A norma coletiva que previu o regime de compensação também autorizou as horas extras
A Quarta Turma do Tribunal Superior do Trabalho afastou condenação aplicada ao Consórcio Santo Antônio Civil, de Porto Velho (RO), ao pagamento de horas extras a um encanador. Segundo o colegiado, o acordo coletivo previa tanto a compensação quanto o pagamento das horas extras, o que afasta a descaracterização do banco de horas.
Norma coletiva
Na reclamação trabalhista, o encanador disse que os acordos coletivos da categoria previam que a jornada semanal de 44 horas poderia ser cumprida de segunda a sexta-feira, mediante a compensação das horas normais de trabalho no sábado. Mas, segundo ele, essas disposições nunca tinham sido cumpridas, pois sua jornada era sempre superior a nove horas diárias, de segunda a sábado e em alguns domingos. Isso, a seu ver, descaracterizaria o regime de compensação e lhe daria direito ao pagamento de horas extras por todo o período contratual.
O pedido foi julgado procedente pelo juízo de primeiro grau e pelo Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região (RO/AC), que acolheram o argumento da descaracterização do banco de horas.
Banco de horas e horas extras
No exame do recurso de revista do consórcio, os ministros observaram que, no caso, as normas coletivas autorizam, expressamente, a prestação de serviço extraordinário, com previsão de adicional de 70% sobre o valor da hora normal. Também determinam que todo o serviço realizado aos sábados configura hora extra remunerada com o adicional de 80%.
Balança
Para o relator, ministro Ives Gandra Martins Filho, o acordo coletivo contemplou a principal reivindicação da categoria: o trabalho aos sábados e as horas extras semanais. “Desconsiderar o pactuado e onerar ainda mais a empresa que atendeu às reivindicações dos trabalhadores soaria a suma injustiça, desequilibrando os pratos da balança da justiça social, dando-se guarida a pleito que beira a má-fé”, afirmou.
O ministro considerou que o item IV da Súmula 85 do TST, segundo o qual a prestação de horas extras habituais descaracteriza o acordo de compensação de jornada, não se aplica ao caso, cujas peculiaridades o distinguem das hipóteses abrangidas pelo verbete. De acordo com o relator, os precedentes que embasaram a edição da súmula diziam respeito ao expresso descumprimento das condições ajustadas em norma coletiva quanto ao regime de compensação. “Não tratam dos casos em que há previsão quanto à possibilidade de trabalho extraordinário, ou seja, em que a norma coletiva foi estritamente observada”, concluiu.
O recurso ficou assim ementado:
A) AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA DO CONSÓRCIO SANTO ANTÔNIO CIVIL – RITO SUMARÍSSIMO.
I) PRESCRIÇÃO – AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE DESACERTO DO DESPACHO AGRAVADO – DESPROVIMENTO.
1. Em relação à prescrição, o despacho agravado considerou carente de transcendência o apelo patronal, quer pela matéria em debate, que não é nova (CLT, art. 896-A, § 1º, inciso IV) nem a decisão regional atentou contra direito social constitucionalmente assegurado (inciso III) ou jurisprudência sumulada do TST ou STF (inciso II), quer pelo valor da condenação (R$ 27.000,00), que não pode ser considerado elevado de modo a justificar, por si só, nova revisão do feito (inciso I). Ademais, a decisão agravada registrou que os óbices erigidos pelo juízo de admissibilidade a quo para trancar a revista (Orientação Jurisprudencial 359 da SBDI-1 e Súmula 333, ambas do TST) subsistem, a contaminar a transcendência da causa.
2. Nesses termos, não tendo o Agravante conseguido demonstrar a transcendência do feito e a viabilidade do recurso de revista, refutando devidamente os fundamentos do despacho agravado, este deve ser mantido, no aspecto.
Agravo desprovido, no tema.
II) REGIME DE COMPENSAÇÃO DE JORNADA – MÁ APLICAÇÃO DA SÚMULA 85, IV, DO TST E VIOLAÇÃO DO ART. 7º, XIII E XXVI, DA CF – PROVIMENTO.
1. Em relação à condenação decorrente da descaracterização do regime de compensação de jornada por ter havido prestação habitual de labor extraordinário, na decisão agravada, considerou-se carente de transcendência o apelo do Reclamado, uma vez que não atendidos os requisitos do art. 896-A, § 1º, da CLT, bem como em face dos óbices das Súmulas 85, IV, e 333 do TST e do art. 896, § 9º, da CLT, apontados no despacho de admissibilidade, que subsistiriam, a contaminar a transcendência da causa.
