A matriz energética brasileira – conjunto de fontes de energia utilizadas no país – é uma das mais limpas do planeta. As usinas hidrelétricas são as principais produtoras de energia elétrica no Brasil, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), gerando aproximadamente 60% do total consumido no território brasileiro. O restante é gerado por meio de usinas termelétricas, eólicas e nucleares, entre outras.
Além das políticas e diretrizes nacionais, são elementos fundamentais para o bom funcionamento do atual modelo do setor elétrico brasileiro as regras de atuação e os seus mecanismos de regulação, inclusive no tocante à relação consumidor/concessionárias/empresas públicas.
Constantemente envolvido em questões sobre interrupções de fornecimento, cobranças de dívidas, operações de compra e venda de energia, controvérsias tributárias e outras demandas, o setor energético brasileiro é altamente judicializado.
Muitas dessas questões chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que já se pronunciou diversas vezes em temas como a incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre a compra e venda de energia elétrica, devolução de valores, problemas relacionados ao serviço e até mesmo sobre a adulteração de medidores de energia.
Energia não utilizada
Para o STJ, o consumidor tem legitimidade para contestar a cobrança de ICMS no caso de energia elétrica que, apesar de contratada, não foi efetivamente consumida. De acordo com a Súmula 391 do STJ, o ICMS incide sobre o valor da tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada.
O entendimento foi firmado há dez anos em julgamento realizado pela Primeira Seção (REsp 960.476), sob a sistemática dos recursos repetitivos.
Para a corte, é ilegítima a cobrança do imposto sobre todo e qualquer valor relacionado à demanda reservada de potência, sendo devida apenas a parcela relativa à demanda contratada de potência efetivamente utilizada pelo consumidor.
No julgamento do repetitivo, o relator, ministro Teori Zavaski (falecido), explicou que, para efeito de base de cálculo de ICMS, o valor da tarifa a ser levado em conta é o correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada no período de faturamento, segundo os métodos de medição definidos pela Aneel, independentemente de ser ela menor, igual ou maior que a demanda contratada.
Atualmente, o tema está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), no Recurso Extraordinário 593.824-7, sob a sistemática da repercussão geral. A Suprema Corte vai avaliar o mérito da questão que envolve a inclusão dos valores pagos a título de demanda contratada (demanda de potência) na base de cálculo do ICMS sobre operações envolvendo energia elétrica.
Tust e Tusd
Discussão semelhante também deve entrar em breve na pauta do STJ: a incidência do ICMS sobre a Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão (Tust) e sobre a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (Tusd). A Tust e a Tusd são tarifas pagas na compra da energia elétrica diretamente dos agentes de comercialização ou de geração no mercado livre de energia elétrica.
Em março de 2017, a Primeira Turma decidiu pela legalidade da incidência do ICMS na Tusd, cobrada nas contas de grandes consumidores que adquirem a energia elétrica diretamente das empresas geradoras. Por maioria, o colegiado entendeu ser impossível separar a atividade de transmissão ou distribuição de energia das demais, já que ela é gerada, transmitida, distribuída e consumida simultaneamente.
Segundo o ministro Gurgel de Faria, relator do REsp 1.163.020, a abertura e segmentação do mercado de energia elétrica, disciplinada pela Lei 9.074/1995, não invalida a regra de incidência do tributo nem repercute na base de cálculo, pois a lei apenas permite a atuação de mais de um agente econômico numa determinada fase do processo de circulação da energia elétrica.
“A partir dessa norma, o que se tem, na realidade, é uma mera divisão de tarefas – de geração, transmissão e distribuição – entre os agentes econômicos responsáveis por cada uma dessas etapas, para a concretização do negócio jurídico tributável pelo ICMS, qual seja, o fornecimento de energia elétrica ao consumidor final”, afirmou.
No entanto, a palavra final sobre o assunto será dada pela Primeira Seção, que ainda vai analisar a legalidade da inclusão das duas tarifas na base de cálculo do ICMS, em julgamento submetido ao rito dos recursos repetitivos, sob o Tema 986.
Ao admitir a afetação da controvérsia, o relator do caso na Primeira Seção, ministro Herman Benjamin, destacou a relevância da matéria para o orçamento dos estados, justificando o julgamento sob o rito dos recursos repetitivos para definir a tese que deve ser aplicada.
Consumidores livres
Em outra decisão envolvendo ICMS, a corte consolidou entendimento de que não incide o imposto nas operações financeiras realizadas no Mercado de Curto Prazo da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) com a participação dos consumidores livres. A decisão foi tomada pela Primeira Turma do STJ no julgamento do REsp 1.615.790, em fevereiro de 2018.
Para o relator, ministro Gurgel de Faria, como as operações do Mercado de Curto Prazo da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica envolvem as sobras e os déficits de energia contratados bilateralmente entre os consumidores livres e os agentes de produção e/ou comercialização, a CCEE tem de intermediar, de forma multilateral, os consumidores credores e devedores, realizando a liquidação financeira dessas posições, utilizando como parâmetro o Preço de Liquidação de Diferenças por ela apurado.
