicial sobre os bens da recuperanda; e firmou a competência do Juízo da recuperação judicial para, no exercício de um juízo de controle, “determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial”.
Ainda que se possa reputar delimitada, nesses termos, a extensão da competência dos Juízos da execução fiscal e da recuperação judicial a respeito dos atos constritivos determinados no feito executivo fiscal, tem-se, todavia, não se encontrar bem evidenciado, até porque a lei não o explicita, o modo de como estas competências se operacionalizam na prática, de suma relevância à caracterização do conflito positivo de competência perante esta Corte de Justiça.
A partir da vigência da Lei n. 14.112/2020, com aplicação aos processos em trâmite (afinal se trata de regra processual que cuida de questão afeta à competência), não se pode mais reputar configurado conflito de competência perante esta Corte de Justiça pelo só fato de o Juízo da recuperação ainda não ter deliberado sobre a constrição judicial determinada no feito executivo fiscal, em razão justamente de não ter a questão sido, até então, a ele submetida.
A submissão da constrição judicial ao Juízo da recuperação judicial, para que este promova o juízo de controle sobre o ato constritivo, pode ser feita naturalmente, de ofício, pelo Juízo da execução fiscal, em atenção à propugnada cooperação entre os Juízos. O § 7ª-B do art. 6º da Lei n. 11.101/2005 apenas faz remissão ao art. 69 do CPC/2015, cuja redação estipula que a cooperação judicial prescinde de forma específica. E, em seu § 2º, inciso IV, estabelece que “os atos concertados entre os juízos cooperantes poderão consistir, além de outros, no estabelecimento de procedimento para a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas”.
Caso o Juízo da execução fiscal assim não proceda, tem-se de todo prematuro falar-se em configuração de conflito de competência perante esta Corte de Justiça, a pretexto, em verdade, de obter o sobrestamento da execução fiscal liminarmente. Não há, por ora, nesse quadro, nenhuma usurpação da competência, a ensejar a caracterização de conflito perante este Superior Tribunal. A inação do Juízo da execução fiscal – como um “não ato” que é – não pode, por si, ser considerada idônea a fustigar a competência do Juízo recuperacional ainda nem sequer exercida.
Na hipótese de o Juízo da execução fiscal não submeter, de ofício, o ato constritivo ao Juízo da recuperação judicial, deve a recuperanda instar o Juízo da execução fiscal a fazê-lo ou levar diretamente a questão ao Juízo da recuperação judicial, que deverá exercer seu juízo de controle sobre o ato constritivo, se tiver elementos para tanto, valendo-se, de igual modo, se reputar necessário, da cooperação judicial preconizada no art. 69 do CPC/2015.
Em resumo, a caracterização de conflito de competência perante esta Corte de Justiça pressupõe a materialização da oposição concreta do Juízo da execução fiscal à efetiva deliberação do Juízo da recuperação judicial a respeito do ato constritivo.
LegislaçãoLei n. 14.112/2020; § 7ª-B do art. 6º da Lei n. 11.101/2005; art. 69 do Código de Processo Civil de 2015
REsp 1.887.705-SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, Rel. Acd. Min. Moura Ribeiro, Terceira Turma, por maioria, julgado em 14/09/2021, DJe 30/11/2021.
DIREITO CIVIL, DIREITO DO CONSUMIDOR, DIREITO DO IDOSO
Plano de saúde. Inadimplemento do pagamento da mensalidade. Notificação para regularização do débito. Informação dos meios hábeis para a realização do pagamento.
Diante do inadimplemento do pagamento da mensalidade, o plano de saúde deverá notificar o segurado para regularizar o débito e informar os meios hábeis para a realização do pagamento, tal como o envio do boleto ou a inserção da mensalidade em atraso na próxima cobrança.
Nos termos do art. 13, parágrafo único, inciso II, da Lei n. 9.656/98, inadimplido o pagamento da mensalidade, o plano de saúde deverá notificar o segurado para regularizar o débito.
A notificação, além de apontar o inadimplemento, deverá informar os meios hábeis para a realização do pagamento, tal como o envio do boleto ou a inserção da mensalidade em atraso na próxima cobrança.
Vencida a notificação e o encaminhamento adequado de forma a possibilitar a emenda da mora, só então poderá ser considerado rompido o contrato.
É exigir demais do consumidor que acesse o sítio eletrônico da empresa e, dentre os vários links, faça o login, que possivelmente necessita de cadastro prévio, encontre o ícone referente a pagamento ou emissão de segunda via do boleto, selecione a competência desejada, imprima e realize o pagamento, entre outros tantos obstáculos. O procedimento é desnecessário e cria dificuldade abusiva para o consumidor.
Por fim, o recebimento das mensalidades posteriores ao inadimplemento, inclusive a do mês subsequente ao cancelamento unilateral do plano de saúde, implica violação ao princípio da boa-fé objetiva e ao instituto da surretcio.
DoutrinaFLÁVIO TARTUCE aponta que a surretcio é o surgimento de um direito diante de práticas, usos e costumes (“Direito Civil”, vol. 03, Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 113).
Com todo o respeito, o PLANO DE SAÚDE deveria ter em linha de consideração que o seu capital pode e deve ser humanista porque desde a Grécia e de de Roma antes de Cristo, foi abolida a escravidão por dívida, dando ensejo a um importantíssimo passo inicial para a caminhada da humanidade – rumo à solução dialética entre a dignidade humana e o patrimônio econômico (Ricardo Sayeg e Wagner Balera, “Capitalismo Humanista” – Dimensão Econômica dos Direitos Humanos, Max Limonad, págs. 107/108).
Há de salientar que existem duas acepções de boa-fé: uma subjetiva e outra objetiva: A boa-fé subjetiva é um estado psicológico em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direito que em verdade só existe na aparência. O indivíduo se encontra em escusável situação de ignorância sobre a realidade dos fatos e da lesão a direito alheio. […].[…]Em sentido diverso, o princípio da boa-fé objetiva – localizado no campo dos direitos das obrigações – é o objeto de nosso enfoque. Trata-se da “confiança adjetiva”, uma crença efetiva no comportamento alheio. O princípio compreende um modelo de eticização de conduta social, verdadeiro standard jurídico ou regra de comportamento, caracterizado por uma atuação de acordo com determinados padrões sociais de lisura, honestidade e correção, de modo a não frustrar a legítima confiança da outra parte.A boa-fé objetiva pressupõe: (a) uma relação jurídica que ligue duas pessoas, impondo-lhes especiais deveres mútuos de conduta; (b) padrões de comportamento exigíveis do profissional competente, naquilo que se traduz como bônus pater famílias; (c) reunião de condições suficientes para ensejar na outra parte um estado de confiança no negócio celebrado. Ela é examinada externamente, vale dizer, a aferição se dirige à correção da conduta do indivíduo, pouco importando a sua convicção. O contrário da boa-fé subjetiva é a má-fé; já o agir humano despido de lealdade e correção é apenas qualificado como carecedor de boa-fé objetiva. Tal qual no direito penal, irrelevante é a cogitação do agente. (in Manual de Direito Civil, volume único, Salvador: ed. JusPodivm, 2019, págs. 1.062/1.063)
LegislaçãoEstatuto do Idoso, art. 4º
NCPC, art. 8º
LINDB, arts. 4º e 5º
Lei n. 9.656/98, art. 13, parágrafo único, II
Enunciados de Jornadas de Direito 26 do CJF: A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes.
REsp 1.953.180-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 25/11/2021, DJe 01/12/2021.
DIREITO CIVIL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL, DIREITO FALIMENTAR
Crédito garantido por alienação fiduciária. Bens alienados pertencentes ao avalizado. Avalista em recuperação judicial. Expropriação de bens do avalista. Impossibilidade.
Não pertencendo os bens alienados em garantia ao avalista em recuperação judicial, não podem ser expropriados outros bens de sua titularidade, pois devem servir ao pagamento de todos os credores.
Conforme consignado no julgamento do REsp 1.677.939/SP, “O aval apresenta 2 (duas) características principais, a autonomia e a equivalência. A autonomia significa que a existência, validade e eficácia do aval não estão condicionadas à da obrigação principal. A equivalência torna o avalista devedor do título da mesma forma que a pessoa por ele avalizada. (…) Disso decorre que o credor pode exigir o pagamento tanto do devedor principal quanto do avalista, que não pode apresentar exceções pessoais que aproveitariam o avalizado, nem invocar benefício de ordem.”
Desse modo, se o avalizado for devedor principal, o avalista será tratado como se devedor principal fosse.
Assim, caso os bens alienados em garantia fossem dos avalistas, poderiam ser perseguidos pelo credor fora da recuperação judicial, já que a extraconcursalidade do crédito está diretamente ligada à propriedade fiduciária.
No entanto, sendo os bens alienados em garantia de propriedade do devedor principal, o crédito em relação aos avalistas em recuperação judicial não pode ser satisfeito com outros bens de sua propriedade, que estão submetidos ao pagamento de todos os demais credores.
“(…) No contrato de alienação fiduciária, quando não satisfeita a dívida, o credor poderá retomar a coisa que é de sua propriedade, mas que está na posse do credor. Se o valor do bem estiver abaixo do valor da dívida, o remanescente se submete à recuperação judicial. O Enunciado 51, da I Jornada de Direito Comercial prevê que ‘o saldo do crédito não coberto pelo valor do bem e/ou da garantia dos contratos previstos na Lei 11.101/2005, art. 49, § 3º, é crédito quirografário, sujeito à recuperação judicial”. (Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência – Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Curitiba: Juruá, 2021, pág. 147 – grifou-se)Vale destacar, ainda, a lição de Marcelo Barbosa Sacramone:
“(…) Ressalte-se que apenas o direito de propriedade do credor sobre o bem não se sujeita à recuperação judicial. Isso porque somente quanto à propriedade do referido bem o credor se diferencia dos demais para fins de não ser considerado na recuperação judicial, de forma que o tratamento desigual se justifica pois o credor seria titular de uma posição desigual em face dos demais credores sujeitos. Embora possa retomar a posse do bem, com a consolidação da propriedade para a liquidação, os credores titulares de propriedade fiduciária não poderão voltar suas pretensões para outros bens da recuperanda fora do âmbito da recuperação judicial, pois exclusivamente quanto ao bem transferido fiduciariamente não se sujeitarão à recuperação judicial. Do contrário, caso a interpretação sobre a limitação da extraconcursalidade apenas sobre o bem fosse diferente, haveria um estímulo para que o credor constituísse garantias fiduciárias sobre quaisquer bens, independentemente da viabilidade de sua liquidação, apenas para garantir a extraconcursalidade de seu crédito”. (Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, pág. 255 – grifou-se)No mesmo sentido a doutrina de Luiz Roberto Ayoub e Cássio Cavalli:
“(…) Via de regra, o credor garantido por alienação fiduciária em garantia não se submete à recuperação judicial, conforme expressamente dispõe o art. 49, § 3º, da LRF. Logo, em caso de venda do bem pelo proprietário fiduciário, o produto da venda não será repassado para a empresa em recuperação. Entretanto, caso o bem alienado fiduciariamente seja de valor insuficiente para satisfazer a integralidade da obrigação garantida, o saldo poderá ser habilitado na recuperação, à qual se sujeitará” (A Construção Jurisprudencial da Recuperação Judicial de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2013, pág. 82 – grifou-se).
LegislaçãoLei n. 11.101/2005, arts. 6º, § 4º e 49, § 3º
EDcl no AgInt nos EDcl no REsp 1.604.422-MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 24/08/2021, DJe 27/08/2021.
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO BANCÁRIO
Bem de família dado em garantia de contrato diverso do que ensejou a execução. Impenhorabilidade Afastada. Impossibilidade. Interpretação restritiva das exceções previstas no art. 3° da Lei n. 8.009/1990.
Não incide a regra excepcional do artigo 3°, V, da Lei n° 8.009/90 sobre bem de família dado em garantia hipotecária em favor de instituição financeira diversa para garantia de contrato representado pela emissão de uma cédula de crédito bancário.
A impenhorabilidade do bem de família decorre dos direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana e à moradia, de forma que as exceções previstas na legislação não comportam interpretação extensiva.
Tratando-se de execução proposta por credor diverso daquele em favor do qual fora outorgada a hipoteca, é inadmissível a penhora do bem imóvel destinado à residência do devedor e de sua família, não incidindo a regra de exceção do artigo 3°, inciso V, da Lei n. 8.009/1990.
