A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou nulo o registro da marca Fogo Olímpico – usada por uma empresa fabricante de álcool –, em razão da proteção conferida pelo ordenamento jurídico brasileiro aos sinais relacionados às Olimpíadas, os quais somente podem ser reproduzidos ou imitados mediante autorização do Comitê Olímpico Brasileiro (COB).
O recurso ao STJ teve origem em ação ajuizada pelo COB contra a empresa e o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), com pedido de declaração da nulidade do registro da marca Fogo Olímpico. O comitê alegou ter direito privativo do uso de símbolos olímpicos e das expressões “jogos olímpicos” e “olimpíadas”.
O juízo de primeiro grau e o Tribunal Regional Federal da 2ª Região negaram o pedido, entendendo que as atividades desenvolvidas pelas partes são totalmente distintas e por isso deveria prevalecer o princípio da especialidade – que assegura a proteção de marca dentro do mesmo ramo de atividade.
Vedação legal
O relator do recurso, ministro Luis Felipe Salomão, explicou que o registro da marca confere ao seu titular o direito de uso exclusivo do signo em todo o território nacional e, consequentemente, a prerrogativa de impedir terceiros de usarem sinais idênticos ou semelhantes.
Ele lembrou que dois princípios limitam essa proteção: o da especialidade (ou especificidade) e o da territorialidade. O primeiro autoriza a coexistência de marcas idênticas, desde que os respectivos produtos ou serviços pertençam a ramos de atividades diversos (exceção para as marcas de alto renome e para os casos de diluição de marca). Já o segundo prevê que a proteção das marcas registradas se limita ao território nacional, exceção feita para as marcas notoriamente conhecidas.
Segundo o ministro, a distintividade é condição fundamental para o registro da marca, razão pela qual a Lei 9.279/1996 enumera vários sinais não registráveis (artigo 124, inciso VI). O inciso XIII do mesmo artigo – observou – preceitua que não podem ser registrados como marca “nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural (…), salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento”.
Para o ministro, tal norma retrata hipótese de vedação ao registro de designações e símbolos relacionados a evento esportivo, o que inviabiliza “a utilização do termo protegido em qualquer classe” sem a anuência da autoridade competente ou da entidade promotora do evento.
Propriedade exclusiva
Em complemento, Salomão ressaltou que a Lei 9.615/1998 – conhecida como Lei do Desporto ou Lei Pelé – conferiu às entidades de administração ou prática desportiva a propriedade exclusiva das denominações e dos símbolos que as identificam, sendo tal proteção válida em todo o território nacional, por tempo indeterminado, sem a necessidade de registro ou averbação no órgão competente.
De acordo com o ministro, a Lei Pelé conferiu ao COB – associação civil de natureza desportiva filiada ao Comitê Olímpico Internacional – a propriedade exclusiva de seus símbolos e das denominações “jogos olímpicos” e “olimpíadas”, sendo vedado o registro e o uso, para qualquer fim, de imitação ou reprodução de tais signos distintivos sem a prévia autorização.
“Ressoa inequívoca a existência de proteção especial, em todos os ramos de atividade e por tempo indeterminado, dos sinais integrantes da ‘propriedade industrial olímpica’, cujo reconhecimento (ex lege) como marcas de alto renome (exceção ao princípio da especialidade) decorre da incontroversa boa reputação e do acentuado magnetismo do megaevento esportivo, consagrado mundialmente” – afirmou o magistrado.
Em sua avaliação, diante da popularidade e da relevância socioeconômica de eventos esportivos como as Olimpíadas, a proibição do registro e do uso dos respectivos signos distintivos em qualquer ramo de atividade – sem a anuência prévia da entidade titular do direito de propriedade imaterial – tem o objetivo de evitar a associação comercial indevida, potencialmente ensejadora de aproveitamento parasitário ou de diluição da distintividade dos símbolos ou nomes relacionados aos jogos.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE NULIDADE DE REGISTRO DE MARCA AJUIZADA PELO COMITÊ OLÍMPICO BRASILEIRO – COB. “FOGO OLÍMPICO” PARA IDENTIFICAR ÁLCOOL E ÁLCOOL ETÍLICO.
1. Como de sabença, a distintividade é condição fundamental para o registro da marca, razão pela qual a Lei 9.279⁄1996 enumera vários sinais não registráveis, tal como aqueles de uso comum, genérico, vulgar ou meramente descritivos, porquanto desprovidos de um mínimo diferenciador que justifique sua apropriação a título exclusivo (artigo 124, inciso VI).
2. De outro lado, o inciso XIII do mesmo artigo 124 preceitua que não são registráveis como marca “nome, prêmio ou símbolo de evento esportivo, artístico, cultural, social, político, econômico ou técnico, oficial ou oficialmente reconhecido, bem como a imitação suscetível de criar confusão, salvo quando autorizados pela autoridade competente ou entidade promotora do evento”.
