A aplicação das medidas de segurança sob o crivo do STJ

Pessoas inimputáveis que cometem crimes sofrem sanções penais na forma de medidas de segurança. Embora muitas vezes se mencione que o inimputável não é punido, a medida de segurança – adotada com os objetivos de tratamento e de proteção da sociedade – também pode significar restrição da liberdade, tanto que a sua aplicação, em lugar da pena reservada aos imputáveis condenados, resulta de uma decisão judicial que a doutrina chama de absolvição imprópria (o réu é absolvido, por ser inimputável, mas, reconhecido como autor do crime, será internado em hospital psiquiátrico).

A inimputabilidade decorre de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto que faz com que o agente não tenha consciência da ilicitude de seus atos. A Classificação Internacional de Doenças (CID) lista os transtornos mentais que, para a Justiça, podem caracterizar as pessoas como inimputáveis ou semi-imputáveis.

Na aplicação e na execução das medidas, há uma série de especificidades a serem observadas pelos operadores do direito. Esta reportagem especial aborda os entendimentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o tema.

Medida de segurança é espécie de sanção penal

O Código Penal prevê, no artigo 96, duas medidas de segurança aplicáveis a quem praticou alguma conduta criminosa, mas não pode cumprir pena, por ser entendido como inimputável ou semi-imputável.

São consideradas medidas de segurança:

I – Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado;

II – Sujeição a tratamento ambulatorial.

A medida de segurança é uma espécie de sanção penal, gênero no qual também se inclui a pena. No Brasil, foi o Código Penal de 1940 que incorporou os critérios atualmente considerados para o reconhecimento da inimputabilidade, mas, no princípio, a medida de segurança era aplicada em concomitância com a pena.

Em 1969, as medidas de segurança foram detalhadas no Decreto-Lei 1.004, incluindo a distinção entre medidas detentivas e não detentivas, pessoais ou patrimoniais. Popularizou-se na época a expressão “manicômio judiciário”, que designava uma espécie de hospital-prisão para abrigar as pessoas sancionadas por medidas de segurança.

Razoabilidade e proporcionalidade na imposição da medida

Em 2019, a Terceira Seção dirimiu dúvidas sobre a interpretação a ser dada ao artigo 97 do Código Penal. De um lado, havia o entendimento de que, em se tratando de crime punível com reclusão, não seria possível a substituição da internação em hospital de custódia por tratamento ambulatorial – posição que era dominante na Quinta Turma.

A Sexta Turma, por sua vez, proclamava a tese de que, por não se vincular a medida de segurança à gravidade do delito, mas à periculosidade do agente, o magistrado poderia optar por tratamento mais apropriado ao inimputável, em respeito aos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Prevaleceu o entendimento da Sexta Turma. Segundo o ministro Ribeiro Dantas – relator dos embargos de divergência –, a doutrina majoritária no Brasil considerava injusta a interpretação da norma que padronizava a aplicação da sanção penal, impondo ao réu, independentemente de sua periculosidade, medida de segurança de internação em hospital de custódia, em razão de o fato previsto como crime ser punível com reclusão.

“Ao meu sentir, para uma melhor exegese do artigo 97 do CP, à luz dos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade, não deve ser considerada a natureza da pena privativa de liberdade aplicável, mas sim a periculosidade do agente, cabendo ao julgador a faculdade de optar pelo tratamento que melhor se adapte ao inimputável”, explicou o magistrado.

No caso concreto, que tramitou sob segredo de Justiça, o colegiado rejeitou os embargos de divergência do Ministério Público Federal que buscavam a aplicação da norma segundo a interpretação mais rígida.

A necessidade de revisão periódica das medidas de segurança

Uma resolução conjunta do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) estabeleceu, em 2009, mecanismos de revisão periódica das medidas de segurança, prisões provisórias e internações de adolescentes.

Em outubro de 2021, a Segunda Turma atendeu a um pedido da Defensoria Pública de São Paulo (DPSP) e determinou que a corregedoria dos presídios de Sorocaba (SP) fornecesse à instituição a relação dos processos da comarca em que houvesse a aplicação de medidas de segurança contra pessoas com deficiência, informando os respectivos dados cadastrais e os locais de cumprimento das medidas (RMS 48.922).

