STJ condena Rio de Janeiro a repor mais de R$ 183 milhões não aplicados na saúde em 2005

A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou o Estado do Rio de Janeiro a aplicar R$ 183,5 milhões em programas e ações de saúde, para reparar o dano causado pela não alocação do valor mínimo de recursos previsto na Constituição para essa área, em 2005. O colegiado também condenou a União a só repassar verbas do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e de transferências voluntárias para o Rio de Janeiro mediante o cumprimento da obrigação.

A decisão foi tomada no julgamento de recurso do Ministério Público Federal (MPF), que, em ação civil pública, pediu a condenação do estado a repor o dinheiro não aplicado na saúde em 2005, conforme determinado pela Emenda Constitucional 29 e tendo em vista os parâmetros fixados em resolução do Conselho Nacional de Saúde.

O juízo de primeiro grau acolheu o pedido, mas o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) reduziu o valor para R$ 18,3 milhões, equivalente a 10% do que deixou de ser destinado à saúde. O TJRJ também afastou a condenação da União a condicionar os repasses do FPE e das transferências voluntárias à comprovação da aplicação dos recursos, por considerar que seria medida excessiva.

Desvio de verba orçamentária

O relator no STJ, ministro Herman Benjamin, afirmou que o TJRJ reduziu o aporte por entender que o orçamento de 2005 seria fato pretérito e consumado. Segundo o ministro, o tribunal estadual considerou que a verba não usada na área de saúde teve outra destinação pública e, assim, teria servido, de qualquer modo, a alguma finalidade social. Além disso, não seria viável desfazer ou acertar o orçamento daquele ano, nem intervir nas futuras dotações orçamentárias.

Dessa forma, explicou o ministro, o TJRJ criou um parâmetro punitivo para a conduta do estado – 10% da verba não empregada em saúde –, sob o argumento de que não seria razoável condená-lo a repor toda a diferença que deixou de ser aplicada na área (R$ 183.525.151,39).

“Haja vista ser incontroverso nos autos o efetivo desvio de verba orçamentária destinada exclusivamente à saúde, a sua aplicação em outras áreas de serviço público não pode servir de argumento para a redução do quantum, até porque as condições de serviço público oferecido à população, sobretudo no setor de saúde, encontram-se extremamente precárias”, declarou o relator.

Para Herman Benjamin, se determinado valor deveria, por força de norma constitucional, ter sido aplicado na saúde, e o estado o alocou para programas diversos, a devolução da totalidade da diferença à área de origem deve ser efetivada como forma de restaurar a ordem pública.

Repasses de valores pela União

O ministro lembrou ainda que compete à União fiscalizar a alocação das verbas por ela repassadas aos estados com destinação certa e identificada, como as provenientes do Fundo Nacional de Saúde e vinculadas ao Sistema Único de Saúde; e que também é sua a atribuição constitucional de, diante da inobservância de tais normas, deixar de repassar os valores referentes ao FPE.

Herman Benjamin verificou que o próprio TJRJ reconheceu a existência de norma expressa – artigo 160, parágrafo único, II, da Constituição – que prevê a retenção de valores, pela União, em desfavor dos estados, especificamente em casos de descumprimento do mínimo constitucional aplicável na área de saúde.

Para o ministro, a condenação da União em condicionar os repasses dos valores do FPE e de transferências voluntárias à comprovação do pagamento da indenização “torna-se perfeitamente consonante com a finalidade do nosso ordenamento jurídico”.