2. Entretanto, o Consórcio Reclamado traz à baila ponderações quanto à particularidade do caso concreto, concernente à autorização de labor extraordinário, sobretudo aos sábados, pelas normas coletivas instituidoras do regime compensatório, que afastam a aplicação dos termos do item IV da Súmula 85 do TST à hipótese e, por conseguinte, da Súmula 333 desta Corte Superior, demonstrando a violação dos incisos XIII e XXVI do art. 7º da CF, apontados no apelo patronal, além de conferirem transcendências jurídica e política à causa.
3. Desse modo, tendo o agravo do Reclamado logrado êxito em infirmar os óbices erigidos pela decisão agravada, seu provimento é medida que se impõe.
Agravo provido, no tópico.
B) AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA DO CONSÓRCIO SANTO ANTÔNIO CIVIL – RITO SUMARÍSSIMO – REGIME DE COMPENSAÇÃO DE JORNADA – AUTORIZAÇÃO PARA O LABOR EXTRAORDINÁRIO, SOBRETUDO AOS SÁBADOS, PREVISTA NA NORMA COLETIVA – MÁ APLICAÇÃO DA SÚMULA 85, IV, DO TST – VIOLAÇÃO DO ART. 7º, XIII e XXVI, DA CF – TRANSCENDÊNCIAS POLÍTICA E JURÍDICA DA CAUSA – PROVIMENTO.
1. O critério de transcendência corresponde a um filtro seletor de matérias que mereçam pronunciamento do TST para firmar teses jurídicas pacificadoras da jurisprudência trabalhista (transcendência jurídica) e para assegurar que tais teses sejam aplicadas pelos TRTs (transcendência política).
2. Desponta a transcendência política da questão relativa à condenação decorrente da descaracterização do regime de compensação de jornada em decorrência de prestação habitual de labor extraordinário, haja vista a decisão regional ter aplicado indevidamente os termos da Súmula 85, IV, do TST ao caso concreto, que possui particularidade, relativa à autorização de labor extraordinário, especialmente aos sábados, pelas normas coletivas instituidoras do regime compensatório, apta a afastar os termos do citado verbete sumulado ( distinguishing) .
3. Por outro lado, a discussão sobre a descaracterização do regime de compensação de jornada pela realização de labor extraordinário, a despeito de haver autorização em norma coletiva nesse sentido, é nova e de relevância jurídica para ser deslindada por esta Corte.
4. Desse modo, demonstrada as transcendências política e jurídica e diante de possível má aplicação da Súmula 85, IV, do TST e de violação do art. 7º, XIII e XXVI, da CF pelo Regional, dá-se provimento ao agravo de instrumento para determinar o processamento do recurso de revista.
Agravo de instrumento provido, no tema.
C) RECURSO DE REVISTA DO CONSÓRCIO SANTO ANTÔNIO CIVIL – RITO SUMARÍSSIMO – REGIME DE COMPENSAÇÃO DE JORNADA – AUTORIZAÇÃO PARA O LABOR EXTRAORDINÁRIO, SOBRETUDO AOS SÁBADOS, PREVISTA NA NORMA COLETIVA INSTITUIDORA DO REGIME COMPENSATÓRIO – PREVALÊNCIA DA NORMA COLETIVA – CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO DE HORAS EXTRAS INDEVIDA – MÁ APLICAÇÃO DA SÚMULA 85, IV, DO TST – VIOLAÇÃO DO ART. 7º, XIII E XXVI, DA CF – TRANSCENDÊNCIAS JURÍDICA E POLÍTICA DA CAUSA – PROVIMENTO.
1. Discute-se nos presentes autos a descaracterização do regime de compensação de jornada em decorrência de labor extraordinário na hipótese em que a norma instituidora do regime compensatório expressamente prevê a possibilidade de prestação de horas extras, especialmente aos sábados, bem como a aplicabilidade dos termos da Súmula 85, IV, do TST à hipótese em análise.
2. De plano, cumpre assinalar que a questão debatida não se enquadra no Tema 1.046 da Tabela de Repercussão Geral do STF, haja vista o berço constitucional do direito à negociação coletiva para compensação de jornada de trabalho (CF, art. 7º, XIII), sendo certo, ainda, que ambas as Instâncias Ordinárias reconheceram a validade das normas coletivas que embasam o pleito do Reclamante, cingindo-se a controvérsia unicamente à descaracterização do regime compensatório previsto na norma coletiva em razão do labor extraordinário e à subsunção do caso concreto ao disposto na Súmula 85, IV, do TST.
3. Com efeito, no caso dos autos, as normas coletivas disciplinadoras do regime de compensação de jornada de trabalho autorizam expressamente a prestação de labor extraordinário, sobretudo aos sábados, sendo que os instrumentos coletivos preveem, inclusive, o adicional de 70% sobre o valor da hora normal para as horas extraordinárias desempenhadas durante a semana e que todo o labor realizado aos sábados configura hora extra, remunerado com o adicional de 80% sobre o valor da hora normal.