O ministro Og Fernandes, relator do recurso da DPSP, afirmou que, passados mais de dez anos da edição da resolução, aparentemente ainda não existia em Sorocaba uma relação das medidas de segurança em cumprimento – situação que, para ele, não poderia perdurar.

“Não restam dúvidas: desde 2009, está o Judiciário obrigado, por seu órgão central de planejamento e coordenação, a registrar e revisar tais penas com periodicidade mínima anual. Daí o suporte à provocação da Defensoria, que apenas visa obrigar o Judiciário a dar efetividade à política pública que desenhou para si próprio”, declarou o magistrado ao dar provimento ao recurso em mandado de segurança.

Em seu voto, Og Fernandes destacou que a Convenção de Nova York sobre Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/2009) impõe aos Estados-membros a coleta de dados para promoção de políticas públicas adequadas a essa população, nas quais se inclui a proteção judicial no âmbito das medidas de segurança.

Medida de segurança não tem execução provisória

Outro entendimento do STJ sobre o tema diz respeito à impossibilidade da execução provisória da medida de segurança.

No julgamento do HC 226.014, em 2012, na Quinta Turma, a ministra Laurita Vaz afirmou não ser cabível no ordenamento jurídico a execução provisória da medida de segurança. Ela invocou a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que naquela época – como agora – considerava inviável a execução provisória da pena, existindo apenas a figura da prisão cautelar, que deve ser devidamente justificada.

No caso analisado pelos ministros, um homem acusado de homicídio, reconhecido como inimputável, teve aplicada contra si a medida de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico pelo prazo mínimo de dois anos. O Ministério Público requereu o início do cumprimento da sanção antes do trânsito em julgado da decisão.

“Nem se diga que, por se tratar, no caso, de medida de segurança, não seria necessário aguardar o trânsito em julgado. Ora, a medida de segurança se insere no gênero sanção penal, do qual figura como espécie, ao lado da pena. Se assim o é, não é cabível no ordenamento jurídico a execução provisória da medida de segurança, à semelhança do que ocorre com a pena aplicada aos imputáveis”, explicou a relatora.

Laurita Vaz destacou a regra do artigo 171 da Lei de Execução Penal, segundo a qual a execução tem início após a expedição da competente guia – o que só se mostra possível depois de passada em julgado a decisão.

Medida de segurança não pode ser prorrogada de forma indefinida

De acordo com a Sexta Turma, extrapolado o prazo de cumprimento previsto para a pena privativa de liberdade, deve cessar a intervenção do Estado na esfera penal, independentemente da cessação da periculosidade do paciente.

O entendimento foi exposto na análise de um caso em que, no curso da execução da pena privativa de liberdade pelos crimes de falsa identidade, roubo circunstanciado e furtos qualificados, instaurou-se incidente para verificar a ocorrência de doença mental.

O parecer atestou a doença, e, na sequência, em setembro de 2002, as penas privativas de liberdade foram convertidas na medida de segurança de internação, pelo prazo mínimo de um ano. Em dezembro de 2007, novo parecer foi juntado aos autos, apontando a necessidade de prorrogação da medida de segurança, o que extrapolaria o prazo máximo da pena original, que tinha fim em julho de 2008.

A defesa contestou a medida e pleiteou a liberação do inimputável em julho de 2008. No entanto, nesta data, o juízo da vara de execuções criminais prorrogou a medida de segurança por mais um ano.

Segundo a relatora do caso, ministra Maria Thereza de Assis Moura, a jurisprudência do STJ entende que, em se tratando de medida de segurança aplicada para substituir a pena corporal, a sua duração está limitada ao tempo que resta para o cumprimento da pena estabelecida na sentença condenatória, em respeito à coisa julgada.

“Assim, uma vez extrapolado o prazo de cumprimento da pena privativa de liberdade, deve cessar a intervenção do Estado na esfera penal, configurando constrangimento ilegal a manutenção da medida de segurança, independentemente da cessação da periculosidade do paciente”, explicou a magistrada. Ela destacou que, nessas hipóteses, cabe ao Ministério Público, se entender necessário, buscar a interdição, desde que estritamente necessária à proteção do sancionado ou da sociedade (HC 130.162).