Gurgel explicou que as operações realizadas no mercado de curto prazo não caracterizam contratos de compra e venda de energia elétrica, mas, sim, cessões de direitos entre consumidores, mediante a celebração de contratos bilaterais em que o valor total do que foi efetivamente utilizado já sofreu a tributação do imposto estadual.
O ministro frisou que o fato de os consumidores operarem no mercado de curto prazo, como credores ou devedores em relação ao volume originalmente contratado, não os transforma em agentes do setor elétrico.
“Nenhum deles, consumidor credor ou devedor junto ao CCEE, pode proceder à saída dessa ‘mercadoria’ de seus estabelecimentos, o que afasta a configuração do fato gerador do imposto nos termos dos artigos 2º e 12 da Lei Complementar 87/1996”, observou.
Gurgel lembrou que o STJ já fixou entendimento de que o ICMS não incide sobre disposições contratuais, mas apenas sobre o efetivo consumo de energia elétrica e de demanda de potência (REsp 960.476).
Diante disso, segundo o ministro, a tributação do ICMS quando da aquisição da mercadoria já se deu antecipadamente em relação a toda energia elétrica a ser consumida em razão desse contrato bilateral, quer diretamente pelo próprio adquirente, quer pelo cessionário que dele adquiriu as sobras, “sendo certo que a incidência do imposto em face da cessão configura nova e indevida tributação sobre um mesmo fato gerador”.
Empréstimo compulsório
Em setembro de 2019, também sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 963), a Primeira Seção decidiu que não cabe execução regressiva proposta pela Eletrobras contra a União em razão da condenação ao pagamento das diferenças na devolução do empréstimo compulsório sobre o consumo de energia elétrica ao particular contribuinte. Para o colegiado, ficou configurada a responsabilidade solidária subsidiária da União pelos valores a serem devolvidos na sistemática do empréstimo compulsório.
O empréstimo compulsório sobre o consumo de energia elétrica foi instituído em 1962, pela Lei 4.156/1962, com o objetivo de expandir e melhorar o setor elétrico brasileiro. O valor foi cobrado a partir de 1964, em troca de obrigações da Eletrobras resgatáveis em dez anos.
Em 2009, o STJ tratou das diferenças de juros e correção monetária devidas na devolução do empréstimo compulsório (Temas 64 a 73).
Dez anos depois, o tribunal teve de voltar ao tema. Segundo o relator da controvérsia analisada recentemente, ministro Mauro Campbell Marques, a Eletrobras foi acionada repetidamente para o cumprimento de sentença dos julgados anteriores e agiu em regresso contra a União em todas essas ações, sob o argumento de que cada qual seria responsável por metade da dívida.
O ministro explicou que, realmente, o artigo 4°, parágrafo 3°, da Lei 4.156/1962 prevê que a União, ao lado da Eletrobras, é responsável solidária perante o credor pelos valores da devolução do compulsório.
Porém, ao apreciar o REsp 1.583.323, Mauro Campbell Marques entendeu que a responsabilidade da União deve ser buscada na própria lei do empréstimo, a partir de uma interpretação sistemática do conjunto normativo e histórico envolvido na elaboração do artigo 4°, parágrafo 3°, da Lei 4.156/1962.
Para o ministro, o dispositivo deve ser interpretado no sentido da responsabilidade solidária subsidiária da União, uma vez que a sociedade de economia mista conta com capital constituído de recursos públicos e privados, tendo sido criada para realizar atividade própria da União – seu ente criador –, que poderia executar tais atividades diretamente.
Campbell explicou que, diante da autonomia da Eletrobras, a incursão no patrimônio do ente criador somente poderia ocorrer em caso de insuficiência do patrimônio da criatura, já que a União seria garantidora dessa atividade.
“Como o caso é de responsabilidade solidária subsidiária, inexiste o direito de regresso da Eletrobras contra a União, pois esta somente é garantidora, perante o credor, nas situações de insuficiência patrimonial da empresa principal devedora”, concluiu.
Interrupção de fornecimento
Nas hipóteses que envolvem o consumo doméstico de energia elétrica, o STJ entende que a divulgação da suspensão do fornecimento por meio de emissoras de rádio, dias antes da interrupção do serviço, satisfaz a exigência de aviso prévio prevista no artigo 6º, parágrafo 3º, da Lei 8.987/1995.
No julgamento do REsp 1.270.339, o tribunal confirmou ser legítima a interrupção do fornecimento de energia elétrica por questões de ordem técnica, de segurança das instalações ou, ainda, em virtude da falta de pagamento por parte do usuário, desde que haja o devido aviso prévio pela concessionária sobre o possível corte.