O recurso ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO, CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL E AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REPARAÇÃO DE DANO CAUSADO PELA NÃO ALOCAÇÃO DE RECURSOS PARA A ÁREA DE SAÚDE DO MÍNIMO CONSTITUCIONAL NO ANO DE 2005. REPARAÇÃO INTEGRAL DEVIDA. CONDENAÇÃO DA UNIÃO AO CONDICIONAMENTO DA REMESSA DE FUTUROS REPASSES AO FUNDO DE PARTICIPAÇÃO DOS ESTADOS – FPE. PROVIMENTO DO RECURSO ESPECIAL DO MPF. CONDENAÇÃO PECUNIÁRIA DE CARÁTER COMPENSATÓRIO DESTINADA A FUNDO ESPECÍFICO. INEXISTÊNCIA DE CONFUSÃO ENTRE CREDOR E DEVEDOR. ORIENTAÇÃO EM CONFORMIDADE COM A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. NÃO CONHECIMENTO DO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO.
HISTÓRICO DA DEMANDA
1. Na origem, foi proposta Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal, que objetiva a condenação do Estado do Rio de Janeiro a reparar o dano causado pela não alocação de recursos para a área de saúde. Visava também à condenação da União a condicionar os repasses do Fundo de Participação dos Estados (FPE) e as transferências constitucionais à efetiva aplicação do montante na área de saúde.
2. O Tribunal de origem, por maioria, julgou “parcialmente procedente a ação, determinando a condenação do Estado do Rio de Janeiro a reparar o dano causado pela não aplicação do mínimo constitucional na área de saúde no ano de 2005, através do pagamento de indenização fixada no montante de R$18.352.515,13 (dezoito milhões, trezentos e cinquenta e dois mil, quinhentos e quinze reais e treze centavos), equivalente a 10% do valor que deixou de ser aplicado na área de saúde naquele exercício, atualizado com base no Manual de Cálculos da Justiça Federal. O valor deverá ser revertido ao Fundo Estadual de Saúde, na forma do art. 13 da Lei n° 7.347⁄85. Apelação da União Federal provida para afastar a sua condenação a condicionar os repasses dos valores destinados ao FPE e de transferências voluntárias, à comprovação do cumprimento do pagamento da indenização.”
3. Entendeu-se no aresto que violaria o princípio da razoabilidade a fixação do quantum indenizatório no exato valor de R$ 183.525.151,39. Isso porque o montante acabou sendo aplicado em favor dos cidadãos do Estado do Rio de Janeiro, com o respaldo do Tribunal de Contas do Estado.
4. Ademais, concluiu-se por “afastar a condenação da UNIÃO a condicionar os repasses dos valores destinados ao FPE e de transferências voluntárias à comprovação do pagamento da indenização”, por ter sido considerada tal medida “gravame excessivo”.
5. Merece registro o voto vencido nessa decisão, exarado pelo Relator originário da demanda, favorável ao provimento parcial da remessa necessária e do apelo do Estado do Rio de Janeiro, diminuindo o valor fixado a título de aporte devido para ações em programas de saúde (R$ 183.525.151,39), de modo a assegurar o comando constitucional alusivo ao orçamento da saúde, uma vez que entendeu que deveria o percentual de 12% ser calculado sobre o orçamento de R$13.899.637.397,84 (treze bilhões, oitocentos e noventa e nove milhões, seiscentos e trinta e sete mil, trezentos e noventa e sete reais e oitenta e quatro centavos), condicionada a transferência de verbas do FPE pela União à comprovação de que seriam alocadas para ações e programas de saúde.
6. Ressalvadas as divergências nos votos vencedor e vencido, ambos concordam em que inexiste inconstitucionalidade na Resolução 322⁄2003, do Conselho Nacional de Saúde, que fixou parâmetros a serem observados para aplicação da Emenda Constitucional 29, de 13 de dezembro de 2000; e que o Estado do Rio de Janeiro, de forma cabal, violou o ordenamento constitucional ao excluir da base de cálculo para os gastos com a saúde os recursos destinados ao Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério – Fundef.
7. Assim, cinge-se a controvérsia às questões do percentual do quantum indenizatório, bem como à condenação da União ao condicionamento de futuros repasses ao Fundo de Participação dos Estados.
RECURSO ESPECIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
8. Entendeu o Tribunal de origem que o orçamento do ano 2005 seria fato pretérito e consumado e que a verba que deveria ter sido usada na área de saúde teve outra destinação, sendo inviável o desfazimento ou acerto daquele orçamento, tampouco a intervenção nas futuras dotações orçamentárias.
9. O acórdão objurgado criou parâmetro punitivo da conduta do Estado do Rio de Janeiro, aplicando-lhe o equivalente a 10% da verba apurada pelo relator como não aplicada em programas e ações de saúde, sob o argumento de que feriria “o limite da razoabilidade a fixação do valor da indenização pelo valor da diferença que deixou de ser aplicada na saúde naquele ano (R$ 183.525.151,39)”, uma vez que se estaria desconsiderando “que os recursos não aplicados na área de saúde, foram destinados ao beneficio dos cidadãos do Estado do Rio de Janeiro em outras áreas, como educação, segurança, transporte, igualmente importantes.
10. Haja vista ser incontroverso nos autos o efetivo desvio de verba orçamentária destinada exclusivamente à saúde, sua aplicação em outras áreas de serviço público não pode servir de argumento para a redução do quantum, até porque as condições de serviço público oferecido à população, sobretudo no setor de saúde, encontram-se imensamente precárias.
11. Assim, se determinado valor deveria, por força de norma constitucional, ter sido aplicado na saúde, e o Estado alocou-o para programas diversos, a devolução de tal valor à sua área de origem, em sua totalidade, deve ser efetivada como forma de restaurar a ordem pública.
