Decretação de medida cautelar mais grave que a requerida pelo MP não caracteriza atuação de ofício

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que a opção judicial por medida cautelar mais grave do que aquela requerida pelo Ministério Público (MP), pela autoridade policial ou pelo ofendido não pode ser considerada atuação de ofício do magistrado.

A decisão veio na análise de recurso interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO), em que o réu – acusado dos crimes de lesão corporal e ameaça no contexto de violência doméstica e familiar – alegou ter sido a sua prisão preventiva decretada de ofício, em afronta ao que determina a Lei 13.964/2019 (Pacote Anticrime).

Segundo os autos, durante a audiência de custódia, o MP defendeu a aplicação de medidas cautelares diversas da prisão, incluindo o monitoramento eletrônico. Entretanto, o magistrado decretou a prisão preventiva, fundamentada na garantia da ordem pública, por entender preenchidos os requisitos dos artigos 312 e 313, III, do Código de Processo Penal (CPP).

Na decisão recorrida, o TJRO consignou que, embora a Lei 13.964/2019 tenha estabelecido (ao modificar o artigo 282, parágrafo 2º,  do CPP) que a prisão preventiva depende de requerimento do MP, do querelante, do assistente de acusação ou de representação do delegado de polícia, não houve alteração legislativa em relação às medidas desse tipo decorrentes de violência doméstica – as quais poderiam ser decretadas de ofício pelo juiz, conforme o artigo 20 da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha).

Livre convencimento motivado do juiz

Relator do processo no STJ, o ministro Rogerio Schietti Cruz ponderou que, diferentemente do entendimento do tribunal de origem, o princípio da especialidade não autoriza a atuação judicial de ofício, mesmo em se tratando de crime de violência doméstica e familiar contra a mulher. Por esse princípio, o dispositivo da Lei Maria da Penha (lei especial) se sobreporia ao CPP (lei geral).

“Não obstante o artigo 20 da Lei 11.340/2006 ainda autorize a decretação da prisão preventiva de ofício pelo juiz de direito, tal disposição destoa do atual regime jurídico. A atuação do juiz de ofício é vedada, independentemente do delito praticado ou de sua gravidade”, afirmou.

Entretanto, ele destacou que, no caso analisado, o que ocorreu não foi uma decisão de ofício, visto que houve requerimento do MP, durante a audiência de custódia, para que fossem fixadas cautelares diversas da prisão preventiva, mas o juiz optou pela cautelar máxima, por entender que apenas as medidas alternativas seriam insuficientes para a garantia da ordem pública.

“Uma vez provocado pelo órgão ministerial a determinar uma medida que restrinja a liberdade do acusado em alguma medida, deve o juiz poder agir de acordo com o seu convencimento motivado e analisar qual medida cautelar pessoal melhor se adequa ao caso”, disse o ministro.

Não vinculação do juiz ao pedido formulado pelo MP

Schietti apontou o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no HC 203.208, segundo o qual, embora o juiz não possa decretar a prisão de ofício, ele não está vinculado ao pedido formulado pelo MP.

“Impor ou não cautelas pessoais, de fato, depende de prévia e indispensável provocação; contudo, a escolha de qual delas melhor se ajusta ao caso concreto há de ser feita pelo juiz da causa. Entender de forma diversa seria vincular a decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo Ministério Público, de modo a transformar o julgador em mero chancelador de suas manifestações, ou de lhe transferir a escolha do teor de uma decisão judicial”, explicou o relator.