Sistema vicariante impede adoção cumulativa com pena

Na análise do HC 275.635, a Sexta Turma enfrentou uma discussão sobre o cumprimento cumulativo de penas privativas de liberdade e medida de segurança. Segundo a Defensoria Pública, durante o cumprimento de uma das penas, o paciente foi absolvido nos autos de outra ação penal por ser considerado inimputável (absolvição imprópria), sendo-lhe aplicada a medida de segurança de internação.

No fim dessa medida, o juízo da Vara de Execuções Criminais determinou a desinternação condicional e o cumprimento das penas privativas de liberdade remanescentes. Para a Defensoria, a decisão gerou constrangimento ilegal, uma vez que as demais penas também deveriam ter sido convertidas em medidas de segurança.

Ao analisar o caso, o ministro relator, Nefi Cordeiro (hoje aposentado), explicou que eram três condenações além da medida de segurança. Ele lembrou que a reforma penal de 1984, ao estabelecer o sistema vicariante, eliminou a possibilidade de aplicação cumulativa de pena e medida de segurança para os inimputáveis e semi-imputáveis.

No entanto, Nefi Cordeiro destacou que a situação tratada nos autos era diferente da que foi abolida na reforma de 1984, não se verificando violação do sistema vicariante. “Conforme exposto nos autos, em apenas um dos feitos o paciente foi absolvido impropriamente, sendo-lhe imposta uma medida de segurança; nos demais processos, as penas privativas de liberdade não foram objeto de conversão”, destacou o magistrado. São sanções diferentes para fatos distintos, segundo ele.

“Evidencia-se que cada reprimenda imposta corresponde a um fato distinto, portanto, não há que se falar ou sequer que se pensar em ofensa ao sistema vicariante, porquanto a medida de segurança refere-se a um fato específico, e a aplicação das penas privativas de liberdade correlacionam-se, respectivamente, a outros fatos e delitos”, explicou o ministro ao não conhecer do pedido de habeas corpus.

Penitenciária comum não pode ser usada para inimputáveis

Ao julgar o HC 231.124, os ministros da Quinta Turma se depararam com o problema da falta de estabelecimento adequado para o cumprimento da medida de segurança. Na ocasião, a relatora, ministra Laurita Vaz, apontou que, segundo a jurisprudência pacífica do tribunal, é inviável o cumprimento da medida em estabelecimento prisional comum, ainda que sob a justificativa de ausência de vagas ou falta de recursos estatais.

No caso analisado, um homem acusado de roubo qualificado e latrocínio, considerado inimputável, foi submetido a medida de segurança pelo prazo mínimo de três anos. No pedido de habeas corpus perante o STJ, a defesa alegou que, apesar da determinação da medida, ele continuava preso em penitenciária comum, mesmo após o fato ter sido comunicado ao tribunal estadual.

“O entendimento manifestado pelo tribunal de origem diverge da pacífica orientação desta corte, segundo a qual o inimputável submetido à medida de segurança de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico não pode permanecer recolhido em estabelecimento prisional comum, ainda que sob a justificativa de ausência de vagas ou falta de recursos estatais”, resumiu a ministra.

Laurita Vaz determinou a transferência imediata do paciente para hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou outro estabelecimento adequado, devendo, se fosse o caso, permanecer em tratamento ambulatorial até o surgimento da vaga.

Prescrição da medida de segurança deve observar pena máxima

No caso de aplicação da medida de segurança, a prescrição é regulada pela pena máxima abstratamente prevista para o delito. No julgamento do RHC 39.920, o relator, ministro Jorge Mussi, explicou esse ponto.

Ele observou que o Código Penal não trata, especificamente, da prescrição desse tipo de medida, mas, pelo fato de ser uma espécie do gênero sanção penal, é possível analisar o cabimento do instituto em relação a ela.

Jorge Mussi citou precedentes nos quais o STJ reconheceu a medida de segurança como espécie de sanção penal e, para a análise do prazo prescricional, considerou a pena máxima em abstrato para o delito objeto da denúncia.

O crime em discussão naquele caso, comentou o ministro, tinha prazo prescricional de dez anos, e, como o recebimento da denúncia se deu em setembro de 2007 e o cumprimento do mandado de internação foi efetivado em fevereiro de 2013, não se verificou a prescrição.

“Sedimentou-se nesta Corte Superior de Justiça o entendimento no sentido de que a prescrição nos casos de sentença absolutória imprópria é regulada pela pena máxima abstratamente prevista para o delito”, resumiu Mussi.

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