Terceira Turma restringe discussão sobre uso de spray pela Fifa aos jogos realizados no Brasil

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu a jurisdição brasileira para analisar eventual violação de patente do spray que os árbitros utilizam nos jogos organizados pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) no país, mas limitou a discussão judicial à patente concedida no Brasil.

Ao acolher parcialmente um recurso da Fifa e reformar acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ), o colegiado concluiu que a Justiça brasileira não tem competência para examinar suposta violação de patentes concedidas por outros países, de modo que a empresa interessada deve buscar seus direitos perante a autoridade judiciária de cada país.

O spray é usado pelo juiz de futebol para fazer marcações em campo. Alegando ter o registro da invenção em mais de 40 países, a empresa autora da ação pediu que a Fifa e as confederações e associações filiadas fossem impedidas de usar o produto em todo o mundo. Também pleiteou indenização pela utilização indevida do spray.

Uma liminar determinou que a Fifa parasse de utilizar o spray em todas as competições organizadas por ela ou pelas entidades filiadas, sob pena de multa. A federação internacional recorreu ao STJ depois que o TJRJ manteve a decisão.

Entretanto, no julgamento definitivo da ação, o juízo de primeiro grau julgou improcedentes os pedidos da empresa. Diante da perda de objeto do recurso em relação à questão principal, a Terceira Turma do STJ analisou apenas a alegação da Fifa quanto à ausência de jurisdição brasileira no caso.

Competência não exclusiva

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator, apontou que o artigo 21 do Código de Processo Civil (CPC) dispõe sobre as hipóteses em que o Brasil tem competência, ainda que não exclusiva, para julgar litígios em que sejam verificados elementos internacionais. Entre essas hipóteses, estão as causas em que tiver de ser cumprida uma obrigação no Brasil e aquelas cujo fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado em território brasileiro.

O magistrado observou que a empresa propôs a ação alegando possuir o registro da patente do spray no Brasil e ter havido utilização indevida do produto pela Fifa e suas entidades filiadas.

Como o processo está baseado em patente de invenção – direito de exclusividade temporária conferida ao inventor pelo Brasil, de acordo com a Constituição e a Lei 9.279/1996 –, o ministro entendeu não haver dúvidas de que o Judiciário brasileiro tem jurisdição para decidir a controvérsia.

Natureza territorial

Entretanto, Sanseverino chamou atenção para o fato de que a empresa titular da patente busca, com a ação, impedir a Fifa de utilizar o spray não só em competições realizadas no Brasil, mas em todo o mundo.

Segundo ele, a patente, como todo direito de propriedade intelectual, tem natureza territorial: é conferida aos inventores no exercício da própria soberania estatal; consequentemente, a patente concedida no Brasil tem força apenas no território nacional.

Sanseverino ressaltou que a internacionalização do direito de propriedade intelectual não afasta a territorialidade desse direito, que apenas é flexibilizada no caso dos escritórios regionais, que conferem patentes válidas em uma região específica, a exemplo do Escritório Europeu de Patentes – cujas concessões têm força em seus 38 Estados-membros.

Como consequência do princípio da independência, previsto no artigo 4º-bis da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial, o ministro destacou que o resultado de um pedido de patente feito em determinado país não está atrelado ao resultado do mesmo pedido formulado em outro país.

“O Brasil tem jurisdição sobre ação em que se alega violação de patente brasileira. Porém, tal jurisdição não se estende aos fatos ocorridos em território estrangeiro, porquanto, nesses casos, não será a patente brasileira, mas a de outro país que poderá ter sido violada. Nesses casos, não há aplicação do inciso III do artigo 21 do CPC”, concluiu o ministro.

