Foi decidido pela 2ª Seção do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que um automóvel apreendido na Operação Sindicus, da Polícia Federal somente pode ser restituído ao comprador de boa-fé (que o adquiriu antes da decisão judicial que ordenou o sequestro do carro) se ele apresentar o Certificado de Registro e Licenciamento do Veículo (CRLV) – popularmente conhecido como o “documento do carro”. A decisão confirmou sentença do Juízo Federal da 4ª Vara Federal do Amapá.
O comprador recorreu alegando que não poderia ser prejudicado pelas restrições ao uso e à disposição do automóvel porque ele não é sequer investigado na operação. Para comprovar a propriedade do carro, o adquirente juntou uma procuração pública lavrada um ano antes da restrição em que consta o valor de compra. Sustentou que o veículo tinha muitas dívidas, que estão sendo pagas por ele, motivo pelo qual não pôde emitir o Documento Único de Transferência (DUT).
Ao analisar o processo, o relator, desembargador federal Wilson Alves de Souza, verificou que os dois CRLVs juntados pelo apelante no mandado de segurança comprovam a propriedade em nome de outra pessoa, investigada na operação que resultou nas restrições sobre o carro. No caso, prosseguiu, a procuração não é um contrato de compra e venda, mas uma autorização ao apelante para resolução de pendências administrativas ou judiciais, com poderes inclusive para aliená-lo (vendê-lo ou doá-lo) em favor de si mesmo.
Somente o CLRV comprova a propriedade do automóvel, não bastando a simples entrega como ocorre com outros bens móveis, explicou o magistrado. Por isso, não tendo o apelante comprovado a propriedade do carro, o relator votou no sentido de manter a sentença e as restrições sobre o veículo.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL PENAL. MANDADO DE SEGURANÇA. RESTITUIÇÃO DE BEM APREENDIDO. TERCEIRO DE BOA-FÉ. VEÍCULO AUTOMOTOR. PROPRIEDADE DO BEM NÃO COMPROVADA.
1. Trata-se de mandado de segurança impetrado contra ato do Juízo Federal da 4ª Vara da Seção Judiciária do Amapá, que no bojo do processo nº 1008192-14.2021.4.01.3100, indeferiu o pedido de levantamento das constrições judiciais impostas ao veículo KIA Sorento EX2 3.5G27, Renavam 00366238558.
2. Alega, para tanto, que em virtude da operação SINDICUS teve sequestrado bem de sua propriedade, impondo restrições ao seu direito de uso e disposição do veículo, não obstante não ser sequer investigado em dita operação. Afirma que é terceiro de boa-fé que adquiriu o veículo em questão anteriormente à decisão judicial de sequestro, razão pela qual não pode ser prejudicado com decisões em processos que sequer é investigado.
3. A autoridade coatora apresentou informações registrando que não há documentos acostados aos autos que comprovem a alegada propriedade. Não há contrato de compra e venda, extrato bancário que comprove o depósito ou recebimento do valor correspondente, assinatura no DUT. A certidão apresentada pelo embargante foi emitida em 26/5/2021 pelo Cartório de Imóveis (id. 563098444 – Pág. 1) e descreve apenas que o réu JOÃO MARIANO DO NASCIMENTO outorgou uma procuração para o embargante WILCK BATISTA LEANDRO conferindo-lhe amplos e especiais poderes para tratar de assuntos e interesses do outorgante relacionados ao veículo em comento, tais como “juntar, apresentar e retirar documentos, inclusive carta de quitação , pagar e/ou parcelar taxas, impostos, custas, prestações, emolumentos, multas, IPVA e demais tributos fiscais e despesas que incidam ou venham a incidir sobre o veículo, recorrer de multas, requerer anistia de multas ocorridas em barreiras/fiscalizações eletrônicas”, etc. Não se trata, portanto, de contrato de compra e venda.
4.O MPF opinou pela redistribuição dos autos à Des. Maria do Carmo, relatora, neste Tribunal, dos processos que envolvem a operação SINDICUS. Arguiu, ainda, que o writ não merece ser conhecido porquanto impetrado contra decisão judicial da qual cabe recurso.
5. Da (in) existência de prevenção do outro relator. Não obstante o MPF tenha alegado que o presente mandado de segurança criminal se refere à Operação Sindicus cuja relatoria é da Des. Federal Maria do Carmo Cardoso, deixou de colacionar, o Parquet, qualquer processo ou recurso submetido à apreciação de dita Desembargadora, sendo certo que a jurisprudência assente das nossas Cortes Superiores repudia a ideia de existência de um juízo universal.