Dessa forma, em razão da interpretação restritiva que deve ser dada a citada regra excepcional, não é possível afastar a impenhorabilidade diante da constituição de hipoteca pretérita em favor de outro credor.
LegislaçãoArt. 3°, inciso V, da Lei n° 8.009/1990; art. 1°, III, 6°, caput, Constituição Federal;
REsp 1.733.136-RO, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 21/09/2021, DJe 24/09/2021
DIREITO DO CONSUMIDOR
Responsabilidade civil pelo fato do serviço. Transporte aéreo. Menor desacompanhado. Atraso de voo. Desembarque em cidade diversa da contratada. Local distante 100 km do destino. Dano moral configurado.
É cabível dano moral pelo defeito na prestação de serviço de transporte aéreo com a entrega de passageiro menor desacompanhado, após horas de atraso, em cidade diversa da previamente contratada.
Trata-se, no caso, de companhia aérea contratada para o transporte de um adolescente, que, com 15 anos de idade, viajava sozinho. Do inadimplemento incontroverso não resultara apenas um atraso dentro de um lapso médio razoável após o horário previsto no seu destino, senão dali adveio uma espera de 9 horas por um menor de idade, em cidade desconhecida, sem a proteção de qualquer dos seus responsáveis, sujeito a toda sorte de acontecimentos e violência.
A maximizar ainda a incerteza e insegurança, tem-se que o menor, após este longo período de espera, sequer fora deixado na cidade de destino, mas em uma cidade novamente desconhecida e a 100 km de onde estaria seu pai/responsável.
Sequer comprovou-se a efetiva oferta de transporte ao menor, mas isto acaba sendo, mesmo, de menor importância, pois é claro que o pai não confiaria na empresa que tanto já havia demonstrado descumprir com as suas obrigações, deixando o seu filho à espera de transporte por quase metade de um dia e, no último trecho (que sequer estava previsto quando da contratação), submetendo-o, durante a madrugada, a transporte por uma van para levá-lo para a cidade de destino, com um motorista desconhecido, não se sabe se com outros passageiros ou não, nas nada seguras rodovias brasileiras.
O fato de a companhia aérea ter garantido alimentação e hospedagem para o menor não impressiona, pois era o mínimo a ser feito. Aliás, era o exigido pelas normas estabelecidas pela ANAC. Do contrário, o que se veria, na verdade, seria algo parecido com a tortura, relegando-se um menor de idade à sua sorte, em lugar desconhecido, com fome e no desconforto de uma cadeira de aeroporto por 9 horas seguidas.
Esta Corte Superior já indicara alguns parâmetros para o reconhecimento do dano moral quando do atraso de voos e deixara claro que na hipótese de se verificar situação excepcional, o caso será, sim, de reconhecimento do direito à indenização.
Não há dúvidas que o direito brasileiro experimentou um período de banalização da indenização pelos danos morais, reconhecendo-se o direito a toda sorte de situações, muitas delas em que efetivamente não se estava a lidar com violações a interesses ligados à esfera da dignidade humana.
Não se pode descurar, no entanto, que, quando presentes os elementos a evidenciar mais do que mero aborrecimento em ficar em um hotel, alimentado, no aguardo de um voo, é devida a indenização pelos danos morais.
Alcançou-se aos pais de um infante e ao próprio menor horas de total insegurança e – certamente para alguns não poucos indivíduos de desespero – acerca da sorte dos seus filhos, e, ainda, os reflexos alcançaram a vida profissional do pai do menor, que é médico, tendo ele de reagendar cirurgia por força da aflição experimentada e, ainda, da alteração dos horários de chegada do filho, o que evidencia o direito à indenização.
Doutrina(1) “Importante mencionar que o § 1.º do art. 942 do CPC/2015 viabiliza o prosseguimento do julgamento na mesma sessão, desde que possível, ?colhendo-se os votos dos outros julgadores que porventura componham o órgão colegiado.? Afigura-se-nos que a condição imposta ao prosseguimento na mesma sessão, contida na expressão ?sendo possível?, deve ser interpretada de maneira a satisfazer o contraditório. Ou seja, para que seja ?possível? que o colegiado se amplie na mesma sessão, não é suficiente que haja outros julgadores, ainda que em número suficiente para propiciar a inversão do resultado; é preciso, ainda, que seja assegurada às partes e a eventuais interessados a prerrogativa de sustentação oral a que alude o caput do dispositivo”. (ALVIM, Arruda, Manual de Direito Processual Civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento, 2019, 3ª ed. em e-book, item 32.8);
(2) “Se o resultado do julgamento da apelação for não unânime, dar-se-á prosseguimento, em nova sessão, a ser designada com a presença de outros julgadores, convocados em acordo com as regras do regimento interno do tribunal, em número que seja suficiente para reverter o primeiro resultado. Tal procedimento, por exigência constitucional do contraditório, hoje consagrado pelo binômio influência e não surpresa, disponibiliza para as partes e para eventuais terceiros, o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores. “(RIBEIRO, Marcelo, Processo Civil, 2. ed., São Paulo: MÉTODO, 2019, item 44.1);
(3) “Sempre que possível, o prosseguimento dar-se-á na mesma sessão, tomandose voto de outros componentes do órgão colegiado que estejam presentes (cf. § 1º do art. 942 do CPC/2015); caso contrário, o julgamento prosseguirá em nova sessão, convocando-se outros julgadores, assegurado o direito à nova sustentação oral (cf. art. 942, caput, 2ª parte, do CPC/2015)”. (MEDINA, José Miguel Garcia Medina, Curso de direito processual civil moderno, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, 6. ed. em e-book baseada na 6. ed. impressa., item 2.4.9);
(4) “Compondo-se a câmara ou a turma de cinco membros, a integração de dois julgadores, número suficiente para reverter o resultado parcial, parece natural, concebendo-se dois termos de alternativa: (a) os integrantes do órgão fracionário encontram-se presentes na sessão, posto que desnecessária sua participação, haja vista o quórum do art. 941, § 2.º, e assistiram o debate oral, cabível na apelação (art. 937, I): prossegue o julgamento, incontinenti, ?colhendo-se os votos de outros julgadores? (art. 942, § 1.º); (b) os integrantes do órgão fracionário não se encontram presentes, e, nesse caso, o julgamento prosseguirá na sessão a ser designada (logo, não necessariamente a subsequente), na composição plena, renovado o debate oral (art. 942, caput). Já se considerou a hipótese de se encontrarem presentes quatro dos cinco integrantes do órgão fracionário. Nada impede que se colha o voto do presente e, em nova sessão, do ausente. (…) Ao invés, não se compondo a câmara ou a turma de cinco membros, mas de três ou de quatro, a exemplo do TJRS, outros julgadores hão de ser convocados, no mínimo dois, número suficiente para reverter o resultado parcial, e o julgamento prosseguirá na sessão porventura designada pelo presidente, desde logo, ou por meio da publicação da pauta (art. 934). Não há necessidade da designação de sessão extraordinária, ou seja, fora do dia hábil da semana (em geral, de terça a quinta-feira) ou do horário usual de reunião do órgão fracionário. O prosseguimento pode ocorrer na sessão ordinária mais próxima possível e, acrescentou o STJ, na mesma forma: se a primeira sessão se realizou virtualmente, o prosseguimento também será virtual. Em tal hipótese, o regimento interno do tribunal regulará a integração do quórum de deliberação por meio de convocação. O emprego do verbo convocar implica a obrigatoriedade do comparecimento. Em princípio, convocam-se os demais integrantes da câmara ou o(s) julgador(es) mais antigos do grupo, haja vista, quanto ao último, a possível afinidade da matéria a ser julgada. Não se indicou, precisamente, qual seja o ?Desembargador integrante do Grupo correspondente?, mas o direito fundamental processual do juiz natural exige que a convocação seja na ordem de antiguidade, respeitando-se só os casos de impedimento e de afastamento da jurisdição (v.g., férias individuais). Por óbvio, haverá a necessidade de renovar o debate oral, tratando-se de apelação, e, sobretudo, a de sumariar os votos já proferidos, em termos gerais, mas precisos, indicando o alcance da divergência. Competirá essa última tarefa ao presidente do órgão fracionário, consultando as notas da sessão anterior. Nenhuma dessas providências tem cabimento no caso do agravo, salvo norma regimental em contrário, porque inadmissível o debate oral (art. 937, VIII)”. (ASSIS, Araken de, Manual dos recursos, , São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, 4. ed. em e-book baseada na 10. ed. impressa., item 34.7.3)
Legislaçãoart. 942, §1º, do Código de Processo Civil;
REsp 1.933.723-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/10/2021, DJe 26/10/2021.
DIREITO FALIMENTAR
Pretensão em recuperação judicial de desistência da implementação da cessão de crédito sub judice (indicado como ativo permanente no plano) contratada entre as partes e devidamente submetida à autorização judicial, com decisão transitada em julgada. Impossibilidade. Definição do valor do crédito cedido que se mostrou superior ao ajustado. Irrelevância. Alegação de ocorrência de lesão, rompimento do sinalagma contratual ou de violação ao princípio da boa-fé objetiva. Insubsistência.
A decisão, transitada em julgado, que autoriza a alienação de crédito da recuperanda (sub judice), por atender, na oportunidade, às exigências do art. 66 da Lei n. 11.101/2005, induz necessariamente à implementação do negócio jurídico, ainda que em momento posterior não mais se afiguraria presente a utilidade da medida para o cumprimento do plano de recuperação judicial, tampouco o interesse econômico.
A questão jurídica consiste em saber se decisão, transitada em julgado, que autoriza a alienação de crédito da recuperanda (sub judice), por atender, na oportunidade, às exigências do art. 66 da Lei n. 11.101/2005, induz necessariamente à implementação do negócio jurídico, ainda que em momento posterior (em razão da judicialização da questão, com interposição de recursos), quando, supostamente, não mais se afiguraria presente a utilidade da medida para o cumprimento do plano de recuperação judicial, tampouco o interesse econômico.
Controverte-se, a esse propósito, sobre o momento em que a cessão de crédito seria existente, válida e eficaz entre as partes.
Dessa forma, o deslinde da questão posta exige acurada reflexão sobre qual seria o momento em que o negócio jurídico consistente na cessão de crédito (sub judice), deve ser considerado perfectibilizado, se da decisão homologatória – que reconheceu o preenchimento dos requisitos no art. 66 da LRF, no caso, precedida, inclusive, de “certame judicial”, a fim de se buscar a melhor proposta pela aquisição dos créditos da recuperanda, vinculando as partes – ou se somente da assinatura da correlata escritura (agora recusada pela recuperanda).
A cessão civil de crédito, em que o credor transfere a terceiro sua posição na relação obrigacional, aperfeiçoa-se com a manifestação de vontade dos contratantes (cedente e cessionário), qualificando-se, por isso, como simplesmente consensual. O Código Civil, em seu art. 288, apenas exige a celebração de instrumento público e particular para que a cessão de crédito produza efeitos em relação a terceiros. Em relação ao cedente e ao cessionário basta a simples manifestação de vontade, independentemente da confecção de qualquer instrumento.
Em se tratando de uma relação jurídica sob o influxo único do Direito Civil, este contrato de cessão de crédito afigurar-se-ia, em relação às partes contratantes (cedente e cessionário), por si, existente, válido e eficaz.
Todavia, a legislação especial (Lei n. 11.101/2005), em atenção aos interesses envolvidos no processo concursal da recuperação judicial, preceitua que a alienação – no que se insere o ato de ceder – de ativo permanente da recuperanda depende, necessariamente, da autorização judicial. Trata-se, pois, de condição legal especial de eficácia do negócio jurídico (existente e válido), sem a qual as partes contratantes não podem exigir, uma da outra, o cumprimento das obrigações avençadas.
No caso concreto, houve vontade das partes de celebrar o contrato de cessão de crédito, com clara especificação de objeto e de preço, submetendo-o, inclusive, por exigência legal, ao Poder Judiciário a cessão de crédito, para a devida formalização por instrumento.
De outro lado, o valor do crédito, totalmente indefinido por ocasião do negócio jurídico entabulado entre partes, revelado, após o transcurso desse período (de um ano e cinco meses), maior do que a importância ajustada e substancialmente superior à quantia lançada em seu plano (com provisão de perda de 100%), não pode servir de justificativa para o desfazimento unilateral do negócio jurídico, a pretexto de lesão, de rompimento do sinalagma contratual e de violação do princípio da boa-fé objetiva.
