A 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal, por unanimidade, acolheu o recurso do Departamento de Trânsito do Distrito Federal – Detran-DF e julgou improcedente o pedido do autor para que o órgão fosse obrigado a substituir a placa de seu veiculo, pois a combinação das letras lhe causava situações constrangedoras.
Em sua inicial, o autor contou que adquiriu veículo registrado no estado de São Paulo e providenciou sua transferência para o DF, oportunidade em que consultou o órgão sobre a possibilidade de trocar os caracteres da placa de licenciamento do carro, uma vez que a sequência de letras formava a palavra “GAY”, o que poderia lhe causar diversos constrangimentos. Diante da negativa, fez novo questionamento formal ao Departamento Nacional de Trânsito – Denatran, que respondeu que não há previsão legal que permita a substituição dos caracteres, conforme a situação indicada pelo requerente. Como não obteve êxito na via administrativa, ajuizou ação judicial no intuito de alterar a placa de seu carro.
O juiz da 1ª instância julgou procedente o pedido e condenou o Detran-DF a fornecer nova placa ao autor no prazo de 30 dias. Contra a sentença, o órgão de trânsito interpôs recurso, que foi acatado pelos magistrados. O colegiado esclareceu que a situação não implica em violação de direito da personalidade, que autor tinha conhecimento da placa quando adquiriu o veículo e que a legislação não permite a substituição, salvo caso de clonagem. Também ressaltaram que “a exclusão dos caracteres designativos da palavra “GAY” da placa do veículo não constituem proteção contra práticas homofóbicas, como equivocadamente sustenta o recorrente. Pois não se é escondendo, mascarando a grafia associada a uma orientação sexual que se extirpa o preconceito, mas através de políticas de educação e conscientização da população”.
O recurso ficou assim ementado:
JUIZADO ESPECIAL DA FAZENDA PÚBLICA. DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PRETENSÃO DE ALTERAÇÃO DE COMBINAÇÃO DE LETRAS EM PLACA DE VEÍCULO (GAY). ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIREITO DA PERSONALIDADE. IMPOSSIBILIDADE. VINCULAÇÃO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA À LEGALIDADE ESTRITA. AUSÊNCIA DE NORMA. AFRONTRA ÀS NORMAS CONSTITUCIONAIS E TRATADOS INTERNACIONAIS DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO. ADO 26, STF. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA.
1. Busca o autor compelir o Detran-DF a substituir placa de veículo adquirido em outra unidade da federação, ao fundamento de que a combinação das letras tem lhe ocasionado situações constrangedoras por onde transita, oriundas de atos homofóbicos, decorrentes da formação da palavra “GAY”.
2. A sentença proferida pelo 3º Juizado Especial da Fazenda Pública do Distrito Federal alegando ofensa a direito da personalidade do autor, com fundamento no art. 375 do CPC, julgou procedente o pedido formulado na inicial para determinar o fornecimento de nova placa, com letras diversas em seu prefixo, no prazo máximo de 30 dias, sob pena de multa diária de R$ 500,00 em caso de descumprimento.
3. O Detran-DF interpôs recurso para afastamento da condenação. Alega error in judicando, violação ao Código de Trânsito Brasileiro, Resolução 670/17 do CONTRAN, em especial violação a normas constitucionais e tratados internacionais que versam sobre a vedação à discriminação.
4. Conforme a doutrina de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da legalidade é específico do Estado de Direito, é justamente aquele que o qualifica e lhe dá identidade própria, por isso considerado é basilar para o Regime Jurídico-administrativo (MELLO, Celso Antônio Bandeira de, Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros, 26ª Ed. 2009). Nesse sentido, o administrador público só pode atuar conforme determina a lei, não podendo o agente estatal praticar condutas que considere devidas, sem embasamento legal.
5. No que tange a regulamentação da identificação externa veicular, o Código de Trânsito Brasileiro em seu art. 115, caput e §1º prevê: “Art. 115. O veículo será identificado externamente por meio de placas dianteira e traseira, sendo esta lacrada em sua estrutura, obedecidas as especificações e modelos estabelecidos pelo CONTRAN. §1º os caracteres das placas serão individualizados para cada veículo e o acompanharão até a baixa do registro, sendo vedado seu reaproveitamento.”
6. A Resolução CONTRAN n 670 de 18/05/2017 disciplina o processo administrativo para a troca de placas de identificação de veículos automotores nos casos em que for comprovada a existência de outro veículo automotor circulando com combinação alfanumérica de placas igual à do veículo original (art. 1º).
7. Ademais, o Departamento de Trânsito do Distrito Federal, através do despacho DIRCONV nº 54110998, foi enfática ao informar que a troca de placa deve observar ao que dispõe as Resoluções n 670/2017 e nº 780/2019, ambas do Conselho Nacional de Trânsito – CONTRAN, de modo que sugeriu a inviabilidade da substituição (Id 24607137).
8. Desse modo, é importante destacar, inobstante o autor alegue constrangimento, seu requerimento não merece acolhida. Isso porque a legislação sobre o tema tão somente permite a troca de placas em caso de comprovada clonagem.
9. Ressalte-se, ao adquirir o veículo o autor tinha pleno conhecimento dos caracteres nela indicados, já que o veículo apresenta ano/modelo 2015/2016 e ostentava a placa “GAY0687”. Dada a formação do autor/recorrente, este certamente tinha conhecimento de impossibilidade de alteração dos caracteres.
10. Por outro lado, a exclusão dos caracteres designativos da palavra “GAY” da placa do veículo não constituem proteção contra práticas homofóbicas, como equivocadamente sustenta o recorrente. Pois não se é escondendo, mascarando a grafia associada a uma orientação sexual que se extirpa o preconceito, mas através de políticas de educação e conscientização da população.
11. Conforme bem observado no julgamento da ADO 26, relatada pelo Min. Celso de Mello, ante a inércia quando a implementação de mandamentos constitucionais de criminalização aos integrantes da comunidade LGBTI+ equiparou práticas homofóbicas ao racismo. (ADO 26, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 13/06/2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-243 DIVULG 05-10-2020 PUBLIC 06-10-2020, partes: Partido Popular Socialista versus Congresso Nacional e Presidente do Senado Federal). Eventual adoção de precedente no sentido de alteração de placa com esta grafia, serviria justamente para fortalecer a discriminação, o preconceito e estigmatizar este grupo, atuando na contramão do preconizado pelo Supremo Tribunal Federal na proteção de direitos desta classe.
12. Destaque-se, ainda que a alegada situação de violação de direito de personalidade e aplicação analógica da Lei de Registros Públicos ao conferir a alteração do prenome, não é razoável pois não submetida à legislação civil, cuja vinculação à legalidade pode sofrer mitigação.
13. Deste modo, à luz legalidade e especial observância ao julgado acima citado, não se pode afirmar que que a palavra GAY seja ofensiva, jocosa a ponto de autorizar a retirada da placa de um veículo ao fundamento de violação de direito de personalidade.
14. Eventual violação a direito de personalidade merece proteção individual, razão pela qual deve ser apurada no âmbito privado, à luz das regras do direito Civil, em especial art. 12, 20, 945 do Código Civil, não objeto de intervenção da Administração Pública.
15. Recurso CONHECIDO e PROVIDO. Sentença reformada para julgar improcedentes os pedidos iniciais. Isento de custas. Sem condenação em honorários.
PJe2: 0745314-10.2020.8.07.0016