12. A cominação de uma espécie de multa de 10% sobre o montante desviado (como estipulado no acórdão recorrido) revela-se medida desprovida de compatibilidade lógica com o desenvolvimento da argumentação disposta no próprio voto vencedor, estando em efetiva dissonância da legislação que rege a matéria, que prevê sempre valor indenizatório equivalente ao prejuízo apurado em cada hipótese concreta, conforme se infere dos ditames do art. 944 do Código Civil.
13. Também quanto ao entendimento do Tribunal de origem de “afastar a condenação da UNIÃO a condicionar os repasses dos valores destinados ao FPE e de transferências voluntárias à comprovação do pagamento da indenização”, merece reforma o acórdão recorrido.
14. Compete à União fiscalizar a alocação das verbas por ela repassadas aos Estados com destinação certa e identificada, provenientes do Fundo Nacional de Saúde e, portanto, vinculadas ao SUS, bem como sua indeclinável atribuição constitucional de, diante da inobservância de tais normas, deixar de repassar os valores referentes ao Fundo de Participação dos Estados.
15. Nesse ponto, verifica-se que no próprio voto-vista vencedor consignou-se que existe norma constitucional expressa – art. 160, parágrafo único, II – prescrevendo a retenção de valores pela União em desfavor dos Estados, especificamente em casos de descumprimento do mínimo constitucional aplicável na área de saúde, o que torna a condenação da União perfeitamente consonante com a finalidade do nosso ordenamento jurídico.
16. Cumpre transcrever, quanto à matéria, a fundamentação do voto vencido exarado nos autos, in verbis: “Concernente à arguição de que a União não pode intervir na aplicação dos recursos pelos Estados-Membros, destaca-se que não se pretende com a presente ação a ‘intervenção’ Federal na esfera discricionária do Estado, mas sim, que auxilie na fiscalização da correta aplicação dos recursos públicos da saúde destinados aos Estados-Membros. No mais, repise-se que não há como afastar a União da atribuição de fiscalizar os recursos postos à disposição dos Estados, pois tais recursos são repassados diretamente do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estaduais e municipais de saúde. Outrossim, importante destacar que quando o assunto é saúde, não se têm exclusividade das verbas originadas pela repartição de receitas constitucional. No objeto da demanda incluem-se também as verbas oriundas do Fundo Nacional de Saúde – verbas do SUS –, cuja guarda e fiscalização compete, por força de expressa determinação legal e, portanto estreme de dúvidas, à União. Ademais, sabe-se que o bloqueio de cotas do Fundo de Participação dos Estados não resolve, por si só, o problema da não aplicação mínima de verbas em saúde, pois não tem o poder de desfazer tais aplicações. Contudo, tal medida, caso deferida, auxiliará no alcance, pelo Estado, do percentual mínimo a ser destinado para programas e ações de saúde.”
17. Especificamente no tocante aos recursos destinados ao SUS, o repasse, embora tenha previsão constitucional, é regido por condições estabelecidas em leis específicas, como preconiza o art. 195, § 10, da Constituição Federal. Assim, a Lei 8.080⁄1990 regulamenta o repasse de verbas para o SUS, tratando da matéria no art. 33.
18. Nos termos do disposto no § 4° do art. 33 da Lei 8.080⁄1990, cabe ao Ministério da Saúde fiscalizar a aplicação dos recursos repassados aos Estados e Municípios e aplicar as sanções cabíveis em caso de malversação. Mostra-se indubitável a responsabilidade da União no presente feito, já que versa exatamente sobre irregularidades na aplicação de verbas do SUS.
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
19. Alega o agravante ter sido afrontado o art. 381 do Código Civil, ao se negar a confusão existente entre o credor e o devedor; o art. 186 Código Civil e o art. 13 da Lei 7.347⁄1985, no seu entender equivocadamente adotado no caso sub judice. Sustenta não incidir no caso a Súmula 83 do STJ, pois não se firmou no STJ a tese no mesmo sentido da decisão recorrida.
20. A jurisprudência do STJ apresentada na decisão que inadmitiu o Recurso Especial demonstra de forma incontestável que “não há que se falar na existência de confusão patrimonial, nos termos estatuídos no artigo 381 do CPC, pois a condenação pecuniária possui caráter compensatório e é destinado à Fundo Específico.”
21. É incogitável a existência de confusão patrimonial, arguida pelo Estado do Rio de Janeiro, nos termos estatuídos no art. 381 do CPC, pois a condenação pecuniária possui caráter compensatório e destina-se a Fundo Específico, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça, motivo pelo qual se adota no caso a Súmula 83 do STJ.
22. Por outro lado, como bem pontuou o Parquet federal às fls. 1404-1408, e-STJ, “a jurisprudência desta Corte é consolidada no sentido de ser possível a condenação por danos morais coletivos, em sede de Ação Civil Pública, eis que ‘a possibilidade de indenização por dano moral está prevista no art. 5º, inciso V, da Constituição Federal, não havendo restrição da violação à esfera individual. (…)’.”
23. Tendo sido o recurso inadmitido com fundamento na Súmula 83 do STJ, caberia ao agravante indicar julgados atuais do STJ sobre a matéria, a fim de demonstrar que a orientação desta Corte é diversa da do Tribunal a quo ou que não se encontra pacificada. Poderia ainda, se fosse o caso, ter demonstrado a existência de distinção do caso tratado nos autos, mas não o fez. Precedentes: AgInt no AREsp 1.297.703⁄MS, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 28⁄6⁄2019; REsp 1.814.798⁄SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 17⁄6⁄2019; AgInt no AREsp 1003467⁄MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 13⁄3⁄2017.
CONCLUSÃO
24. Recurso Especial do Ministério Público Federal provido, e Agravo em Recurso Especial do Estado do Rio de Janeiro não conhecido.

Leia o acórdão no REsp 1.752.162.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1752162

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