Insubsistente, de igual modo, a invocação da cláusula rebus sic stantibus, constante do art. 478 do Código Civil. Isso porque o contrato de cessão de crédito, tal como ajustado entre as partes, não se qualifica como ajuste de execução diferida, na medida em que não se pactuou o cumprimento da obrigação de uma das partes em momento futuro. Como visto, a cessão de crédito apresentou-se absolutamente aperfeiçoada com a manifestação das partes. A exigência legal especial (de autorização judicial para a alienação de venda de ativo permanente da recuperanda), como condição de eficácia, não altera a natureza de execução do contrato.
Tampouco a posterior definição do crédito, se maior ou menor ao valor ajustado, caracteriza-se como evento extraordinário ou imprevisível às partes. O risco e a própria incerteza a respeito do valor do crédito, objeto de cessão, constituem a própria essência do negócio jurídico.
Com efeito, o fato de um dos contratantes encontrar-se em recuperação judicial não autoriza o descumprimento ou a atenuação de suas obrigações assumidas após o deferimento de sua recuperação, sobretudo as chanceladas pelo Poder Judiciário, a frustrar a segurança jurídica dessas relações negociais que legitimamente se espera.
Doutrina“A recuperação judicial, em regra, não implica o desapossamento nem a perda da gestão empresarial. O regime pressupõe administração custodiada. No curso de processo de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores poderão ser mantidos na administração da empresa, exercendo normalmente suas atividades, continuando com seu negócio, oferecendo demonstrativos mensais de contas, enfim, praticando os atos de gestão empresarial. Serão fiscalizados pelo administrador judicial e, se for o caso, pelo Comitê de recuperação judicial. […] Por outro lado, se se permitir ao devedor que durante a recuperação continue gerindo os negócios da empresa, certamente o fará debaixo de medidas de custódia e com a participação efetiva do administrador judicial, para que não se comprometa a confiança dos credores no cumprimento do plano. A LRE traz implícita a distrição entre os exercício dos negócios no curso ordinário da atividade empresarial e atos dispositivos excepcionais. Quando a alienação pretendida não seja inerente ao curso ordinário dos negócios, a aprovação jurisdicional é indispensável.
A LRE não distingue entre bens móveis e imóveis, dispensando proteção a ambos, visando à conservação do ativo da empresa. É fato que o devedor sofre algumas restrições decorrentes do estado de recuperação, não possuindo a plenitude de domínio sobre os bens da empresa. Não é integral sua aptidão de gerir os negócios. Nesse sentido, o devedor não poderá alienar nem onerar bens e direitos de seu ativo permanente, salvo no caso de evidente utilidade ou daqueles previamente relacionados no plano. Eventual alienação ou oneração será sempre antecedida de parecer do Comitê. A sanção para a inobservância da restrição é a ineficácia do ato, se rescindida a recuperação judicial. Com a eclosão da falência, a alienação efetuada contra expressa disposição legal torna-se ineficaz, ainda que de boa-fé dos adquirentes”. (FAZZIO Júnior, Waldo, Manual de Direito Comercial. 21ª Edição, São Paulo: Atlas, 2020, p. 535);
“A cessão de crédito é negócio jurídico pelo qual o credor transfere a terceiro sua posição na relação obrigacional. […] O contrato de cessão é simplesmente consensual. À primeira vista, causa estranheza enquadrá-lo na classificação baseada na exigência ou dispensa da entrega da coisa para que se torne perfeito e acabado. No entanto, justifica-se por que há créditos incorporados a um documento, o qual deve ser entregue ao cessionário para que ele possa exercer o respectivo direito. Quando se diz, pois que o contrato de cessão é simplesmente consensual, significa-se que não é necessária a tradição do documento para sua perfeição, bastando o acordo de vontades entre cedente e cessionário. Tanto que se efetive, estará perfeito e acabado. Em alguns casos, porém, a natureza do título exige a entrega, assimilando-se aos contratos reais. Não requer forma especial. Sua causa pode, entretanto, torná-lo formal. Se a cessão for, por exemplo de uma transação, há de obedecer a forma escrita. […] Conquanto não seja contrato formal, a cessão de crédito não vale em relação a terceiros, se não se celebrar mediante instrumento público ou instrumento particular revestido das exigências legais. Esses terceiros, a que se refere a lei, são as pessoas estranhas à cessão, não incluindo, porém, o devedor, que também não é parte. Se, com efeito, o devedor estivesse compreendido nessa referência, toda cessão deveria ter, necessariamente, forma escrita. (GOMES, Orlando, Obrigações. 19ª Edição, Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 208-210)
LegislaçãoArt. 66 da Lei n. 11.101/2005, arts. 288, 421, 422, 478, 157, § 1º do Código Civil
REsp 1.804.201-SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 21/09/2021, DJe 24/09/2021.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Honorários advocatícios. Dentro dos percentuais fixados em lei. Redução. Possibilidade. Padrões da razoabilidade e proporcionalidade.
É possível, ainda que os honorários advocatícios estejam dentro dos percentuais fixados em lei, a redução dos seus valores quando fora dos padrões da razoabilidade e proporcionalidade.
Inicialmente não se desconhece que a distribuição dos honorários advocatícios que respeita ao comando previsto no art. 85, § 2º, do Código de Processo Civil não merece, em regra, ser alterada.
Consoante o enunciado normativo do art. 85, § 2º, do CPC/2015, os honorários serão fixados entre o mínimo de dez e o máximo de vinte por cento sobre o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa.
No entanto, de outro giro, há entendimento no âmbito do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, ainda que os honorários advocatícios estejam dentro dos percentuais fixados em lei, é possível a redução dos seus valores quando fora dos padrões da razoabilidade.
LegislaçãoCPC/2015, art. 85, § 2º
REsp 1.951.176-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 19/10/2021, DJe de 28/10/2021.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Cabimento de medidas executivas atípicas. Suspensão de CNH e apreensão de passaporte. Necessidade de observância ao contraditório e à proporcionalidade. Descabimento de quebra de sigilo bancário com finalidade de satisfação de direito patrimonial disponível.
Embora seja possível a adoção de medidas executivas atípicas, é descabida a utilização da quebra de sigilo bancário destinada tão somente à satisfação do crédito exequendo.
A controvérsia consiste em definir sobre o cabimento e a adequação de medidas executivas atípicas especificamente requeridas pela recorrente, sobretudo a quebra de sigilo bancário.
A jurisprudência desta Corte Superior admite a adoção de medidas executivas atípicas, com fundamento no art. 139, IV, do CPC/2015, desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade, a exemplo das providências de suspensão das Carteiras Nacionais de Habilitação (CNHs) e de apreensão dos passaportes dos executados.
No entanto, o sigilo bancário constitui direito fundamental implícito, derivado da inviolabilidade da intimidade (art. 5º, X, da CF/1988) e do sigilo de dados (art. 5º, XII, da CF/1988), integrando, por conseguinte, os direitos da personalidade, de forma que somente é passível de mitigação – dada a sua relatividade -, quando dotada de proporcionalidade a limitação imposta.
Sobre o tema, adveio a Lei Complementar n. 105, de 10/01/2001, a fim de regulamentar a flexibilização do referido direito fundamental, estabelecendo que, a despeito do dever de conservação do sigilo pela instituição financeira das “suas operações ativas e passivas e serviços prestados” (art. 1º), esse sigilo pode ser afastado, excepcionalmente, para a apuração de qualquer ilícito criminal (art. 1º, § 4º), bem como de determinadas infrações administrativas (art. 7º) e condutas que ensejem a abertura e/ou instrução de procedimento administrativo fiscal (art. 6º).
Nessa perspectiva, considerando o texto constitucional acima mencionado e a LC n. 105/2001, assenta-se que o abrandamento do dever de sigilo bancário revela-se possível quando ostentar o propósito de salvaguardar o interesse público, não se afigurando cabível, ao revés, para a satisfação de interesse nitidamente particular, sobretudo quando não caracterizar nenhuma medida indutiva, coercitiva, mandamental ou sub-rogatória, como estabelece o art. 139, IV, do CPC/2015.
Portanto, a quebra de sigilo bancário destinada tão somente à satisfação do crédito exequendo (visando à tutela de um direito patrimonial disponível, isto é, um interesse eminentemente privado) constitui mitigação desproporcional desse direito fundamental – que decorre dos direitos constitucionais à inviolabilidade da intimidade (art. 5º, X, da CF/1988) e do sigilo de dados (art. 5º, XII, da CF/1988) -, mostrando-se, nesses termos, descabida a sua utilização como medida executiva atípica.
Doutrina[…] O sigilo bancário nada mais é do que um desdobramento do sigilo de comunicação de dados. Com efeito, os dados bancários de um indivíduo podem, em muitos casos, revelar o modo de vida desse indivíduo, seus hábitos, como por exemplo, onde compra, onde faz suas refeições, que tipo de negócios desenvolve e com quem, onde desfruta suas horas de lazer etc. Esses dados, por estarem intimamente ligados ao modo de ser das pessoas, devem receber especial proteção, sob pena de – por via inversa – fazermos tábula rasa do direito à privacidade. […] Em suma, compreendemos que tanto o direito à privacidade (art. 5º, X, da CF), como o direito ao sigilo da comunicação de dados (art. 5º, XII, da CF) agasalham, como direito fundamental implicitamente acolhido pela Constituição Federal, aquilo que podemos denominar de “direito ao sigilo bancário”. (DANTAS, David Diniz: Sigilo Fiscal e Bancário ? Coordenadores Reinaldo Pizolio e Jayr Viégas Gavaldão Jr. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 346-347) “se há interesse público envolvido, o sigilo privado sobre informações armazenadas pode ser excepcionado” (FERRAZ Júnior, Tercio Sampaio (Sigilos bancário e fiscal: homenagem ao Jurista José Carlos Moreira Alves ? Coordenadores Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho e Vasco Branco Guimarães. 2ª edição. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 102)
LegislaçãoArt. 139, IV, 854 do CPC/2015; art. 5º, X, XII, da CF/1988; art. 52 do Código Civil; arts. 1º, § 4º, 6º, 7º, 10, da Lei Complementar n. 105/2001;
REsp 1.228.081-MT, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. Acd. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por maioria, julgado em 18/05/2021, DJe 20/08/2021.
DIREITO AUTORAL
Desenho de logotipo. Símbolo da pessoa jurídica e por ela exclusivamente utilizado. Remuneração já percebida pelo autor do desenho em função do contrato de trabalho. Uso prolongado do logotipo após a demissão do autor. Dano material inexistente.
Não configura dano material o fato de a pessoa jurídica ter continuado a usar o logotipo após a demissão do autor do desenho.
Inicialmente cumpre salientar que a obra intelectual, que foi posteriormente registrada na Biblioteca Nacional, de cotitularidade das partes, e cujo uso foi remunerado pela retribuição recebida durante o contrato de trabalho, só tem uma serventia. O autor foi solicitado a desenhar um símbolo para o grupo editorial, que só pode ser usado pelo grupo editorial. Não tem nenhuma utilidadede, exceto para o grupo editorial.
Embora seja certo que há cotitularidade desse direito autoral, há essa peculiaridade que distingue o presente caso dos precedentes julgados por este Tribunal: o Direito Autoral recai sobre um símbolo, e esse símbolo designa uma empresa, e somente pode ser usado por essa empresa.
O autor, seja durante a relação de emprego, seja após ela, não teria como usar esse símbolo em benefício patrimonial próprio. Portanto, não há danos materiais pela mera circunstância de a empresa, para quem foi desenhado o símbolo, que era representada por esse símbolo – sua imagem pública -, deixar de usá-lo ou continuar a usá-lo. Assim, se o autor do desenho não poderia usar esse símbolo em benefício próprio – até porque não é a pessoa jurídica, não a representa e sequer é sócio dessa pessoa jurídica, ao que conste -, ele não poderia fazer uso nenhum desse símbolo.
Também não se pode dizer que os lucros que essa empresa tenha tido ao longo dos anos se devem não à sua atividade empresarial de meio de comunicação, mas ao fato de ter usado o símbolo desenhado pelo autor, ou sequer que tenham sido incrementados pelo valor inerente ao símbolo.
Não há aqui que se buscar danos materiais pelo fato de a empresa ter continuado a usar seu próprio logotipo, que simboliza a empresa, após a demissão do autor.
Portanto, quanto a esses danos materiais por ele haver desenhado o símbolo foram pagos durante a relação de emprego, ou seja, se não tivesse sido pago para criar o símbolo, ele mereceria uma remuneração por haver feito esse desenho, mas não danos materiais pelo uso ao longo dos anos, porque, feito licitamente o desenho durante a relação de emprego, a empresa continua a usar seu próprio símbolo.