De acordo com o ministro, a decisão do juiz pela cautelar mais grave teve “motivação suficiente e concreta a justificar a segregação preventiva, sobretudo diante do modus operandi da conduta e da periculosidade do agente, que ameaçou de morte e agrediu sua filha menor de 11 anos de idade e sua companheira – grávida de dez semanas à época dos fatos –, de modo a causar-lhe lesões que acarretaram sua internação”.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO EM HABEAS CORPUS. PRISÃO EM FLAGRANTE. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER. MINISTÉRIO PÚBLICO PUGNA PELA CONVERSÃO DO FLAGRANTE EM CAUTELARES DIVERSAS. MAGISTRADO DETERMINOU CAUTELAR MÁXIMA. PRISÃO PREVENTIVA DE OFÍCIO. NÃO OCORRÊNCIA. PRÉVIA E ANTERIOR PROVOCAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. PRISÃO PREVENTIVA FUNDAMENTADA. PERICULOSIDADE DO AGENTE. REITERAÇÃO EM DELITOS DE VIOLÊNCIA NO ÂMBITO DOMÉSTICO. AGRESSÕES CONTRA FILHA MENOR DE IDADE E COMPANHEIRA GRÁVIDA. MANUTENÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA.
1. Infere-se dos autos que o MP requereu, durante a audiência de custódia, a conversão da prisão em flagrante em cautelares diversas, no entanto, o Magistrado decretou a cautelar máxima.
2. Diversamente do alegado pelo Tribunal de origem, não se justificaria uma atuação ex officio do Magistrado por se tratar de crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, com fundamento no princípio da especialidade. Não obstante o art. 20 da Lei n. 11.340/2006 ainda autorize a decretação da prisão preventiva de ofício pelo Juiz de direito, tal disposição destoa do atual regime jurídico. A atuação do juiz de ofício é vedada independentemente do delito praticado ou de sua gravidade, ainda que seja de natureza hedionda, e deve repercutir no âmbito da violência doméstica e familiar.
3. A decisão que decretou a prisão preventiva do paciente foi precedida da necessária e prévia provocação do Ministério Público, formalmente dirigida ao Poder Judiciário. No entanto, este decidiu pela cautelar pessoal máxima, por entender que apenas medidas alternativas seriam insuficientes para garantia da ordem pública.
4. A determinação do Magistrado, em sentido diverso do requerido pelo Ministério Público, pela autoridade policial ou pelo ofendido, não pode ser considerada como atuação ex officio, uma vez que lhe é permitido atuar conforme os ditames legais, desde que previamente provocado, no exercício de sua jurisdição.
5. Impor ou não cautelas pessoais, de fato, depende de prévia e indispensável provocação; contudo, a escolha de qual delas melhor se ajusta ao caso concreto há de ser feita pelo juiz da causa.
Entender de forma diversa seria vincular a decisão do Poder Judiciário ao pedido formulado pelo Ministério Público, de modo a transformar o julgador em mero chancelador de suas manifestações, ou de lhe transferir a escolha do teor de uma decisão judicial.
6. Em situação que, mutatis mutandis, implica similar raciocínio, decidiu o STF que “Agravo regimental no habeas corpus. 2. Agravo que não impugna todos os fundamentos da decisão agravada. Princípio da dialeticidade violado. 3. Prisão preventiva decretada a pedido do Ministério Público, que, posteriormente requer a sua revogação.
Alegação de que o magistrado está obrigado a revogar a prisão a pedido do Ministério Público. 4. Muito embora o juiz não possa decretar a prisão de ofício, o julgador não está vinculado a pedido formulado pelo Ministério Público. 5. Após decretar a prisão a pedido do Ministério Público, o magistrado não é obrigado a revogá-la, quando novamente requerido pelo Parquet. 6. Agravo improvido (HC n. 203.208 AgR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 30/8/2021).
7. Na dicção da melhor doutrina, “o direito penal serve simultaneamente para limitar o poder de intervenção do Estado e para combater o crime. Protege, portanto, o indivíduo de uma repressão desmesurada do Estado, mas protege igualmente a sociedade e os seus membros dos abusos do indivíduo” (Claus ROXIN. Problemas fundamentais de direito penal. 2ª ed. Lisboa: Vega, 1993, p. 76), visto que, em um Estado de Direito, “la regulación de esa situación de conflito no es determinada a través de la antítesis Estado-ciudadano; el Estado mismo está obligado por ambos fines – aseguramiento del orden a través de la persecución penal y protección de la esfera de libertad del ciudadano” (Claus ROXIN.
Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores dei Puerto, 2000, p. 258).
8. Há motivação suficiente e concreta a justificar a segregação preventiva, sobretudo diante do modus operandi da conduta e da periculosidade do agente, que ameaçou de morte e agrediu sua filha menor de 11 anos de idade e sua companheira – grávida de 10 semanas à época dos fatos -, de modo a causar-lhe lesões que acarretaram sua internação.
9. Por iguais fundamentos, as medidas cautelares alternativas à prisão não se mostram adequadas e suficientes para evitar a prática de novas infrações penais.
10. “Não cabe a esta Corte proceder com juízo intuitivo e de probabilidade para aferir eventual pena a ser aplicada, tampouco para concluir pela possibilidade de fixação de regime diverso do fechado e de substituição da reprimenda corporal, tarefas essas próprias do Juízo de primeiro grau por ocasião do julgamento de mérito da ação penal” (HC n. 438.765/RJ, Rel. Ministro Antonio Saldanha Palheiro, 6ª T., DJe 1/6/2018).
11. Recurso não provido.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): RHC 145225

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