Para a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a anuência prévia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) constitui pressuposto de validade para a concessão de patente de produto ou processo farmacêutico.
Por maioria, o colegiado acompanhou o relator, ministro Luis Felipe Salomão, para quem o parecer negativo da agência reguladora, nos casos em que ficar demonstrada a contrariedade às políticas de saúde pública, tem caráter vinculativo, e não apenas de subsídio para a decisão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).
Com esse entendimento, os ministros deram provimento a recurso da Anvisa para reformar acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2) que considerou, em um pedido de patente negado pela agência reguladora, que ela havia extrapolado as suas atribuições legais, as quais seriam restritas ao exame de potencial risco à saúde.
Caráter do parecer negativo da Anvisa
O ministro Luis Felipe Salomão afirmou que, a partir da Lei 10.196/2001, que alterou a Lei da Propriedade Industrial, a concessão de patentes de fármacos foi condicionada à anuência prévia da Anvisa. Em abril de 2017 – acrescentou –, a Anvisa e o INPI editaram a Portaria Conjunta 1, para estabelecer os limites da competência da agência reguladora e o caráter (vinculante ou apenas subsidiário) do respectivo parecer desfavorável à pretensão de registro de patente.
Segundo Salomão, a portaria estabeleceu duas hipóteses: a atuação da agência reguladora limitada à verificação de potencial risco à saúde, conferindo-se caráter vinculativo ao parecer negativo; ou a possibilidade de que ela entre na análise da patenteabilidade, em se tratando de produto ou processo farmacêutico considerado de interesse para as políticas de medicamentos ou de assistência farmacêutica no âmbito do SUS, estipulando-se, contudo, o caráter meramente subsidiário do parecer negativo, a fim de que prevaleça a decisão técnica do INPI.
No entanto, para o relator, essa não é a melhor interpretação a ser atribuída ao artigo 229-C da Lei da Propriedade Industrial – o qual preceitua que a “concessão de patente para produtos e processos farmacêuticos dependerá da anuência prévia da Anvisa”. Na avaliação do ministro, essa condição deve ser entendida como pressuposto de validade da outorga de patentes farmacêuticas pelo INPI.
Garantia de assistência farmacêutica integral
“Em se tratando de pedido de patente de fármacos, compete à Anvisa apurar – previamente à análise do INPI – se a outorga de direito de exclusividade (de produção, uso, comercialização, importação ou licenciamento) poderá ensejar situação atentatória à saúde pública”, disse Luis Felipe Salomão.
A expressão “saúde pública” – ressaltou – tem significado mais amplo que saúde individual, compreendendo o conjunto de medidas preventivas e de controle de enfermidades, destinadas a garantir o bem-estar físico, mental e social de todos os membros da coletividade. Em seu voto, o magistrado lembrou o papel da Anvisa na regulação econômico-social do setor, o qual abrange a implementação e a coordenação de atividades destinadas a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta dos produtos e a competitividade entre os fornecedores.
“Assim, conquanto não se possa descurar das atribuições legais do INPI – principalmente a execução, no âmbito nacional, de normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica –, penso que, em relação às patentes de fármacos, não há falar em invasão institucional por parte da Anvisa, quando a recusa da anuência prévia estiver fundamentada em qualquer critério demonstrativo do impacto prejudicial da concessão do privilégio às políticas de saúde pública”, concluiu.
O recurso ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO JUDICIAL VOLTADA AO PROSSEGUIMENTO DE PEDIDOS DE PATENTES DE MEDICAMENTOS A DESPEITO DE PARECERES NEGATIVOS DA ANVISA. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 229-C DA LEI 9.279⁄1996.
1. Nos termos do artigo 229-C da Lei 9.279⁄1996, a concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos depende da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
2. Tal parecer positivo constitui pressuposto de validade da outorga de patentes farmacêuticas pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), inferência que decorre da conjugação da citada norma com o disposto no inciso I do artigo 18 do mesmo diploma legal, que privilegia a função econômico-social da propriedade industrial ao considerar não patenteáveis as invenções ou os modelos de utilidade contrários à saúde pública, cuja proteção insere-se entre as competências da agência reguladora.
3. A expressão “saúde pública” tem significado mais amplo que “saúde individual”: não se resume a tratamento ou a recuperação de doença, mas sim compreende o conjunto de medidas preventivas e de controle de enfermidades destinadas a garantir o bem estar físico, mental e social de todos e de cada um dos membros da coletividade, o que inclui ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica e a formulação de política de medicamentos.