Registra-se que a hipótese é em tudo diversa de outros tipos de obras intelectuais que possam ser realizadas, ou concebidas, ou criadas por empregado no âmbito de uma relação de emprego. Por exemplo, se fosse empregado de um grupo empresarial dedicado à educação e tivesse feito apostilas didáticas; se ele saísse da empresa, fosse demitido e a empresa continuasse a usar aquele material de ensino para as próximas turmas de estudantes, penso que haveria frutos decorrentes da continuidade de uso daquele material didático.
Se, em outro exemplo, ele tivesse inventado uma máquina ou equipamento qualquer ou desenvolvido uma tecnologia que fosse utilizada na capacidade produtiva da empresa, teria direito autoral e também estaria contribuindo com frutos obtidos pela empresa. A empresa continuaria usando, após a saída dele, esse invento, o qual poderia ser usado por ele também caso desenvolvesse o próprio negócio. Mesmo exemplo das apostilas: ele poderia fazer uso daquelas apostilas em outro tipo de negócio ou empresa. Mas não é o caso aqui; o que temos é um símbolo. Seria ilegítimo e ilegal que ele, pelo mero fato de ter desenhado esse símbolo, uma vez rompido o contrato de trabalho, fosse usá-lo para desenvolver qualquer outro negócio, já que ele não integra e nem se confunde com a empresa.
Deste modo, não configura dano material o fato de a pessoa jurídica ter continuado a usar o logotipo após a demissão do autor do desenho.
Legislaçãoart. 36 da Lei n. 5.988/1973.
REsp 1.729.402-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por maioria, julgado em 14/12/2021.
DIREITO CIVIL
Ação de retificação de nome. Duplicação de consoante inserta no apelido de família. Finalidade de adequar o nome registral àquele utilizado como assinatura artística. Princípio da imutabilidade relativa. Caráter excepcional e devidamente fundamentado em justo motivo. Não demonstração no caso concreto.
Não é possível a alteração de patronímico de família, com a duplicação de uma consoante, a fim de adequar o nome registral àquele utilizado como assinatura artística.
Inicialmente cumpre salientar que, o princípio da imutabilidade do nome não é absoluto no sistema jurídico brasileiro, de modo que o nome civil, conforme as regras insertas nos artigos 56 e 57 da Lei de Registros Públicos, pode ser alterado: a) no primeiro ano após o alcance da maioridade, desde que não prejudique os apelidos de família; ou b) ultrapassado esse prazo, excepcionalmente, por justo motivo, mediante oitiva do representante do Ministério Público e apreciação judicial.
O sobrenome, apelido de família ou patronímico, enquanto elemento do nome, transcende o indivíduo, dirigindo-se, precipuamente, ao grupo familiar, de modo que a admissão de alterações/modificações deve estar pautada pelas hipóteses legais, via de regra, decorrente da alteração de estado (adoção, casamento, divórcio), ou, excepcionalmente, em havendo justo motivo, preceituado no artigo 57 da Lei n. 6.015/1973. Tratando-se, portanto, de característica exterior de qualificação familiar, afasta-se a possibilidade de livre disposição, por um de seus integrantes, a fim de satisfazer interesse exclusivamente estético e pessoal de modificação do patronímico.
Nada obstante os contornos subjetivos do nome como atributo da personalidade e elemento fundamental de identificação do sujeito – seja no âmbito de sua autopercepção ou no meio social em que se encontra inserido -, o apelido de família, ao desempenhar a precípua função de identificação de estirpe, não é passível de alteração pela vontade individual de um dos integrantes do grupo familiar.
Na hipótese dos autos, a modificação pretendida altera a própria grafia do apelido de família e, assim, consubstancia violação à regra registral concernente à preservação do sobrenome, calcada em sua função indicativa da estirpe familiar, questão que alcança os lindes do interesse público. Ademais, tão-somente a discrepância entre a assinatura artística e o nome registral não consubstancia situação excepcional e motivo justificado à alteração pretendida.
O nome do autor de obra de arte, lançado por ele nos trabalhos que executa, pode ser neles grafado nos moldes que bem desejar, sem que tal prática importe em consequência alguma ao autor ou a terceiros, pois se trata de uma opção de cunho absolutamente subjetivo, sem impedimento de qualquer ordem. Todavia, a utilização de nome de família, de modo geral, que extrapole o objeto criado pelo artista, com acréscimo de letras que não constam do registro original, não para sanar equívoco, mas para atender a desejo pessoal, não está elencado pela lei a render ensejo à modificação do assento de nascimento.
Doutrina(1) Outro direito fundamental da pessoa é o da identidade, que inaugura o elenco dos direitos de cunho moral, exatamente porque se constitui no elo entre o indivíduo e a sociedade em geral. Com efeito, o nome e outros sinais identificadores da pessoa são os elementos básicos de associação de que dispõe o público em geral para o relacionamento normal, nos diversos núcleos possíveis: familiar, sucessório, negocial, comercial e outros. Cumpre, aliás, duas funções essenciais: a de permitir a individualização da pessoa e a de evitar confusão com outra. Possibilita seja a pessoa imediatamente lembrada, mesmo em sua ausência e a longas distâncias. Nesse sentido, aliás, a imagem e a voz também cumprem, a par de outros caracteres pessoais, a missão exposta, sob âmbito mais restrito, exigindo a prévia fixação e maior esforço associativo; mas, de qualquer sorte, nesse passo, atestam a contínua interpenetração dos direitos da personalidade de já referida. (Bittar, Carlos A. Os Direitos da Personalidade, 8ª edição. Disponível em: Minha Biblioteca, Editora Saraiva, 2014. p. 195).
(2) É aspecto distintivo da procedência familiar no meio social, pertencendo a todo grupo familiar, indistintamente, como entidade. Justamente por isso não pode ser descartado pelo indivíduo que o ostente, dado que não é possível dispor daquilo que não pertence a cada um individualmente, apenas em conjunto, do grupo familiar com um todo. Tudo no sobrenome é essencial, acentua Humblet. A forma maiúscula ou minúscula das letras, a justaposição ou a separação das sílabas, os traços de união, acentos, tremas, apóstrofes, enfim, todos os sinais gráficos que porventura revelem em sua grafia original, excetuando-se, naturalmente, os casos de erro; frisando que ‘não somente as diversas sílabas que constituem o nome e lhe dão individualidade: é também a ortografia.” (RODRIGUES, Marcelo. Tratado de Registros Públicos e Direito Notarial. 3 ed. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 114 e 119).
LegislaçãoArt. 1º, III, da CF/1988; art. 56 e 57 da Lei n. 6.015/1973.
REsp 1.789.863-MS, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por maioria, julgado em 10/08/2021, DJe 04/10/2021.
DIREITO CIVIL
Ação de reintegração de posse. Compromisso de compra e venda de imóvel com cláusula de resolução expressa. Inadimplência do compromissário comprador. Mora comprovada por notificação e decurso do prazo para a purgação. Prévio ajuizamento de demanda judicial para a resolução contratual. Desnecessidade.
É possível o manejo de ação possessória, fundada em cláusula resolutiva expressa, decorrente de inadimplemento contratual do promitente comprador, sendo desnecessário o ajuizamento de ação para resolução do contrato.
A cláusula resolutiva expressa, como o nome sugere, constitui-se uma cláusula efetiva e expressamente estipulada pelas partes, seja no momento da celebração do negócio jurídico, ou em oportunidade posterior (via aditivo contratual), porém, sempre antes da verificação da situação de inadimplência nela prevista, que constitui o suporte fático para a resolução do ajuste firmado.
Evidentemente, a vantagem da estipulação expressa é que, ocorrendo a hipótese específica prevista no ajuste, o efeito resolutório da relação negocial disfuncional subsistirá independentemente de manifestação judicial, sendo o procedimento para o rompimento do vínculo mais rápido e simples, em prestígio à autonomia privada e às soluções já previstas pelas próprias partes para solução dos percalços negociais.
Neste ponto, ressalte-se que inobstante a previsão legal (art. 474 do Código Civil) que dispensa as partes da ida ao Judiciário quando existente a cláusula resolutiva expressa por se operar de pleno direito, esta Corte Superior, ao interpretar a norma aludida, delineou a sua jurisprudência, até então, no sentido de ser “imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa, diante da necessidade de observância do princípio da boa-fé objetiva a nortear os contratos” (REsp 620.787/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, DJe 27.04.2009).
Na situação em exame, revela-se incontroverso que: (i) há cláusula resolutiva expressa no bojo do compromisso de compra e venda de imóvel firmado entre as partes; (ii) a autora procedeu à notificação extrajudicial do réu, considerando, a partir do prazo para a purga da mora, extinto o contrato decorrente de inadimplemento nos termos de cláusula contratual específica entabulada pelas partes, sem ajuizar prévia ação de rescisão do pacto; e (iii) a pretensão deduzida na inicial (reintegração na posse do imóvel) não foi cumulada com o pedido de rescisão do compromisso de compra e venda.
Desse modo, caso aplicada a jurisprudência sedimentada nesta Corte Superior, sem uma análise categórica dos institutos a ela relacionados e das condições sobre as quais ancorada a compreensão do STJ acerca da questão envolvendo a reintegração de posse e a rescisão de contrato com cláusula resolutória expressa, sobressairia a falta de interesse de agir da autora (na modalidade inadequação da via eleita), por advir a posse do imóvel da celebração do compromisso de compra e venda cuja rescisão supostamente deveria ter sido pleiteada em juízo próprio.
Entende-se, todavia, que casos como o presente reclamam solução distinta, mais condizente com as expectativas da sociedade hodierna, voltadas à mínima intervenção estatal no mercado e nas relações particulares, com foco na desjudicialização, simplificação de formas e ritos e, portanto, na primazia da autonomia privada.
Note-se que a mudança de entendimento que se pretende não encerra posicionamento contralegem. Sequer é, pois, de ordem legislativa, visto que, como já dito, a lei não determina que o compromisso de compra e venda deva, em todo e qualquer caso, ser resolvido judicialmente, mas pelo contrário, admite expressamente o desfazimento de modo extrajudicial, exigindo, apenas, a constituição em mora ex persona e o decurso do prazo legal conferido ao compromissário comprador poder purgar sua mora.
Em outras palavras, após a necessária interpelação para constituição em mora, deve haver um período no qual o contrato não pode ser extinto e que o compromissário comprador tem possibilidade de purgar. Entretanto, não há óbice para a aplicação da cláusula resolutiva expressa, porquanto após o decurso do prazo in albis, isto é, sem a purgação da mora, nada impede que o compromitente vendedor exerça o direito potestativo concedido pela cláusula resolutiva expressa para a resolução da relação jurídica extrajudicialmente.
Evidentemente, compreender a exigência de interpelação para constituição em mora como necessidade de se resolver o compromisso de compra e venda apenas judicialmente enseja confusão e imposição que refogem a intenção do legislador ordinário, por extrapolar o que determina a legislação específica sobre o compromisso de compra e venda de imóvel.
A eventual necessidade do interessado recorrer ao Poder Judiciário para pedir a restituição da prestação já cumprida, ou devolução da coisa entregue, ou perdas e danos, não tem efeito desconstitutivo do contrato, mas meramente declaratório de relação evidentemente já extinta por força da própria convenção das partes.
Isso porque, cumprida a necessidade de comprovação da mora e comunicado o devedor acerca da intenção da parte prejudicada de não mais prosseguir com a avença ultrapassado o prazo para a purgação da mora, o contrato se resolve de pleno direito, sem interferência judicial. Essa resolução, como já mencionado, dá-se de modo automático, pelo só fato do inadimplemento do promitente comprador, independentemente de qualquer outra providência.
Não se nega a existência de casos nos quais, em razão de outros institutos, esteja a parte credora impedida de pôr fim à relação negocial, como, por exemplo, quando evidenciado o adimplemento substancial. Porém, essas hipóteses não podem transformar a excepcionalidade em regra, principalmente caso as partes estipulem cláusula resolutiva expressa e o credor demonstre os requisitos para a comprovação da mora, aguarde a apresentação de justificativa plausível pelo inadimplemento ou a purga e comunique a intenção de desfazimento do ajuste, informação que pode constar da própria notificação.
Ressalte-se que a notificação deve conter o valor do crédito em aberto, o cálculo dos encargos contratuais cobrados, o prazo e local de pagamento e, principalmente, a explícita advertência de que a não purgação da mora no prazo acarretará a gravíssima consequência da extinção do contrato por resolução, fazendo nascer uma nova relação entre as partes – de liquidação.