O recurso ficou assim ementado:

RECURSO ESPECIAL. DIREITO EMPRESARIAL. DIREITO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL. PATENTES. AÇÃO DE INFRAÇÃO DE PATENTE SOBRE COMPOSIÇÃO ESPUMOSA EM SPRAY PARA DEMARCAR E LIMITAR DISTÂNCIAS REGULAMENTARES NOS ESPORTES. UTILIZAÇÃO COMO SPRAY DE MARCAÇÃO EM PARTIDAS DE FUTEBOL. RECURSO INTERPOSTO CONTRA A TUTELA DE URGÊNCIA. SENTENÇA SUPERVENIENTE. PERDA DO OBJETO. INTERESSE RECURSAL SUBSISTENTE NO QUE DIZ RESPEITO À ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE JURISDIÇÃO. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DOS ARTS. 489, § 1º, E 1.022 DO CPC. ACÓRDÃO RECORRIDO QUE APRESENTA FUNDAMENTAÇÃO CLARA E SUFICIENTE. ALEGADA VIOLAÇÃO DO ART. 46, § 3º, DO CPC. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULAS 282 E 356⁄STF. VIOLAÇÃO DO ART. 21 DO CPC. INEGÁVEL EXISTÊNCIA DE JURISDIÇÃO BRASILEIRA SOBRE AÇÃO QUE VERSA ACERCA DA INFRAÇÃO DE PATENTE CONCEDIDA PELO BRASIL. TERRITORIALIDADE DO DIREITO DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL. PATENTE BRASILEIRA QUE APENAS TEM FORÇA EM TERRITÓRIO NACIONAL. AUSÊNCIA DE JURISDIÇÃO SOBRE ALEGADA VIOLAÇÃO OCORRIDA EM TERRITÓRIO ESTRANGEIRO.
1. Recurso especial interposto no curso de ação de infração de patente sobre invenção denominada “composição espumosa em spray para demarcar e limitar distâncias regulamentares nos esportes”, que estaria sendo utilizada, sem autorização do titular, como spray de marcação em partidas de futebol organizadas pela FIFA e por confederações e associações a ela filiadas, bem como que teria sido objeto de tratativas pré-contratuais nas quais a FIFA teria deixado de observar o dever de boa-fé.
2. Tendo o recurso sido interposto contra acórdão que manteve a tutela de urgência concedida na origem, houve, com a prolação de sentença, perda superveniente do interesse recursal quanto a esse ponto.
3. O interesse recursal subsiste, no entanto, quanto à alegação de ausência de jurisdição brasileira para examinar a presente demanda, porquanto a questão foi examinada apenas no acórdão recorrido, tendo o Tribunal de origem deixado de reexaminá-la posteriormente, por entender ter se operado a preclusão.
4. Reconhecimento da perda integral do objeto do presente recurso que configuraria negativa de prestação jurisdicional, uma vez que a recorrente não teria como arguir novamente a questão da jurisdição perante este Superior Tribunal.
5. Alegada violação dos arts. 489, § 1º, e 1.022 do CPC que não se verifica no presente caso, uma vez que o Tribunal de origem se manifestou de forma clara e suficiente acerca de todas as alegações relevantes à solução da lide.
6. Ausente o prequestionamento do art. 46, § 3º, do CPC, uma vez que o Tribunal de origem não se  manifestou, sequer implicitamente, acerca da matéria nele tratada.
7. A autoridade judiciária brasileira tem inegável jurisdição sobre ação em que se discute a violação de patente de invenção concedida pelo Brasil, nos termos do inciso III do art. 21 do CPC.
8. As patentes, no entanto, como todo direito de propriedade intelectual, caracterizam-se por serem direitos territoriais, conferidos no exercício da soberania do Estado e que, por conseguinte, encontram seu limite no território nacional.
9. Territorialidade do direito de patentes que está cristalizada no princípio da independência, previsto expressamente no art. 4 bis da Convenção de Paris.
10. Ausência de jurisdição brasileira sobre atos realizados em território estrangeiro, que podem configurar, no máximo,  violação a outra patente, que não aquela concedida pelo Brasil. Impossibilidade de aplicação do inciso III do art. 21 do CPC.
11. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E PARCIALMENTE PROVIDO.

Leia o acórdão.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1888053

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