3. Tal norma retrata hipótese de vedação absoluta de registro marcário de designações e símbolos relacionados a evento esportivo — assim como artístico, cultural, social, político, econômico ou técnico — que seja oficial (realizado ou promovido por autoridades públicas) ou oficialmente reconhecido (quando organizado por entidade privada), o que inviabiliza “a utilização do termo protegido em qualquer classe” sem a anuência da autoridade competente ou da entidade promotora do evento.
4. Em complemento à LPI, sobreveio a Lei 9.615⁄1998 — apelidada de Lei Pelé —, que, em seu artigo 87, conferiu às entidades de administração do desporto ou de prática esportiva a propriedade exclusiva das denominações e dos símbolos que as identificam, preceituando que tal proteção legal é válida em todo o território nacional, por tempo indeterminado, sem necessidade de registro ou averbação no órgão competente.
5. Em observância ao compromisso assumido pelo Estado brasileiro no Tratado de Nairóbi sobre Proteção do Símbolo Olímpico (ratificado pelo Decreto 90.129⁄1984), a citada Lei Pelé estabeleceu, em seu artigo 15, que o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) – associação civil de natureza desportiva filiada ao Comitê Olímpico Internacional (COI) – detém a propriedade exclusiva dos símbolos olímpicos (a exemplo dos aros interligados representativos dos cinco continentes; da tocha e da pira olímpicas; do hino; das mascotes; do lema; e das medalhas), bem como das denominações “jogos olímpicos” e “olimpíadas”, sendo vedado o registro e o uso, para qualquer fim, de sinal que consubstancie imitação ou reprodução dos referidos signos distintivos sem a prévia autorização do titular.
6. Consequentemente, procedendo-se à interpretação sistemática do ordenamento jurídico — Decreto 90.129⁄1984; artigo 124, inciso XIII, da Lei 9.279⁄1996; e artigos 15, §§ 2º e 4º, e 87 da Lei 9.615⁄1998 (todos anteriores ao depósito do pedido de registro da marca debatida nos autos) —, ressoa inequívoca a existência de proteção especial, em todos os ramos de atividade e por tempo indeterminado, dos sinais integrantes da “propriedade industrial Olímpica”, cujo reconhecimento (ex lege) como marcas de alto renome (exceção ao princípio da especialidade) decorre da incontroversa boa reputação e do acentuado magnetismo do megaevento esportivo, consagrado mundialmente e orientado pela filosofia de vida chamada Olimpismo.
7. Diante da popularidade e da relevância socioeconômica de eventos esportivos como as Olimpíadas, a proibição do registro e do uso dos respectivos signos distintivos em qualquer ramo de atividade — sem a anuência prévia da entidade titular do direito de propriedade imaterial — tem por escopo evitar a associação comercial indevida (com marcas, produtos ou serviços de terceiros), potencialmente ensejadora de aproveitamento parasitário ou de diluição da distintividade dos símbolos ou nomes relacionados aos Jogos, cuja realização periódica depende, sobremaneira, da obtenção de vultosos recursos financeiros mediante contratos de patrocínio ou de licenciamento pautados na expectativa de lucros decorrentes da grande exposição midiática.
8. Na hipótese dos autos, o COB ajuizou ação de nulidade do registro da marca nominativa “FOGO OLÍMPICO” (821.741.837) para identificar álcool e álcool etílico, referente à classe NCL(8) 01 (substâncias químicas destinadas à indústria). O pedido de registro da referida marca foi depositado em 8.6.1999, tendo sido concedido pelo INPI em 16.9.2003 (fl. 203).
9. De acordo com fotografia descrita no voto vencido (fls. 299 e 415), observa-se que, além da expressão “FOGO OLÍMPICO”, consta da embalagem o desenho dos aros olímpicos e da tocha olímpica, o que configura evidente imitação ideológica dos símbolos titularizados pelo COB.
10. Diante desse quadro, deve ser reconhecida a nulidade do registro marcário, tendo em vista: (i) a proteção especial, em todos os ramos de atividade, conferida pelo ordenamento jurídico brasileiro aos sinais integrantes da “propriedade industrial Olímpica”, que não podem ser reproduzidos ou imitados por terceiros sem a autorização prévia do COB; (ii) o necessário afastamento do aproveitamento parasitário decorrente do denominado “marketing de emboscada” pelo uso conjugado de expressão e símbolos olímpicos cujo magnetismo comercial é inegável; e (iii) o cabimento da aplicação da teoria da diluição a fim de proteger o titular contra a perda progressiva da distintividade dos signos olímpicos, cujo acentuado valor simbólico pode vir a ser maculado, ofuscado ou adulterado com a sua utilização em produto de uso cotidiano.
11. Recurso especial provido para julgar procedente a pretensão autoral, declarando nulo o registro da marca “FOGO OLÍMPICO”.