Dito isso, afirma-se que a alteração jurisprudencial é necessária para tornar prescindível o intento de demanda/ação judicial nas hipóteses em que existir cláusula resolutória expressa e tenha a parte cumprido os requisitos para a resolução da avença.
Necessário referir, ainda, que em hipóteses excepcionais, quando sobressaírem motivos plausíveis e justificáveis para a não resolução do contrato, sempre poderá a parte devedora socorrer-se da via judicial a fim de alcançar a declaração de manutenção do ajuste, transformando o inadimplemento absoluto em parcial, oferecendo, na oportunidade, todas as defesas que considerar adequadas a fim de obter a declaração de prosseguimento do contrato.
Frise-se que impor à parte prejudicada o ajuizamento de demanda judicial para obter a resolução do contrato quando esse estabelece em seu favor a garantia de cláusula resolutória expressa, é impingir-lhe ônus demasiado e obrigação contrária ao texto expresso da lei, desprestigiando o princípio da autonomia da vontade, da não intervenção do Estado nas relações negociais, criando obrigação que refoge à verdadeira intenção legislativa.
LegislaçãoAart. 960 do CC/1916; art. 1.092 do CC/1916; art. 474 do CC/2002; art. 475 do CC/2002; art. 476 do CC/2002; art. 477 do CC/2002; art. 478 do CC/2002; art. 479 do CC/2002; art. 480 do CC/2002; art. 395 do CC/2002; art. 397 do CC/2002; art. 3º do CPC/1973; art. 20, § 4º do CPC/1973; art. 267, VI do CPC/1973; art. 535 do CPC/1973; art. 190 do CPC/2015; art. 12, § 1º, do Decreto-Lei n. 58/1937; art. 14 do Decreto-Lei n. 58/1937; art. 22 do Decreto-Lei n. 58/1937; art. 32 da Lei n. 6.766/1979 e art. 62 da Lei n. 13.097/2015.
SúmulasSúmulas n. 7, 76 e 211, todas do STJ.
AgInt no EAREsp 1.636.268-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Rel. Acd. Min. Raul Araújo, Quarta Turma, por maioria, julgado em 24/08/2021, DJe 19/10/2021.
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
Honorários advocatícios sucumbenciais. Cumprimento de sentença. Acordo entre as partes. Ausência de menção aos honorários de sucumbência. Homologação do acordo. Participação do advogado credor da sucumbência omitida, sem expressar qualquer ressalva. Aquiescência do profissional caracterizada. Art. 24, § 4º da Lei n. 8.906/1994. Posterior pretensão de execução de honorários na ação monitória. Impossibilidade.
Não é possível a execução de honorários sucumbenciais de acordo que teve a efetiva participação e aquiescência do advogado, que não fez qualquer ressalva acerca de seu direito.
Inicialmente, cumpre salientar que, a aquiescência do advogado, a que alude o art. 24, § 4º, da Lei 8.906/1994, visa proteger os interesses do profissional, em relação aos honorários advocatícios contratuais ou sucumbenciais, quando o advogado não participa do ajuste, não toma oportuno conhecimento da realização do acordo, de modo a poder neste influir e fazer as ressalvas que entender devidas aos termos pactuados, especialmente quanto aos próprios honorários, notadamente os sucumbenciais, dado que, em caso de homologação judicial do acordo, a decisão homologatória substitui, ou afeta em alguma medida, a anterior decisão proferida na lide, pondo fim mais harmônico e menos impositivo ao litígio entre as partes.
A Lei, portanto, prestigia o advogado e seu trabalho em prol do cliente, para que não seja o defensor surpreendido com eventual acordo entre as partes sem sua ciência, prejudicando os honorários profissionais. Essa proteção busca evitar prejuízos ao advogado quando o contratante, agindo com questionável boa-fé, celebre um acordo com o adversário, à revelia do advogado e em prejuízo dos interesses remuneratórios do patrono desconsiderado.
A situação prevista em lei, por óbvio, não ocorre quando o advogado participa do acordo, assistindo regularmente o cliente, ou, ao menos, tem inequívoca e oportuna prévia ciência do acordo, pois, em tais hipóteses, poderá ressalvar expressamente seus interesses remuneratórios acaso prejudicados ou ignorados na avença.
Nessa linha de intelecção e à luz do art. 24, § 4º, da Lei 8.906/1994, a execução dos honorários advocatícios não deve prosseguir, pois, além de violar o referido artigo, também acarretaria claro desprestígio e desatenção ao princípio da boa-fé processual, o qual deve nortear o comportamento de todas as partes envolvidas em qualquer litígio e de seus respectivos patronos.
Assim, em razão da efetiva participação e aquiescência do advogado no acordo firmado entre as partes, infere-se que o caso em exame não se amolda à jurisprudência desta eg. Corte, que entende pela continuidade da cobrança dos honorários advocatícios sucumbenciais, quando o advogado não concorda ou não teve ciência do acordo firmado entre os litigantes.
Legislaçãoart. 24, § 4º, da Lei 8.906/1994.
REsp 1.487.596-MG, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 28/09/2021, DJe 01/10/2021.
DIREITO CIVIL, DIREITO CONSTITUCIONAL
Multiparentalidade. Pais biológico e socioafetivo. Efeitos patrimoniais e sucessórios. Tratamento jurídico diferenciado. Impossibilidade.
Na multiparentalidade deve ser reconhecida a equivalência de tratamento e de efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva.
A questão da multiparentalidade foi decidida em repercussão geral pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 898.060/SC, tendo sido reconhecida a possibilidade da filiação biológica concomitante à socioafetiva, por meio de tese assim firmada: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”
A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF), sendo expressamente vedado qualquer tipo de discriminação e, portanto, de hierarquia entre eles.
Assim, aceitar a concepção de multiparentalidade é entender que não é possível haver condições distintas entre o vínculo parental biológico e o afetivo. Isso porque criar status diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos, o que viola o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990, ambos com idêntico teor: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
Por fim, anota-se que a Corregedoria Nacional de Justiça alinhada ao precedente vinculante da Suprema Corte, editou o Provimento n. 63/2017, instituindo modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispondo sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e da maternidade socioafetivas, sem realizar nenhuma distinção de nomeclatura quanto à origem da paternidade ou da maternidade na certidão de nascimento – se biológica ou socioafetiva.
LegislaçãoCF, art. 227, § 6º
CC/2002, art. 1.596
Lei n. 8.069/1990, art. 20
Precedentes Qualificados RE 898.060/SC, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, por maioria (REP. GERAL TEMA: 622).
REsp 1.331.719-SP, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Rel. Acd. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, por maioria, julgado em 03/08/2021, DJe 04/10/2021.
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL
Penhora de bem imóvel por termo nos autos. Necessidade de intimação pessoal do devedor assistido pela Defensoria Pública. Múnus público. Constituição de poderes gerais para o foro. Ato de natureza material que demanda ação positiva pessoal do assistido. Súmula n. 319/STJ.
É imprescindível a intimação pessoal para fins de constituição do devedor, assistido pela Defensoria, como depositário fiel da penhora de bem imóvel realizada por termo nos autos.
Discute-se a validade da intimação dirigida à Defensoria Pública, para fins de constituição do devedor assistido como depositário fiel da penhora realizada por termo nos autos.
Vale destacar que as reformas introduzidas no processo executivo e na fase de cumprimento de sentença (notadamente pelas Leis n. 10.444/2002 e 11.382/2006) visaram à simplificação e efetividade dos procedimentos previstos pelo antigo Código, a fim de alcançar atividade satisfativa jurisdicional célere e eficaz, dentre elas se destacando a possibilidade de intimar o executado “na pessoa de seu advogado”, para fins de constituí-lo como depositário.
Em se tratando, todavia, de parte representada pela Defensoria Pública, algumas peculiaridades merecem maior aprofundamento, notadamente as relacionadas ao tipo de intimação, aos seus ônus e às características da assistência/representação realizada pela Defensoria Pública.
Nessa senda, imperioso pontuar a distinção existente entre o defensor constituído pela parte e o Defensor Público, atuando em razão de múnus público legalmente atribuído, em que não há escolha ou relação prévia de confiança entre assistido e representante.
Nesse contexto, a representação da parte em juízo, justamente por ser constituída legalmente, dispensa a apresentação de mandato, possuindo o defensor apenas os poderes relacionados à procuração geral para o foro, visto que o exercício de poderes especiais demanda mandato com cláusula expressa, conforme o disposto nos artigos 38, caput, do CPC/1973 e 16, parágrafo único, “a”, da Lei n. 1.060/1950.
Ademais, percebe-se que o legislador fez clara distinção entre os atos puramente processuais e aqueles materiais, que demandam ação positiva pessoal do assistido.
Nesse ponto, a doutrina preceitua que a intimação é essencial à garantia constitucional do contraditório, de modo que a distinção dos destinatários da intimação, a própria parte ou o advogado na qualidade de defensor dessa, é feita a partir da natureza dos atos a se realizar.
Pertinente, ainda, apontar que, segundo o art. 666, §3º do CPC/73, “a prisão do depositário infiel será decretada no próprio processo, independentemente de ação de depósito”. No CPC/15, dispõe o artigo 161, parágrafo único, que “o depositário infiel responde civilmente pelos prejuízos causados, sem prejuízo de sua responsabilidade penal e da imposição de sanção por ato atentatório à dignidade da justiça
Dessa forma, a constituição do devedor como depositário do bem penhorado não pode ser considerada, sob qualquer aspecto, como ato de natureza puramente processual, justamente em razão das consequências civis e penais que o descumprimento do mister pode acarretar. Entendimento diverso implicaria a atribuição ao Defensor Público de responsabilidade desproporcional pelo cumprimento e respeito do comando judicial por parte do assistido que, muitas das vezes, sequer mantém ou atualiza o contato junto à instituição.
Observa-se que a intimação pessoal é pressuposto lógico da adequada observância do comando contido na consolidada Súmula n. 319/STJ, que prevê que “o encargo de depositário de bens penhorados pode ser expressamente recusado.”
Com efeito, a possibilidade de recusa expressa do encargo de depositário de bens somente é respeitada caso seja oportunizada à parte, previamente, a opção de fazê-lo, de forma pessoal, não sendo preservado o direito do devedor-depositário pela circunstância de poder, ulteriormente, requerer ao Juízo que preside o feito sua exoneração. Isso porque as situações caracterizadoras de responsabilidade civil e criminal do depositário já podem estar, inclusive, concretizadas em razão da ausência de ciência pessoal do devedor do encargo, que já pode ter alienado ou instituído gravame sobre o bem penhorado.
Assim sendo, apesar de o antigo CPC/1973 não prever de forma expressa a necessidade de intimação pessoal da parte quando assistida pela Defensoria Pública, o que pode ser justificado também em razão de o citado órgão ter adquirido estatura constitucional somente quando da promulgação da Constituição Federal de 1988, e a Defensoria ter sido dotada de autonomia funcional e administrativa apenas por força da EC 45/2004, o novo CPC, atento às necessidades verificadas na prática forense e às críticas acadêmicas, foi explícito em diversos artigos a respeito da obrigatoriedade de intimação pessoal do devedor representado pela Defensoria Pública.
Evidencia-se, portanto, que há clara diferença entre a relação representante-representado quando o advogado é designado e não constituído voluntária e pessoalmente pela parte.
Dessa forma, há a necessidade de intimação pessoal do devedor assistido pela Defensoria Pública para que seja constituído como depositário fiel do bem imóvel penhorado por termo nos autos, seja em virtude de o ato possuir conteúdo de direito material e demandar comportamento positivo da parte, b) seja em razão de o Defensor Público, na condição de defensor nomeado e não constituído pela parte, exercer múnus público que impede o seu enquadramento no conceito de “advogado” para os fins previstos no artigo 659, § 5°, do CPC/1973, possuindo apenas, via de regra, poderes gerais para o foro.
LegislaçãoArt. 38, caput, do CPC/1973; Art. 659, § 5°, do CPC/1973; Art. 666, § 3º do CPC/1973; Art. 16, parágrafo único, “a”, da Lei n. 1.060/1950.
SúmulasSúmula n. 319/STJ.
Saiba mais:
RMS 67.105-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 21/09/2021, DJe 17/11/2021.
DIREITO CONSTITUCIONAL, DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Execução. Decisão judicial para apresentação do contrato de serviços advocatícios. Providência com a finalidade de localizar o endereço do executado. Afronta às prerrogativas inerentes à advocacia. Violação do sigilo profissional.
