Em audiência pública na Câmara dos Deputados, representante da Câmara Indígena do MPF (6CCR) apontou motivos pelos quais o projeto de lei é considerado inconstitucional
A principal ameaça aos direitos indígenas em curso hoje no país é o Projeto de Lei 490/2007, que pretende incorporar a tese do marco temporal às demarcações de terras indígenas. Essa foi a avaliação da procuradora da República Marcia Zollinger, que representou a Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR) em audiência pública realizada nesta quinta-feira (9) na Câmara dos Deputados. O evento foi promovido pela Comissão dos Direitos da Mulher, em parceria com a Comissão dos Direitos Humanos e Minorias, para debater as violações e violências contra as mulheres indígenas no Brasil.
A procuradora afirmou que o projeto é inconstitucional por violar o art. 231 da Constituição, que garante aos indígenas a posse permanente das terras tradicionalmente ocupadas. Além disso, pontuou que o PL flexibiliza o usufruto exclusivo das terras indígenas, retirando desses povos as suas riquezas; dá aos ocupantes das terras indígenas o direito de permanecer nelas até que haja o pagamento de indenização pelas benfeitorias; e admite o contato com povos em isolamento voluntário em caso de utilidade pública, sem especificar o que será considerado utilidade pública. O PL 490/2007 foi aprovado em junho pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara e aguarda apreciação pelo Plenário.
Licenciamento – Além dele, a procuradora citou outras iniciativas legislativas que afetam as terras indígenas. O projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental é uma delas. De acordo com o texto aprovado pela Câmara dos Deputados (PL 4729/2004), somente serão consideradas para fins de licenciamento ambiental as terras indígenas já homologadas, ou seja, aquelas com decreto presidencial de homologação.
Marcia Zollinger alertou que, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), há 273 terras em processo de demarcação em etapas anteriores ao decreto homologatório. São territórios que já têm reconhecimento inicial dos seus limites e que serão desconsiderados no processo de licenciamento ambiental se as regras forem aprovadas. Além disso, há 536 reivindicações por territórios indígenas sem nenhuma providência na Funai. “Essas terras todas seriam simplesmente desconsideradas em processos de licenciamento ambiental de obras que as impactam. Isso é bem significativo”, ponderou a procuradora. No Senado, a proposta recebeu o número PLC 2.159/2021.
A procuradora do MPF mencionou ainda outras ameaças, como o Projeto de Lei 191/2020, que autoriza a mineração em terras indígenas; e o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 177/2021, que pretende autorizar o presidente da República a denunciar a Convenção 169 do OIT, ou seja, retirar o Brasil do tratado internacional. “Enquanto a gente deveria estar exigindo que o Parlamento aplicasse a Convenção 169, que determina que todos os povos sejam consultados a respeito das medidas legislativas que os impactem, a gente está fazendo o contrário”, ressaltou.
Para Zollinger, negar a participação dos povos indígenas nas decisões que os impactam é consolidar violências e violação de direitos que atingem as vidas, os territórios e os corpos desses povos desde a colonização, especialmente as mulheres indígenas. “Estamos falando da violência de retirar as mulheres dos seus territórios; de perpetrar danos e impactos nos territórios indígenas sem levá-las em consideração; de abrir os territórios dos povos indígenas à mineração e de fazer tudo isso sem sequer ouvi-las”.
Protagonismo – A procuradora também avaliou de forma positiva a presença de lideranças indígenas, as falas e as atividades promovidas no acampamento da II Marcha das Mulheres Indígenas, que estão em Brasília desde o início da semana para uma série de manifestações. “Se o movimento indígena é a maior potência do Brasil hoje, o movimento das mulheres indígenas é uma potenciação, ou seja, é uma multiplicação sucessiva de potências”, afirmou.
Em sua exposição, Marcia Zollinger destacou o protagonismo das mulheres na luta pelos direitos dos povos originários, especialmente na defesa de seus territórios. A procuradora afirmou que, assim como a natureza, essas mulheres – também chamadas de mulheres biomas – adotaram o enraizamento no solo e a adaptação às mudanças do ambiente como estratégia de sobrevivência. “É uma estratégia que não é de contra-ataque, é uma estratégia de resistência, de não se curvar jamais a essa predação. E isso essas mulheres biomas fazem muito bem, elas resistem e não se curvam jamais a essas violações de direitos que lhes são impostas”, explicou.
Zollinger acrescentou que, como filhas da terra, as mulheres biomas “são conhecedoras das suas raízes e da potência da sua semeadura”. Por isso, a defesa do território é um tema que adquire centralidade na sua luta. Segundo ela, apesar das presentes ameaças, as mulheres seguem resistindo. “A existência e a resistência das mulheres indígenas comprovam no dia a dia que elas não calarão a sua fala forte”, concluiu.