A controvérsia analisada envolveu concessionária de energia que avisou os consumidores sobre o desligamento temporário da energia por meio de mensagem veiculada em três emissoras de rádio. Ao isentar a concessionária de pagamento de reparação, o relator do caso, ministro Gurgel de Faria, considerou que a empresa atendeu o requisito legal de avisar previamente aos consumidores.
Segundo o ministro, como a norma legal não explicita a forma como deve ocorrer o aviso de interrupção do fornecimento motivada por problemas técnicos, então a divulgação do comunicado em emissoras de rádio, dias antes da suspensão, satisfaz a exigência legal.
Corte de energia
Quando se trata de corte de energia elétrica por falta de pagamento, a jurisprudência do STJ prevê três cenários possíveis: consumo regular, simples mora do consumidor; recuperação de consumo por responsabilidade atribuível à concessionária; e recuperação de consumo por responsabilidade atribuível ao consumidor, normalmente fraude do medidor de energia.
Em relação à última hipótese, o STJ tem vedado o corte de energia quando a fraude for detectada unilateralmente pela concessionária. Porém, é possível a suspensão do serviço se o débito pretérito por fraude do medidor for apurado com a presença do contraditório e da ampla defesa.
A Primeira Seção, ao julgar o Tema 699 dos recursos repetitivos (REsp 1.412.433), estabeleceu que, na hipótese de débito estrito de recuperação de consumo efetivo por fraude no medidor atribuída ao consumidor, desde que apurado em observância aos princípios do contraditório e da ampla defesa, é possível o corte administrativo do fornecimento de energia elétrica, mediante prévio aviso ao consumidor, pelo inadimplemento do consumo recuperado correspondente ao período de 90 dias anterior à constatação da fraude, contanto que seja executado o corte em até 90 dias após o vencimento do débito, sem prejuízo do direito de a concessionária utilizar os meios judiciais ordinários de cobrança da dívida, inclusive antecedente aos mencionados 90 dias de retroação.
“O não pagamento dos débitos por recuperação de efetivo consumo por fraude ao medidor enseja o corte do serviço, assim como acontece para o consumidor regular que deixa de pagar a conta mensal (mora), sem deixar de ser observada a natureza pessoal (não propter rem) da obrigação, conforme pacífica jurisprudência do STJ”, explicou o relator, ministro Herman Benjamin.
Furto
Na esfera penal, o tribunal também tem decisões que envolvem o assunto. Para o STJ, nos casos de furto de energia elétrica, diferentemente do que acontece na sonegação fiscal, o pagamento do valor subtraído antes do recebimento da denúncia não permite a extinção da punibilidade.
Nessas hipóteses, a manutenção da ação penal tem relação com a necessidade de coibir ilícitos contra um recurso essencial à população. Além disso, em razão da natureza patrimonial do delito, é inviável a equiparação com os crimes tributários, nos quais é possível o trancamento da ação penal pela quitação do débito.
A tese foi fixada em março de 2019 pela Terceira Seção, que pacificou a jurisprudência da corte sobre o tema ao julgar o RHC 101.299, superando o entendimento divergente segundo o qual a extinção de punibilidade prevista no artigo 34 da Lei 9.249/1995 para os crimes tributários também poderia ser aplicada ao furto de energia.
“O papel do Estado, nos casos de furto de energia elétrica, não deve estar adstrito à intenção arrecadatória da tarifa. Deve coibir ou prevenir eventual prejuízo ao próprio abastecimento elétrico do país, que ora se reflete na ausência ou queda do serviço público, ora no repasse, ainda que parcial, do prejuízo financeiro ao restante dos cidadãos brasileiros”, apontou o autor do voto que prevaleceu no julgamento, ministro Joel Ilan Paciornik.
Medidor adulterado
Para o STJ, a conduta de alterar o medidor de energia para que não marque corretamente o consumo caracteriza o crime de estelionato.
Na decisão dada pela Quinta Turma, foi rejeitado o recurso (AREsp 1.418.119) no qual os réus sustentavam a atipicidade da conduta sob o argumento de que esse crime exigiria a indução de uma pessoa a erro, como descrito no artigo 171 do Código Penal – o que não teria ocorrido no caso.
Duas pessoas alteraram o medidor de energia de um hotel, colocando uma espécie de gel no equipamento para que marcasse menos do que o consumo verdadeiro de energia. Ambos foram denunciados e condenados por estelionato.
O ministro Joel Ilan Paciornik, relator do recurso, alertou que o caso é diferente dos processos que envolvem a figura do “gato”, em que há subtração e inversão da posse do bem (energia elétrica) a partir da instalação de pontos clandestinos.
“Estamos a falar em serviço lícito, prestado de forma regular e com contraprestação pecuniária, em que a medição da energia elétrica é alterada, como forma de burla ao sistema de controle de consumo – fraude – por induzimento em erro da companhia de eletricidade, que mais se adequa à figura descrita no tipo elencado no artigo 171 do Código Penal (estelionato)”, justificou o relator.