Decisão judicial que determina a apresentação do contrato de serviços advocatícios, com a finalidade de verificação do endereço do cliente/executado, fere o direito à inviolabilidade e sigilo profissional da advocacia.
A advocacia é função essencial à administração da Justiça, reconhecida como tal no caput do art. 133 da CF/1988. A legítima exegese desse dispositivo constitucional é a que reconhece proteção ao exercício da advocacia e não ao advogado e, assim, a essencialidade própria do advogado se revela apenas “no contexto de aplicação do ordenamento jurídico, em atividade vinculada ao órgão jurisdicional atuando na reconstrução, e mais, na ressemantização democrática e participada das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto”.
Ademais, a garantia do sigilo profissional tem assento no art. 5º, inciso XIV, da CF/1988, que estabelece ser “assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”.
O art. 7º, inciso II, do Estatuto da Advocacia, determina a inviolabilidade do escritório ou local de trabalho, bem como dos arquivos, dados, correspondências e comunicações, salvo hipótese de busca ou apreensão. E sobre o ponto, acrescenta a doutrina que “ainda que determinadas por ordem judicial, as interceptações telefônicas, previstas no art. 5º, inciso XI, da CF/1988, não podem violar direito à confidencialidade da comunicação entre advogado e cliente”.
Deve ser realçado, nesse ponto, pela relevância, que a redação do referido inciso II é fruto de alteração legislativa promovida pela Lei n. 11.767/2008. A partir da renovação operada por essa lei, o § 6º, do próprio art. 7°, regulamentou a ressalva prevista naquele inciso, detalhando melhor a matéria, prevendo expressamente as hipóteses em que a inviolabilidade poderia ser afastada.
De fato, anteriormente à publicação da Lei n. 11.767/2008, a doutrina entendia que o afastamento da inviolabilidade e realização de busca e apreensão em locais de trabalho do advogado somente era possível, desde que acompanhada por representante da OAB.
Entretanto, após a entrada em vigor da nova lei, para que seja removida a prerrogativa é necessário o preenchimento de certos requisitos: a) indícios de autoria e materialidade de crime praticado pelo próprio advogado; b) decretação da quebra da inviolabilidade por autoridade judiciária competente; c) decisão fundamentada de busca e apreensão que especifique o objeto da medida.
Aliás, pela mesma distinção, recorde-se que o sigilo profissional recebe amparo no Código Penal brasileiro (art. 154) e no Código de Processo Penal (art. 207), no sentido de que, em qualquer investigação que viole o sigilo entre o advogado e o cliente, viola-se não somente a intimidade dos profissionais envolvidos, mas o próprio direito de defesa e, em última análise, a democracia.
Noutro ponto, é conveniente assinalar que, como qualquer outro direito ou garantia fundamental, também a inviolabilidade e o sigilo profissional no âmbito do exercício da advocacia, mesmo ostentando tamanha envergadura, não são absolutos em prevalência, tendo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça exercido importante papel na definição das hipóteses em que é possível flexibilizar seu alcance, a partir de legítima e desejada ponderação de valores.
No caso, a determinação para apresentação do contrato de serviços advocatícios com a finalidade de localização do executado/cliente para expedição de mandado de penhora não configura justa causa para a suspensão das garantias constitucionalmente previstas. Assim, o contrato de prestação de serviços advocatícios, instrumento essencialmente produzido e referente à relação advogado/cliente, está sob a guarda do sigilo profissional, assim como se comunica a inviolabilidade da atividade advocatícia.
Doutrina(1) “o direito de recorrer, conferido ao estranho ao processo, justifica-se pelo reconhecimento da legitimidade do seu interesse em evitar efeitos reflexos da sentença sobre relações interdependentes, ou seja, relações que, embora não deduzidas no processo, dependam do resultado favorável do litígio em prol de um dos litigantes” (Humberto Theodoro Júnior, in Curso de Direito Processual Civil. V. III. 48. ed. rev., atual.e ampl. Rio de Janeiro: Forense, p. 986).
(2) “ao recorrer, o terceiro não pode pleitear nada para si, porque ação não exerce. O seu pedido se limita à lide primitiva e a pretender a procedência ou improcedência da ação como posta originalmente entre as partes” (Vicente Greco Filho, in Da intervenção de terceiros. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 103).
(3) a advocacia é função essencial à administração da Justiça, reconhecida como tal no caput do art. 133 da CF/1988. Destaque-se, que a atual Constituição foi a primeira Carta do país a atribuir à advocacia status constitucional, declarando expressamente sua indispensabilidade perante a Justiça e sua atuação sem óbices, na busca da realização do Estado Democrático de Direito (PANSIERI in CANOTILHO. et al, 2013, p. 3061).
(4) a legítima exegese do dispositivo constitucional é a que reconhece proteção ao exercício da advocacia e não ao advogado. Assim, a essencialidade própria do advogado se revela apenas “no contexto de aplicação do ordenamento jurídico, em atividade vinculada ao órgão jurisdicional atuando na reconstrução, e mais, na ressemantização democrática e participada das normas jurídicas aplicáveis ao caso concreto” (TOLENTINO, Lucas Augusto Pontes. Princípio constitucional da ampla defesa, direito fundamental ao advogado e Estado de Direito Democrático: da obrigatoriedade de participação do advogado para o adequado exercício da defesa de direitos. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) ? Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Faculdade Católica de Minas Gerais, 2007, p. 40).
(5) As prerrogativas, por sua vez, rejeitam o arbítrio. Além de não constituírem regalias, buscam munir determinados sujeitos de instrumentos úteis à neutralização de privilégios estruturais, que, de outro modo, se sobreporiam ao espírito da justiça. A natureza das prerrogativas é, portanto, inconciliável com as razões ilegítimas e antidemocráticas que subjazem aos privilégios, geralmente autoconcedidos ou instituídos em favor de segmentos detentores dos espaços de poder. (A imunidade material do advogado como corolário dos direitos da cidadania. Tese (Doutorado em Ciências Criminais) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018, p. 93).
(6) A atuação do advogado, longe do interesse corporativo, é necessária para a interpretação do direito que o cidadão comum desconhece, considerando-se a natureza técnica, notadamente as processuais, das normas jurídicas, tendo sido inovação constitucional bem inserida, no escopo de aperfeiçoamento da prestação jurisdicional (Rui Celso Reali Fragoso, in A indispensabilidade e a inviolabilidade no exercício da advocacia. Disponível:https://www.migalhas.com.br/depeso/302765/a-indispensabilidade-e-a-inviolabilidad e-no-exercicio-da-advocacia).
(7) O equívoco de imaginar-se um privilégio corporativo, o que, “na verdade, é uma proteção ao cliente que confia a ele documentos e confissões da esfera íntima, de natureza conflitiva e não raro objeto de reivindicação e até de agressiva” (José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo. 5. ed. São Paulo: RT, 1989, p. 504).
(8) “a advocacia, enquanto função essencial da Justiça, por definição constitucional, não sobrevive se não for a certeza de que o sigilo profissional representa a base sobre a qual se sustenta seu exercício” (Walter Ceneviva, in Segredos Profissionais).
(9) “ainda que determinadas por ordem judicial, as interceptações telefônicas, previstas no art. 5º, inciso XI, da CF/1988, não podem violar direito à confidencialidade da comunicação entre advogado e cliente” (Felipe Santa Cruz, in O acesso à Justiça e a defesa das prerrogativas da advocacia brasileira na jurisprudência do STJ. Disponível: https://www.migalhas.com.br/depeso/303060/o-acesso-a-justica-e-a-defesa-das-prerrogativas -da-advocacia-brasileira-na-jurisprudencia-do-stj).
(10) após a entrada em vigor da nova Lei n. 11.767/2008, para que seja removida a prerrogativa é necessário o preenchimento de certos requisitos: a) indícios de autoria e materialidade de crime praticado pelo próprio advogado; b) decretação da quebra da inviolabilidade por autoridade judiciária competente; c) decisão fundamentada de busca e apreensão que especifique o objeto da medida (GOMES, Luiz Flávio. Lei n. 11.767/08: garante a inviolabilidade do local, instrumentos de trabalho e correspondência do advogado. Disponível: https://lfg.jusbrasil.com.br/noticias/92461/lei-n-11767-08-garante-a-inviolabilidade-do-local-inst rumentos-de-trabalho-e-correspondencia-do-advogado).
(11) sobre o sigilo profissional, como prerrogativa do exercício da advocacia, merece ser referência o caráter personalíssimo ou intuitu personae que reveste a relação contratual existente entre o profissional habilitado e seu cliente, baseada na confiança depositada reciprocamente. Bem por isso que o contrato de prestação de serviços advocatícios, típico contrato de mandato, nos termos do art. 683 do Código Civil, pode ser revogado ou renunciado, a qualquer tempo. “Até porque, como confiança não se tem pela metade, havendo algum abalo na fidúcia recíproca, qualquer das partes pode promover a resilição unilateral, permitida pela natureza do negócio” (FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Braga; ROSENVALD, Nelson. Manual de Direito Civil. Volume único. 5. ed. rev., ampl. e atual., Salvador: JusPodivm, 2020, p. 907).
(12) De fato, a confiança pública de que necessitam os profissionais da advocacia se deve também transmitir aos seus arquivos, pudessem estes ser livremente vasculhados, os clientes temeriam confiar aos seus patronos as peças convenientes ao tratamento dos casos, e tais patronos se veriam tolhidos na liberdade de exercerem com eficiência os próprios encargos. (João Bernardino Gonzaga, in Violação de segredo profissional. São Paulo: Max Limonad, 1976, p. 99) (13) “todas as medidas preventivas, repressivas ou instrutórias que invadam a esfera privada ou impliquem em restrições ao exercício de direitos de quaisquer pessoas devem ser adotadas sob estrito controle judicial da sua legalidade, necessidade, proporcionalidade com a gravidade da infração e adequação”, conforme bem colocada lição de Leonardo Greco (Garantias fundamentais do processo: o processo justo. In: Os princípios da Constituição de 1988. 2. ed. Manoel Messias Peixinho, Isabella Franco Guerra e Firly Nascimento Filho (org.). Rio de Janeiro: Lumen Juris, p. 404).
LegislaçãoSúmula n. 202/STJ; Art. 5º, XI da CF/1988; Art. 5º, XIV da CF/1988; Art. 133 da CF/1988; Art. 7º, II da Lei n. 8.906/1994; Art. 5º, II da Lei n. 12.016/2009; Art. 7º, § 6º da Lei n. 11.767/2008; Art. 154 do CP; Art. 207 do CPP; Lei n. 11.767/2008; Art. 522 do CPC/1973.
Precedentes Qualificados STF. Pleno. ADI 1.127; rel. p/ acd. Min. Ricardo Lewandowski, julgado em 17/05/2006; DJe 11/06/2010.
Saiba mais:
REsp 1.812.143-MT, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 09/11/2021, DJe 17/11/2021.
DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO FALIMENTAR
Recuperação judicial. Honorários advocatícios. Crédito trabalhista por equiparação. Limitação de pagamento. Possibilidade. Art. 83, I, da Lei n. 11.101/2005. Assembleia Geral de Credores. Previsão no plano. Necessidade.
Em se tratando de crédito trabalhista por equiparação (honorários advocatícios de alta monta), é possível a aplicação do limite previsto no art. 83, I, da Lei n. 11.101/2005 por deliberação da Assembleia Geral de Credores, desde que devido e expressamente previsto no plano de recuperação judicial.
O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência firmada no sentido de que não há aplicação automática do limite previsto no art. 83, I, da Lei n. 11.101/2005 às empresas em recuperação judicial, pois a forma de pagamento dos créditos é estabelecida consensualmente pelos credores e pela recuperanda no plano de recuperação judicial.
É permitido, portanto, à Assembleia Geral de Credores, dentro dos limites de sua autonomia de deliberação participativa, negociar prazos de pagamentos, diretriz, inclusive, que serve de referência à elaboração do plano de recuperação judicial da empresa.
Todavia, a consensualidade não é absoluta, pois também é certo que os créditos essencialmente trabalhistas, entendidos como aqueles que estão ligados à subsistência dos empregados, gozam de tratamento diferenciado na Lei n. 11.101/2005, mormente quanto ao reconhecimento de seu privilégio de pagamento preferencialmente aos demais (art. 83 da LRF). Isso porque, como restou asseverado no julgamento do REsp 1.924.164/SP, “tal privilégio encontra justificativa por incidir sobre verba de natureza alimentar, titularizada por quem goza de proteção jurídica especial em virtude de sua maior vulnerabilidade”.
