Pedido de vista da ministra Cármen Lúcia suspendeu o julgamento, pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), do Habeas Corpus (HC 168052), no qual a defesa de um condenado por tráfico pede a nulidade da ação penal com fundamento na ilicitude das provas obtidas mediante acesso a conversas registradas no aplicativo WhatsApp a partir da apreensão do celular e posterior ingresso em domicílio sem autorização judicial. Na sessão desta terça-feira (11), apenas o relator, ministro Gilmar Mendes, votou pela concessão do habeas corpus para considerar nulas as provas produzidas no processo e pelo encerramento da ação penal.
De acordo com os autos, após denúncia anônima de tráfico de drogas em Chavantes (SP), policiais militares foram à residência do rapaz, onde o encontraram sentado na calçada. Após a abordagem, apreenderam seu celular e verificaram as conversas registradas no WhatsApp. A partir delas, entenderam que haveria traficância e entraram na residência, onde apreenderam quatro porções de maconha (73g) e cinco porções de cocaína (5,1g), arma de fogo e munições (ambas de uso permitido, mas em desacordo com lei), além de R$ 3.779 em dinheiro.
Em primeira instância, o juízo condenou o acusado à pena de um ano de detenção, convertida na prestação de serviços à comunidade, pela posse irregular de arma de fogo. A sentença afastou, no entanto, a imputação de tráfico de drogas e desclassificou a conduta para posse de drogas para consumo próprio, condenando-o, nesse ponto, à pena de advertência sobre os efeitos da drogas. Ocorre que o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP), ao dar provimento a recurso do Ministério Público estadual, entendeu configurado o tráfico e o condenou à pena de 3 anos e 4 meses de reclusão em regime inicial fechado por esse delito. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) reduziu a pena e fixou o regime prisional aberto, mas manteve a condenação.
No Supremo, a defesa alega que o condenado não autorizou o acesso ao seu aparelho celular e à sua residência e sustenta que as provas obtidas mediante violação de sigilo e invasão de domicílio são nulas.
Relator
O relator explicou que o caso trata dos limites da proteção aos dados registrados em aparelho celular por meio de aplicativos de troca de mensagens e da inviolabilidade de domicílio. Sobre esse tema, o ministro Gilmar Mendes lembrou que a jurisprudência do Supremo era no sentido de que a inviolabilidade das comunicações não se aplicava aos dados registrados, mas apenas às trocas de informações privativas (comunicações), adotando uma interpretação mais estrita da norma contida no artigo 5º, inciso XII, da Constituição Federal. Ele citou, como exemplo, o HC 91867, de sua relatoria. Contudo, segundo o relator, a modificação das circunstâncias fáticas e jurídicas, a promulgação de novas leis e o significativo desenvolvimento das tecnologias da comunicação, do tráfego de dados e dos aparelhos smartphones leva, nos dias atuais, a solução diferente. “Penso que se está diante de típico caso de mutação constitucional”, afirmou.
Ele destacou que, no âmbito infraconstitucional, a norma do artigo 7º, inciso III, do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) é elucidativa ao prever a inviolabilidade e o sigilo das comunicações privadas armazenadas (dados armazenados), salvo por ordem judicial. “Entendo que o avanço normativo nesse importante tema da proteção do direito à intimidade e à vida privada deve ser considerado na interpretação do alcance das normas do artigo 5º, incisos X e XII, da Constituição Federal”, ressaltou.
Ainda segundo Mendes, tão importante quanto a alteração do contexto jurídico é a “impactante” transformação das circunstâncias fáticas. “Houve um incrível desenvolvimento dos mecanismos de comunicação e armazenamento de dados pessoais em smartphones e telefones celulares na última década”, destacou. Ele lembrou que, a partir de telefones celulares, é possível, na atualidade, localizar e fazer o reconhecimento facial de suspeitos. “Esses avanços tecnológicos são importantes e devem ser utilizados para a segurança pública dos cidadãos e a elucidação de delitos. Contudo, deve-se ter cautela, limites e controles, para não transformar o Estado policial em um Estado espião e onipresente”, ponderou
Portanto, embora considere possível o acesso aos dados contidos em aparelhos celulares, uma vez que não há norma absoluta de proibição da visualização do seu conteúdo, o ministro revisou seu entendimento anterior para assentar que o acesso deve ser condicionado a prévia decisão judicial.
Em relação à inviolabilidade de domicílio, o relator destacou que o STF já declarou, em inúmeros precedentes, a ilicitude de provas obtidas com a violação a esse direito fundamental. “A violação à referida norma deve acarretar a nulidade dos elementos de prova eventualmente colhidos”, afirmou. “O acesso direto a aparelhos telefônicos e à residência de suspeitos sem autorização judicial, fora das hipóteses de flagrante e sem a adoção de procedimentos bem delimitados que garantam a observância dos direitos fundamentais dos indivíduos também conflita com o direito fundamental à não autoincriminação”.
No caso dos autos, o relator concluiu pela ilicitude das provas que deram origem à apuração e de todo o processo penal, , tendo em vista que a apreensão das drogas e da arma, que levou à condenação, somente ocorreu após o acesso indevido ao celular e o ingresso desautorizado residência do indivíduo. Assim, votou pelo trancamento da ação e a absolvição do condenado.
O recurso ficou assim ementado:
Habeas corpus. 2. Acesso a aparelho celular por policiais sem autorização judicial. Verificação de conversas em aplicativo WhatsApp. Sigilo das comunicações e da proteção de dados. Direito fundamental à intimidade e à vida privada. Superação da jurisprudência firmada no HC 91.867/PA. Relevante modificação das circunstâncias fáticas e jurídicas. Mutação constitucional. Necessidade de autorização judicial. 3. Violação ao domicílio do réu após apreensão ilegal do celular. 4. Alegação de fornecimento voluntário do acesso ao aparelho telefônico. 5. Necessidade de se estabelecer garantias para a efetivação do direito à não autoincriminação. 6. Ordem concedida para declarar a ilicitude das provas ilícitas e de todas dela derivadas.
Processo relacionado: HC 168052