6. À mingua de prova de que outra relatoria já tenha apreciado a questão ora posta à exame, qual seja, direito de terceiro prejudicado em virtude de medidas cautelares impostas durante o IPL 092/2019-4-SR/PF/AP, não há que se acolher o parecer do MPF, no ponto.
7. Da (in) adequação da via eleita. O mandado de segurança foi impetrado com a finalidade de revogar decisão da autoridade coatora que indeferiu, em embargos de terceiro, pedido de restituição (liberação de constrições) de veículo gravado em virtude de medida cautelar deferida durante a Operação SINDICUS.
8. A teor do disposto no art. 5º, II, da Lei 12.016/2009, não se concederá mandado de segurança quando se tratar de decisão judicial da qual caiba recurso com efeito suspensivo.
9. Esta Corte apenas tem admitido a impetração do mandado de segurança nas seguintes hipóteses excepcionais: (i) decisão judicial manifestamente ilegal ou teratológica; (ii) decisão contra a qual não caiba recurso; (iii) decisão contra a qual caiba recurso desprovido de efeito suspensivo; (iv) para a defesa de terceiro prejudicado, independentemente da interposição de recurso, com fundamento no Enunciado 202 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça (“A impetração da segurança por terceiro, contra ato judicial, não se condiciona à interposição de recurso”).
10. Uma vez que o Impetrante é terceiro estranho aos fatos apuados na Operação, admite-se o cabimento da ação mandamental.
11. Mérito. Os seguintes documentos foram colacionados pelo Impetrante, a fim de comprovar a propriedade do bem: CRLV do exercício de 2018, em nome de João Mariano do Nascimento, sem restrições; Procuração Pública outorgada por João Mariano do Nascimento à Wilck Batista Leandro para tratar de assuntos, direitos e interesses do outorgante relacionados com o veículo KIA Sorento EX2 3.5G27, Renavam 00366238558; CRLV do exercício de 2016, em nome de João Mariano do Nascimento, constando alienação fiduciária do Banco Santander S.A.; Comprovantes de pagamento de Wilck Batista em favor do Detran DF, DETRAN AP – multas de trânsito, SEFAZ AP IPVA (06.12.2021); Laudo de Exame de Corpo de Delito que atesta o acidente ocorrido com o veículo, em posse do Impetrante, em novembro de 2018.
12. Os dois CRLVs colacionados, em nome do investigado João Mariano do Nascimento, não podem servir de prova de propriedade do veículo por terceira pessoa. Os comprovantes de pagamento de multas e taxas ao Detran, feitos pelo Impetrante, no ano de 2021, também não ostentam a densidade probatória perquirida pelo Impetrante, a uma porque foram pagamentos efetuados após a constrição do bem, a duas porque não há indicação, nos comprovantes de pagamento, de que tais pagamentos se refiram ao bem ora em discussão.
13. A procuração pública juntada em nada se assemelha a um contrato de venda e compra, sendo apenas uma autorização do proprietário do veículo dada ao Impetrante, a fim de que o mesmo resolvesse pendências administrativas ou judiciais do bem, conferindo-lhe poderes, também, para aliená-lo, inclusive em favor do outorgado. Por fim, o Laudo de Embriaguez e as fotos do acidente juntadas se prestam somente a comprovar que o Impetrante detinha a posse do veículo naquele momento, sendo insuficiente, assim, para comprovar eventual propriedade de veículo automotor.
14. A propriedade do veículo automotor somente pode ser comprovada através do “Certificado de Registro do Veículo-CRV” ou, ainda, por meio de documento congênere expedido pelo DETRAN, não sendo suficiente para atestar essa propriedade qualquer dos documentos juntados pela parte impetrante.
15. Ao contrário dos demais bens móveis, a titularidade dos veículos automotores só se aperfeiçoa por meio do documento hábil emitido pelo órgão competente, ou seja, o CRLV, de acordo com o disposto no art. 123, e § 1º, da Lei 9.503/1997 (AC 2006.72.10.001471-6; Terceira Turma do TRF4 Região., DE 04.11.2009).
16. Segurança denegada.
Processo: 1010988-29.2022.4.01.0000