A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que se admite a penhora do bem de família para saldar o débito originado de contrato de empreitada global celebrado para a construção do próprio imóvel.
A discussão surgiu na cobrança de dívida originada de contrato firmado para a construção do imóvel de residência dos devedores. O tribunal de segunda instância autorizou a penhora, entendendo que o caso se enquadra na exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no artigo 3º, II, da Lei 8.009/1990 (dívida relacionada ao financiamento).
Os devedores alegaram que, sendo exceção à proteção legal da moradia, o dispositivo deveria ser interpretado restritivamente, alcançando apenas o titular do crédito decorrente do financiamento, ou seja, o agente financeiro. Isso excluiria o empreiteiro que fez a obra e ficou de receber diretamente do proprietário.
Proteção especial do bem de família não é absoluta
Relatora do processo no STJ, a ministra Nancy Andrighi lembrou que o bem de família recebe especial proteção do ordenamento jurídico. No entanto, ela observou que a impenhorabilidade não é absoluta, de forma que a própria lei estabeleceu diversas exceções a essa proteção – entre elas, a hipótese em que a ação é movida para cobrança de dívida decorrente de financiamento para construção ou compra de imóvel.
A magistrada destacou que as hipóteses de exceção, por restringirem a ampla proteção conferida ao imóvel familiar, devem ser interpretadas de forma restritiva, conforme entendimento já firmado pela Terceira e pela Quarta Turma do STJ.
“Não significa, todavia, que o julgador, no exercício de interpretação do texto, fica restrito à letra da lei. Ao interpretar a norma, incumbe ao intérprete identificar a mens legis, isto é, o que o legislador desejaria se estivesse vivenciando a situação analisada”, afirmou.
Legislador se preocupou em evitar deturpação do objetivo da Lei 8.009/1990
No caso analisado, a relatora ponderou que há a peculiaridade de ser a dívida relativa a contrato de empreitada global, segundo o qual o empreiteiro se obriga a construir a obra e a fornecer os materiais.
Nancy Andrighi salientou que o STJ já se manifestou no sentido de que a exceção do artigo 3º, II, da Lei 8.009/1990 se aplica à dívida oriunda do contrato de compra e venda do imóvel e à contraída para aquisição do terreno onde o devedor edificou, com recursos próprios, a casa que serve de residência da família.
Além disso, citou precedente em que a Quarta Turma, ao enfrentar questão semelhante (REsp 1.221.372), entendeu que a palavra “financiamento”, inserida no inciso II do artigo 3º da Lei 8.009/1990, não restringiu a impenhorabilidade às situações de compra ou construção com recursos de agentes financiadores.
“É nítida a preocupação do legislador no sentido de impedir a deturpação do benefício legal, vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar aquisição, melhoramento, uso, gozo e/ou disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, à custa de terceiros”, declarou a ministra.
“Portanto, a dívida relativa a contrato de empreitada global, porque viabiliza a construção do imóvel, está abrangida pela exceção prevista no artigo 3º, II, da Lei nº 8.009/1990”, concluiu.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. DÍVIDA DECORRENTE DE CONTRATO DE EMPREITADA GLOBAL. BEM DE FAMÍLIA. PENHORA. POSSIBILIDADE. ART. 3º, II, DA LEI 8.009⁄90. DESMEMBRAMENTO DO IMÓVEL. CERCEAMENTO DE DEFESA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. JULGAMENTO: CPC⁄2015.1. Recurso especial interposto em 24⁄03⁄2021 e concluso ao gabinete em 22⁄11⁄2021.2. O propósito recursal consiste em definir se a exceção à impenhorabilidade do bem de família prevista no art. 3º, II, da Lei 8.009⁄90 se aplica à dívida decorrente de contrato de empreitada global celebrado para viabilizar a edificação do imóvel.3. As regras que estabelecem hipóteses de impenhorabilidade não são absolutas. O próprio art. 3º da Lei nº 8.009⁄90 prevê uma série de exceções à impenhorabilidade, entre as quais está a hipótese em que a ação é movida para cobrança de crédito decorrente de financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato (inciso II).4. Da exegese comando do art. 3º, II, da Lei nº 8.009⁄90, fica evidente que a finalidade da norma foi coibir que o devedor se escude na impenhorabilidade do bem de família para obstar a cobrança de dívida contraída para aquisição, construção ou reforma do próprio imóvel, ou seja, de débito derivado de negócio jurídico envolvendo o próprio bem. Portanto, a dívida relativa a contrato de empreitada global, porque viabiliza a construção do imóvel, está abrangida pela exceção prevista no art. 3º, II, da Lei nº 8.009⁄90.5. A ausência de decisão acerca de dispositivo legal apontado como violado – na hipótese, o art. 269 do CPC⁄2015 – impede o conhecimento do recurso especial quanto ao ponto.6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, não provido, sem majoração de honorários
Leia o acórdão no REsp 1.976.743.