O caso em exame apresenta, entretanto, uma particularidade importante que não pode deixar de ser consignada: trata-se de crédito de honorários advocatícios de alta monta, ou seja: verba trabalhista por equiparação (Tema Repetitivo 637 do STJ).
Cumpre destacar que a presente distinção é capaz de lançar novas luzes sobre a questão ora controvertida, isso porque, em julgamento realizado no REsp 1.649.774/SP, em que se discutia o pagamento da quantia de dois milhões de reais de verbas honorárias, a Terceira Turma decidiu que a proteção focada pela Lei n. 11.101/2005 se destina a garantir o pagamento prévio dos credores trabalhistas e equiparados e nisso reside o privilégio legal de uma quantia suficiente e razoável que lhe garanta a subsistência, um mínimo para o seu sustento. Em relação àquilo que excede esse montante, mormente nos créditos trabalhistas por equiparação, ainda que se revista da natureza alimentar, seu titular – na maioria das vezes, os escritórios de advocacia – não faz jus ao tratamento privilegiado de receber com precedência aos demais credores.
Consequentemente, o excesso decotado, respeitado o limite previsto no art. 83, I, da Lei n. 11.101/2005, será convertido em crédito quirografário e, assim, aguardará o seu momento apropriado de pagamento. Cumpre destacar que, especificamente sobre a possibilidade de limitação quantitativa do crédito trabalhista e a conversão do excedente em crédito quirografário, não somente a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acolheu, de forma uníssona, esse entendimento, mas também, a sua constitucionalidade, foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3.934/DF, restando asseverado pelo STF, naquela oportunidade, que “igualmente não existe ofensa à Constituição no tocante ao limite de conversão de créditos trabalhistas em quirografários”.
Assim, em se tratando de verbas honorárias de quantia elevada (crédito trabalhista por equiparação), o Superior Tribunal de Justiça tem admitido, em julgados de ambas as Turmas de Direito Privado, a estipulação da forma diferenciada de seu pagamento pela deliberação consensual da Assembleia Geral de Credores.
LegislaçãoArt. 83, I, da Lei n. 11.101/2005.
Precedentes Qualificados ADI 3934, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 27/05/2009, DJe de 06/11/2009.
Saiba mais:
REsp 1.383.914-RS, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 16/03/2021, DJe 08/06/2021.
DIREITO FALIMENTAR
Massa falida. Litigância de má-fé. Condenação. Natureza. Encargos da massa. Preferenciais. Habilitação. Desnecessidade. Ressalvas legais.
Os encargos da massa são preferenciais e não dependem de habilitação para serem satisfeitos, observadas as ressalvas legais do art. 124 do Decreto-Lei n. 7.661/1945.
A controvérsia reside na qualidade que se deve atribuir à pena imposta em ação de embargos de terceiro, na qual se imputou à massa falida a pecha de litigante de má-fé.
Segundo o disposto no art. 35 da lei processual revogada, a sanção deve ser computada como custas processuais, traduzindo “encargo da massa”, na forma prevista pelo art. 124, § 1º, do Decreto-Lei n. 7.661/1945.
Contudo, a Corte local, sem afastar a natureza da pena imposta, concluiu que as custas qualificadas como encargos da massa são aquelas estritamente relacionadas ao processo de falência e não, em outros feitos.
Convém assinalar que os embargos de terceiro nos quais imposta a pena por litigância de má-fé foram opostos de forma incidental ao processo de falência, contra ato praticado pelo síndico da massa, que arrecadou bem imóvel indevidamente.
No ponto, o STJ tem precedente no sentido de que “[a] lei falimentar estabeleceu como encargos da massa falida as custas judiciais do processo da falência, dos seus incidentes e das ações em que a massa for vencida, as quais compreendem taxas judiciárias, emolumentos, verbas dos peritos, publicações, entre outras” (REsp 1.070.149/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/12/2011, DJe 01/02/2012).
Vale lembrar que no processo falimentar há dois grupos de credores: os credores da falência propriamente dita e os credores da massa, que “são aqueles que têm créditos sobre a massa depois de a falência ter sido decretada. Esses credores, por não precisarem se habilitar, não estão sujeitos à verificação de créditos”.
Assim, respeitadas as ressalvas legais do próprio art. 124 do Decreto-Lei n. 7.661/1945 (créditos trabalhistas e créditos com garantia real), não há se falar em habilitação, já que, por expressa disposição legal, os encargos da massa são preferenciais com relação aos demais créditos da própria falência.
Doutrina(1) “se a massa falida for condenada em ação judicial, por ela ou contra ela promovida, isto é, em que for vencida, são exigíveis como encargos da massa” (Rubens Requião in Curso de Direito Falimentar, 1º Volume, Editora Saraiva, 17ª edição, p. 150). (2) “em qualquer ação proposta pela massa ou contra ela proposta, se ela for vencida e, por isso, condenada a pagar custas, estes constituem encargos” (José da Silva Pacheco in Processo de Falência de Concordata, Comentários à Lei de Falências, Doutrina – Prática – Jurisprudência, Editora Forense, 13ª edição, p. 542). (3) os credores da falência propriamente dita e os credores da massa, que “são aqueles que têm créditos sobre a massa depois de a falência ter sido decretada. Esses credores, por não precisarem se habilitar, não estão sujeitos à verificação de créditos” (cf. Luiz Tzirulnik, Direito Falimentar, Editora RT, 5ª edição, pp. 218/219). (4) Consideram-se credores da massa (objetiva) aqueles cujos títulos de crédito tiveram origem em atos e fatos ocorridos após a declaração da falência, ao contrário de credores da falência que são aqueles cujos títulos se originaram de atos, negócios e fatos pertinentes às atividades negociais do falido. Nas palavras de Gabriel de Rezende, p. 133, “em conseqüência da sentença declaratória da falência, os credores, formando uma coletividade jurídica, que os escritores denominam massa, assumem a administração do patrimônio do devedor, administração que é exercida pelos síndicos. Para o desempenho dessa representação, certas medidas, que acarretam despesas, sacrifícios de ordem pecuniária. Daí o aparecimento de dívidas novas, as quais, não tendo sido contraídas pelo falido, ficam estranhas ao processo da sua falência. Os respectivos credores, pois, não são credores do falido, mas sim da massa. Conseguintemente, não estão sujeitos à verificação; e, devendo ser pagos precipuamente, não ficam sujeiros à lei do dividendo”. Df. Ferrara, p. 529; Carvalho de Mendonça, VIII, pp. 249 e ss.; Rubens Requião, I, pp. 326 e ss.; Sampaio de Lacerda, pp. 142 e ss.; Valverde, II, pp. 269 e ss. Entretanto, os encargos e dívidas da massa só serão pagos após satisfeitos os créditos trabalhistas, por salários e indenizações (art. 102), notando-se que os créditos tributários e não tributários da Fazenda Pública não estão sujeitos à habilitação em falência, podendo ser cobrados separadamente (Lei n. 6.830/80, art. 29). Os encargos são pagos de preferência sobre as dívidas da massa; em cada classe, efetua-se o rateio e as sobras irão para o pagamento da classe seguinte. Encargos da massa são os inerentes ao processo de falência, custas e despesas processuais, com a administração da massa (objetiva), sua arrecadação e conservação, liquidação e distribuição do produto pelos credores, comissão do síndico, despesas com moléstia e enterro do falido (se morrer em indigência no curso do processo), impostos e contribuições a cargo da massa e exigíveis durante o processo, bem como indenizações por acidentes ocorridos no período de continuação do negócio do falido. (…) Esses encargos caracterizam-se mesmo que não se considere a massa falida como um ente jurídico dotado de personalidade jurídica ou patrimônio de afetação (Zweckvermogem), ao contrário do que sustentava Bonelli (I, pp. 467 e ss.; II, pp. 620 e ss.). As dívidas da massa são obrigações decorrentes de atos praticados pelo síndico, as obrigações provenientes de enriquecimento indébito da massa, além das custas pagas pelo credor requerente da falência. No dizer de Sampaio de Lacerda (p. 209), os encargos da massa são obrigações originárias das relações internas da massa falida, do andamento do processo e seus incidentes, ao passo que as dívidas da massa são obrigações que surgiram das relações dos órgãos da massa com terceiros com o mundo exterior. (Wilson de Souza Campos Batalha e Sílvia Marina L. Batalha de Rodrigues Netto in Falências e Concordatas, Editora LTR, 3ª edição, p. 676/678).
Legislaçãoart. 124 do Decreto-Lei n. 7.661/1945; art. 35 do CPC/1973.
Saiba mais:
REsp 1.910.317-PE, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 02/03/2021, DJe 11/03/2021.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Resultado unânime do acórdão de apelação. Embargos de declaração. Aptidão para alteração do resultado. Técnica de julgamento ampliado. Aplicabilidade.
Deve ser aplicada a técnica de julgamento ampliado nos embargos de declaração toda vez que o voto divergente possua aptidão para alterar o resultado unânime do acórdão de apelação.
A controvérsia principal diz respeito à possibilidade de aplicação da técnica de julgamento ampliado nos embargos de declaração, tendo em vista ter o voto divergente concedido efeito infringente aos embargos para reformar o decidido unanimemente no recurso de apelação.
Segundo depreende-se do disposto no art. 942 do CPC/2015: Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores.
Portanto, diversamente dos embargos infringentes, previsto no art. 530 do CPC/1973 – recurso cabível quando acórdão não unânime julgar a apelação e reformar a sentença de mérito -, na técnica de julgamento ampliado não há necessidade de alteração do resultado da decisão de primeira instância, mas apenas que haja divergência no julgamento do recurso de apelação.
Assim, o requisito de modificação da sentença pelo Tribunal ficou previsto apenas para as hipóteses de ação rescisória e agravo de instrumento (art. 942, § 3º, I e II, do CPC/2015).
Ademais, apesar de o art. 942 do CPC/2015 não mencionar a possibilidade de a divergência ocorrer apenas em sede de embargos de declaração, deve ser considerado seu efeito integrativo, de modo que há a complementação e incorporação dos fundamentos e do resultado no acórdão embargado.
Em tal contexto, quando há aptidão dos embargos de declaração para influenciar o julgamento que os precedeu, modificando-lhes a conclusão unânime, devem ser convocados outros julgadores, na forma do art. 942 do CPC/2015.
LegislaçãoArt. 942, § 3º, I e II, do CPC/2015 e art. 530 do CPC/1973.
REsp 1.543.826-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 05/08/2021, DJe 25/08/2021.
DIREITO REGISTRAL, DIREITO EMPRESARIAL, DIREITO MARCÁRIO
Propriedade industrial. Patente de fármacos. Art. 229-C da Lei n. 9.279/1996. Anuência prévia da ANVISA. Manifestação quanto ao eventual risco à saúde pública e aos requisitos de patenteabilidade. Necessidade.
Em se tratando de pedido de patente de fármacos, compete à Anvisa analisar – previamente à análise do INPI – quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos – ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) – que lhe permitam inferir se a outorga de direito de exclusividade (de produção, uso, comercialização, importação ou licenciamento) poderá ensejar situação atentatória à saúde pública.
A controvérsia diz respeito aos “limites da análise” a ser efetuada pela agência reguladora para fins da anuência prévia imposta pelo artigo 229-C da Lei de Propriedade Industrial, ou seja: deve ficar adstrita a certificar se os produtos ou os processos farmacêuticos – objetos do pedido de patente – apresentam ou não potencial risco à saúde ou lhe é permitido adentrar os requisitos de patenteabilidade – novidade, atividade inventiva e aplicação industrial -, cuja análise técnica, em linha de princípio, compete ao INPI.
Nos termos do artigo 6º da Lei da Anvisa, sua finalidade institucional consiste em promover a proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados, bem como o controle de portos, aeroportos e de fronteiras.
Entre outras competências previstas no artigo 7º da lei, destaca-se a voltada à correção de falhas de mercado do setor de fármacos, mediante o monitoramento da evolução dos preços de medicamentos, podendo a agência reguladora, para tanto, requisitar informações, proceder ao exame de estoques ou convocar os responsáveis para explicarem conduta indicativa de infração à ordem econômica, tais como a imposição de preços excessivos ou aumentos injustificados (inciso XXV).
O relevante papel desempenhado pela Anvisa na esfera da regulação econômico-social do setor extrai-se, ainda, do fato de exercer a Secretaria-Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão interministerial criado pela Lei n. 10.742/2003 – integrado pelos Ministros da Saúde, da Casa Civil, da Fazenda, da Justiça e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior – e que tem por objetivos a adoção, a implementação e a coordenação de atividades destinadas a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta dos produtos e a competitividade entre os fornecedores.