4. A primeira parte da Súmula 85, IV, do TST estabelece que ” a prestação de horas extras habituais descaracteriza o acordo de compensação de jornada”. As súmulas, como síntese da jurisprudência pacificada dos Tribunais, devem ser interpretadas à luz dos precedentes que lhes deram respaldo, na medida em que apenas estampam o comando interpretativo da norma legal, mas não a ratio decidendi e as circunstâncias fáticas que deram origem à fixação da jurisprudência nesse ou naquele sentido. Nesse contexto, o item IV da Súmula 85 do TST também deve ser aplicado segundo as hipóteses fáticas e os fundamentos jurídicos que lhe deram origem.
5. Dos precedentes que embasaram a edição da Orientação Jurisprudencial 220 da SBDI-1 desta Corte, inserida em 20/06/01 e convertida no item IV da Súmula 85 do TST, por meio da Resolução 129/05, extraem-se que as hipóteses fáticas enfrentadas pela SBDI-1 diziam respeito ao expresso descumprimento das condições ajustadas em norma coletiva, quanto ao regime de compensação, e não tratam dos casos em que há previsão nas normas coletivas quanto à possibilidade de labor extraordinário, vale dizer, não tratam das hipóteses em que a norma coletiva foi estritamente observada ( distinguishing) .
6. Por outro lado, cumpre notar que a autonomia privada coletiva resultou elevada para nível constitucional pelo art. 7º, XXVI, da CF, que assegura o reconhecimento das negociações coletivas. Com efeito, pelo prisma do Princípio da Autonomia Privada Coletiva, derivado do Princípio da Liberdade Sindical, consagrado internacionalmente pelas Convenções 87 e 98 da OIT e acolhido pelo art. 8º da CF, a pactuação coletiva legítima entre trabalhadores e empregadores deve ser respeitada, a menos que comprometa substancialmente a saúde e segurança dos obreiros, o que não é o caso dos autos, sob pena de o Estado se substituir aos atores sociais para lhes dizer o que é melhor para eles. Destaca-se ainda a Convenção 154 da OIT, que aponta para a necessidade de que os países membros prestigiem a negociação coletiva como a via mais eficaz de composição de conflitos coletivos de trabalho e fixação das condições de labor de cada setor produtivo.
7. In casu , a decisão do TRT manteve a condenação do Consórcio Reclamado ao pagamento de horas extras em decorrência da descaracterização do regime de compensação de jornada, com base na Súmula 85, IV, do TST, por ter havido a realização de horas extras, com labor aos sábados, e com correspondente pagamento de horas extraordinárias nos recibos de pagamento, olvidando, entretanto, do ajuste coletivo legítimo entabulado entre as Partes, com previsão expressa de possibilidade de prestação de horas extras, conforme as normas coletivas que menciona em seu acórdão. Ademais, conforme verificado no caso dos autos, o acordo coletivo contemplou a principal reivindicação da categoria, qual seja, o trabalho aos sábados e as horas extras semanais. Daí que , desconsiderar o pactuado e onerar ainda mais a Empresa que atendeu às reivindicações obreiras, soaria a suma injustiça, desequilibrando os pratos da balança da Justiça Social, dando-se guarida a pleito que beira a má-fé.
8. Ora, nos termos acima assentados, o caso dos autos diz respeito à previsão, nas normas coletivas instituidoras do regime de compensação de jornada, da possibilidade de labor extraordinário, especialmente aos sábados, hipótese não albergada pelo item IV da Súmula 85 do TST, conforme se extrai dos precedentes desta Corte Superior que lhe deram origem.
9. Conclui-se, portanto, que houve má aplicação da Súmula 85, IV, do TST pelo TRT ao caso concreto, que possui peculiaridades que o distingue das hipóteses encampadas pelo citado verbete sumular, sendo certo ainda que, ao contrário do que concluiu o Regional, não houve inobservância do pactuado; antes, verificou-se estrito cumprimento do disposto nas normas coletivas (art. 7º, XIII e XXVI, da CF).
10. Nesses termos, reconhecida a transcendência política e jurídica da causa (art. 896-A, § 1º, II e IV, da CLT), bem como a má aplicação da Súmula 85, IV, do TST e a violação do art. 7º, XIII e XXVI, da CF, o recurso de revista patronal deve ser conhecido e provido para afastar a condenação do Reclamado ao pagamento de horas extras , decorrentes da descaracterização do regime de compensação de jornada , e julgar improcedente a presente ação, restando prejudicada a análise do tema remanescente do apelo patronal quanto aos honorários advocatícios sucumbenciais devidos ao patrono do Reclamante, ante a inversão da sucumbência .
Recurso de revista provido, no tópico.
A decisão foi unânime.
Processo: RR-3-24.2020.5.14.0006