4. A ampliação do conceito de saúde — para além da saúde individual — decorre de sua consagração como direito de todos a ser garantido pelo Estado, ao qual foi atribuído o dever de formulação e de execução de políticas econômicas e sociais voltadas à redução de riscos de doenças e de outros agravos e que assegurem acesso universal e igualitário aos “serviços públicos de saúde” e às chamadas “ações de saúde” para a promoção, a proteção e a recuperação do bem-estar físico e mental, de modo a garantir a dignidade humana, imperativo da Carta Magna de 1988.
5. Com o intuito de viabilizar a efetivação desse dever estatal, a Constituição criou o Sistema Único de Saúde (SUS), referência mundial no setor, que abrange as referidas ações e serviços públicos — apenas complementados por serviços privados — organizados em redes regionalizadas e hierarquizadas de modo a garantir o atendimento integral à população, com prioridade para os cuidados preventivos e curativos, sem prejuízo dos serviços assistenciais (artigo 198).
6. Ao definir o campo de atuação do SUS, o artigo 6º da Lei 8.080⁄1990 (Lei Orgânica da Saúde) revela que tais ações e serviços de relevância pública não se limitam à realização de consultas, exames e internações, mas também incluem ações de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (inciso I, alínea “d”) e a formulação de política de medicamentos (inciso VI).
7. A chamada assistência terapêutica integral consiste na distribuição de medicamentos — cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo a ser tratado — e na oferta de procedimentos terapêuticos, em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do SUS (artigo 19-M da Lei 8.080⁄1990, incluído pela Lei 12.401⁄2011).
8. Nesse cenário, o relevante papel desempenhado pela Anvisa na esfera da regulação econômico-social do setor de medicamentos extrai-se da competência prevista no inciso XXV do artigo 7º da Lei 9.782⁄1999 — voltada à correção de falhas de mercado, mediante o monitoramento da evolução dos preços de medicamentos — e do fato de a agência reguladora exercer a Secretaria-Executiva da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), órgão interministerial criado pela Lei 10.742⁄2003, que tem por objetivos a adoção, a implementação e a coordenação de atividades destinadas a promover a assistência farmacêutica à população, por meio de mecanismos que estimulem a oferta dos produtos e a competitividade entre os fornecedores.
9. O mister institucional da Anvisa no processo de concessão de patentes farmacêuticas não se confunde com o controle sanitário de medicamentos, drogas e insumos farmacêuticos, realizado no âmbito do procedimento de registro. “Outorga de patente” e “autorização sanitária” são coisas distintas. Interpretá-las como sinônimas significa esvaziar a opção legislativa encartada no artigo 229-C da LPI.
10. A diferença das perspectivas de análise da Anvisa e do INPI sobre o pedido de outorga de patente farmacêutica afasta qualquer conflito de atribuições. O INPI — vinculado atualmente ao Ministério da Economia — tem por objetivo garantir a proteção eficiente da propriedade industrial e, nesse mister, parte de critérios fundamentalmente técnicos, amparados em toda a sua expertise na área, para avaliar os pedidos de patente, cujo ato de concessão consubstancia ato administrativo de discricionariedade vinculada aos parâmetros abstratos e tecnológicos constantes da lei de regência e de seus normativos internos. Por outro lado, a Anvisa, detentora de conhecimento especializado no setor de saúde, no exercício do “ato de anuência prévia”, deve adentrar quaisquer aspectos dos produtos ou processos farmacêuticos — ainda que extraídos dos requisitos de patenteabilidade (novidade, atividade inventiva e aplicação industrial) — que lhe permitam inferir se a outorga do direito de exclusividade representará potencial prejuízo às políticas públicas do SUS voltadas a garantir a assistência farmacêutica à população.
11. Outrossim, não se constata conflito entre a interpretação ora conferida ao artigo 229-C da LPI e as normas dispostas no Acordo TRIPS, notadamente em razão das mitigações introduzidas em 2001, com a Declaração de Doha, prevendo que a sua implementação se coaduna com o direito de cada Nação de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso a medicamentos para todos.
12. Desse modo, reconhecendo-se a anuência prévia da Anvisa como pressuposto de validade da concessão de patente de produto ou processo farmacêutico, é certo que o respectivo parecer negativo, em casos nos quais demonstrada a contrariedade às políticas de saúde pública, não pode ser adotado apenas como subsídio à tomada de decisão do INPI. O caráter vinculativo da recusa de anuência é, portanto, indubitável.
13. Recurso especial da Anvisa provido para julgar improcedente a pretensão da Novartis de prosseguimento do trâmite de pedidos de patente, tendo em vista a validade e o caráter vinculativo da negativa de anuência exarada pela agência reguladora, nos limites de suas funções institucionais.