Assim, conquanto não se possa descurar das atribuições legais do INPI – principalmente a execução, no âmbito nacional, de normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica -, em relação às patentes de fármacos, não há falar em invasão institucional por parte da Anvisa, quando a recusa da anuência prévia estiver fundamentada em qualquer critério demonstrativo do impacto prejudicial da concessão do privilégio às políticas de saúde pública, que abrangem a garantia de acesso universal à assistência farmacêutica integral.
Isso porque a diferença das perspectivas de análise das referidas autarquias federais sobre o pedido de outorga de patente farmacêutica afasta qualquer conflito de atribuições.
Com efeito, é certo que o INPI, vinculado atualmente ao Ministério da Economia, tem por objetivo garantir a proteção eficiente da propriedade industrial e, nesse mister, parte de critérios fundamentalmente técnicos, amparados em toda a sua expertise na área, para avaliar os pedidos de patente, cujo ato de concessão consubstancia ato administrativo de discricionariedade vinculada aos parâmetros abstratos e tecnológicos constantes da lei de regência e de seus normativos internos.
Por outro lado, a Anvisa, detentora de conhecimento especializado no setor de saúde, no exercício do “ato de anuência prévia”, deve adentrar quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos – ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) – que lhe permitam inferir se a outorga do direito de exclusividade representará potencial prejuízo às políticas públicas do SUS voltadas a garantir a assistência farmacêutica à população.
A atuação da agência reguladora, no caso, traduz, marcadamente, uma função redistributiva, na qual se procura conciliar o interesse privado – direito de exclusividade da exploração lucrativa da invenção – com as metas e os objetivos de interesses públicos encartados nas políticas de saúde.
A tese ora proposta, portanto, decorre da interpretação sistemática das normas contidas no inciso I do artigo 18 da Lei de Propriedade industrial – proibição de outorga de patentes a invenções contrárias à saúde pública – e nas Leis n. 9.782/1999 e 10.742/2003, que delineiam as funções institucionais e as competências expressamente atribuídas à Anvisa no sentido de resguardar a viabilidade das políticas de saúde consideradas “de relevância pública” pela Constituição de 1988.
Nessa perspectiva, a estipulação da “anuência prévia” da autarquia especial, como condição para a concessão da patente farmacêutica, tem por base o seu papel de regulação econômico-social – ou socioeconômica – do setor de medicamentos, que se justifica pelos mandamentos extraídos da Carta Magna, no sentido da necessária harmonização do direito à propriedade industrial com os princípios da função social, da livre concorrência e da defesa do consumidor, assim como o interesse social encartado no dever do Estado de, observada a cláusula de reserva do possível, conferir concretude ao direito social fundamental à saúde (artigos 5º, incisos XXIII, XXIX, 6º, 170, incisos III, IV e V, e 196).
Em acréscimo, ressalta-se que, à luz da norma legal analisada (artigo 229-C da Lei n. 9.279/1996), a exigência de anuência prévia da Anvisa constitui pressuposto de validade da concessão de patente de produto ou processo farmacêutico – o que, por óbvio, decorre da extrema relevância dos medicamentos para a garantia do acesso universal à assistência integral à saúde -, não podendo, assim, o parecer negativo, em casos nos quais demonstrada a contrariedade às políticas de saúde pública, ser adotado apenas como subsídio à tomada de decisão do INPI. O caráter vinculativo da recusa de anuência é, portanto, indubitável.
Nada obstante, eventual divergência entre as autarquias sobre os fundamentos exarados no parecer desfavorável à pretensão patentária, deve ser dirimida sob uma ótica dialética e cooperativa – recomendável no âmbito da Administração Pública -, em que busquem equacionar “o propósito de estímulo da atividade inventiva conducente ao desenvolvimento tecnológico e econômico do País” e “o interesse social de concretização do direito fundamental à saúde objeto das políticas públicas do SUS”.
Doutrina(1) O aspecto patrimonial do direito de propriedade industrial, ressoa inequívoco que o seu exercício encontra-se subordinado ao atendimento da função social e à diretriz de compatibilização do objetivo de estímulo ao desenvolvimento tecnológico e econômico nacional com o interesse social, que, no dizer de Rodolfo de Camargo Mancuso, “reflete o que a sociedade entende por ‘bem comum’; o anseio de proteção à res publica; a tutela daqueles valores e bens mais elevados, os quais essa sociedade, espontaneamente, escolheu como sendo os mais relevantes” (MANCUSO, Rodolfo Camargo. Interesses difusos [livro eletrônico]: conceito e legitimação para agir. 2. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, Item 1.4).
LegislaçãoArt. 3º da CF/1988 art. 5º, XXIII e XXIX da CF/1988 art. 6º da CF/1988 art. 170, III, IV e V da CF/1988 art. 196 da CF/1988 art. 197 da CF/1988 art. 198 da CF/1988 art. 200, II da CF/1988 art. 7º, IX da Lei n. 9.279/1996 art. 8º da Lei n. 9.279/1996 art. 18 da Lei n. 9.279/1996 art. 229-C da Lei n. 9.279/1996 art. 230, § 3º da Lei n. 9.279/1996 art. 9º da Lei n. 5.772/1971 artigos 16 a 24-B da Lei n. 6.360/1976 art. 6º da Lei n. 8.080/1990 art. 7º da Lei n. 8.080/1990 art. 19-M da Lei n. 8.080/1990 art. 25 da Lei n. 13.848/2019 art. 31 da Lei n. 13.848/2019 Lei n. 12.529/2011 art. 20 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) art. 27.2 do Acordo TRIPS
Saiba mais:
REsp 1.890.615-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 17/08/2021, DJe 19/08/2021.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Honorários advocatícios. Direito do advogado. Natureza alimentar. Crédito privilegiado. Preferência em relação aos crédito titularizado pelo cliente. Concurso singular de credores. Inexistência.
O crédito decorrente de honorários advocatícios sucumbenciais de titularidade do advogado não é capaz de estabelecer relação de preferência ou de exclusão em relação ao crédito principal de titularidade do seu cliente.
Os honorários advocatícios sucumbenciais constituem direito do advogado, possuem natureza alimentar e são considerados créditos privilegiados, equiparados aos créditos oriundos da legislação trabalhista para efeito de habilitação em falência, concordata, concurso de credores, insolvência civil e liquidação extrajudicial.
A despeito disso, é de particular relevância e especificidade a questão relacionada à possibilidade de o crédito decorrente dos honorários advocatícios sucumbenciais preferir o crédito titularizado pela parte vencedora e que foi representada, no processo, ainda que por determinado período, pela sociedade de advogados credora.
Não há concurso singular de credores entre o advogado titular da verba honorária sucumbencial e o seu cliente titular da condenação principal, uma vez que é elemento essencial do concurso a ausência de relação jurídica material entre os credores, exigindo-se, ao revés, que haja independência e autonomia entre as execuções até o momento em que um deles obtenha valor hábil a satisfazê-la, no todo ou em parte, quando os demais credores poderão ingressar no processo alheio e estabelecer concorrência com aquele que havia obtido êxito na perseguição do patrimônio do devedor.
De outro lado, não pode o advogado, que atuou na defesa dos interesses da parte vencedora, preferir ao crédito principal por ela obtido porque a relação de acessoriedade entre os honorários sucumbenciais e a condenação principal a ser recebida pela parte é determinante para que se reconheça que os honorários sucumbenciais, nessa específica hipótese em que há concorrência com a condenação principal, deverão, em verdade, seguir a sorte e a natureza do crédito titularizado pela parte vencedora.
Em suma, o crédito decorrente de honorários advocatícios sucumbenciais titularizado pelo advogado não é capaz de estabelecer relação de preferência ou de exclusão em relação ao crédito principal titularizado por seu cliente porque, segundo a máxima chiovendiana, o processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito, tudo aquilo e exatamente aquilo que tem direito de conseguir, de modo que a parte, titular do direito material, não pode deixar de obter a satisfação de seu crédito em razão de crédito constituído por acessoriedade ao principal e titularizado por quem apenas a representou em juízo no processo em que reconhecido o direito.
REsp 1.958.679-GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, por unanimidade, julgado em 23/11/2021, DJe 25/11/2021.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Astreintes. Execução provisória antes da sentença de mérito. Possibilidade. Art. 537, § 3º, do CPC/2015.
À luz do novo Código de Processo Civil, não se aplica a tese firmada no julgamento do REsp 1.200.856/RS, porquanto o novo Diploma inovou na matéria, permitindo a execução provisória da multa cominatória mesmo antes da prolação de sentença de mérito.
As astreintes têm por escopo garantir a efetivação da tutela específica da obrigação ou o resultado prático equivalente. Por meio de sua imposição almeja-se induzir as partes a cumprir determinações judiciais que lhes foram impostas (em tutela provisória ou não), em prestígio ao princípio da efetividade dos provimentos jurisdicionais no contexto do moderno processo civil de resultados, motivo pelo qual possuem natureza patrimonial e função inibitória ou coercitiva.
Nesse contexto, importa consignar que, no julgamento do REsp 1.200.856/RS, de relatoria do Ministro Sidnei Beneti, submetido ao rito dos recursos repetitivos, a Corte Especial fixou o entendimento de que a multa diária, “devida desde o dia em que configurado o descumprimento, quando fixada em antecipação de tutela, somente poderá ser objeto de execução provisória após a sua confirmação pela sentença de mérito e desde que o recurso eventualmente interposto não seja recebido com efeito suspensivo.”
Examinando a ratio decidendi do referido precedente, observa-se que a tese se encontra alicerçada, sobretudo, em dois fundamentos principais, a saber: a) busca-se evitar que a parte se beneficie de importância em dinheiro que deverá, posteriormente, em caso de derrota, ser devolvida, o que promoveria insegurança jurídica; e b) o termo “sentença” previsto no art. 475-N, I e no art. 475-O, do CPC/1973, deve ser interpretado restritivamente, evitando-se a possibilidade de cobrança de multa fixada por meio de decisão interlocutória em antecipação de tutela, notadamente porque, na sentença, a ratificação do arbitramento da multa cominatória decorre do reconhecimento da existência do próprio direito material perseguido.
Infere-se, desse modo, que o mencionado precedente qualificado não veda, absolutamente, a execução provisória da multa cominatória, limitando-a, no entanto, a momento posterior à prolação de sentença de mérito favorável à parte e desde que o recurso eventualmente interposto não seja recebido com efeito suspensivo.
Verifica-se, assim, que o deslinde da controvérsia, a rigor, demanda que se defina se a execução provisória das astreintes deve aguardar a prolação de sentença de mérito ou se, ao revés, seria possível ocorrer em momento anterior, tão logo ocorra sua incidência.
De início, deve-se ressaltar que a tese fixada no julgamento do REsp 1.200.856/RS, o foi à luz das disposições do Código de Processo Civil de 1973, que não continha dispositivo semelhante ao § 3º do art. 537 do Código de Processo Civil de 2015.
Da simples leitura do dispositivo em comento, exsurge a conclusão de que o novo Diploma Processual inovou na matéria, autorizando, expressamente, a execução provisória da decisão que fixa as astreintes, condicionando, tão somente, o levantamento do valor ao trânsito em julgado da sentença favorável à parte.
Ademais, importa destacar que não mais subsiste, no novo Código de Processo Civil, a redação que constava do art. 475-N, I, do CPC/1973, que serviu de fundamento para o acórdão proferido no julgamento do REsp 1.200.856/RS.
De fato, o atual art. 515, I, considera título executivo judicial “as decisões proferidas no processo civil que reconheçam a exigibilidade de obrigação de pagar quantia, de fazer, de não fazer ou de entregar coisa”, tendo sido substituída, portanto, a palavra “sentença” por “decisões”.
A mencionada alteração redacional harmoniza-se com o disposto no § 3º do art. 537 do CPC/2015, que autoriza a execução provisória da decisão que fixa a multa cominatória, sendo certo que, na linha das boas regras de hermenêutica, não se pode olvidar que “verba cum effectu, sunt accipienda” (não se presumem, na lei, palavras inúteis).
A inovação legislativa em mote, portanto, amolda-se, à perfeição, à própria finalidade do instituto, na medida em que, ao permitir a execução provisória da decisão que fixa a multa mesmo antes da sentença de mérito, acentua o seu caráter coercitivo e inibitório, tornando ainda mais oneroso ou arriscado o descumprimento de determinações judiciais.