Identificação de menores infratores em matéria jornalística, mesmo que indireta, é vedada pelo ECA

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veda a veiculação de notícias que permitam a identificação de adolescentes infratores, inclusive nas hipóteses em que a matéria jornalística forneça elementos isolados que, apenas ao serem conjugados, possibilitem a identificação indireta do menor.

Com base nesse entendimento, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a recurso do Ministério Público do Distrito Federal (MPDF) contra acórdão que havia isentado revista semanal de multa por ter divulgado reportagem com elementos capazes de identificar menores infratores.

O colegiado, por unanimidade, determinou o retorno dos autos à origem para que sejam apreciados os pedidos subsidiários da apelação da editora e dos jornalistas no que diz respeito ao valor da condenação, que pode chegar a 30 salários mínimos.

Segundo o recurso do MPDF, a publicação permitiu a identificação indireta dos menores, por meio de fotos, imagens e nomes reais de suas mães.

Na primeira instância, o magistrado entendeu haver violação ao ECA, afirmando que a edição do periódico permitiu a identificação dos menores. Posteriormente, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) reformou a sentença e julgou improcedente a ação. Para o TJDF, a relevância da discussão sobre maioridade penal e o enfoque no estilo de vida dos infratores justificaria a exposição.

Segundo o relator no STJ, ministro Og Fernandes, a proteção do menor infrator contra a identificação em matérias jornalísticas – prevista no ECA de forma alinhada a normas internacionais – visa proteger a integridade psíquica do ser humano em formação e assegurar sua reintegração familiar e social.

Para o ministro, no caso julgado, “houve violação do artigo 247 do ECA, não só pela veiculação dos nomes e fotografia das genitoras, mas, também, pela associação dessas informações a imagens de tatuagens e outras partes dos corpos dos menores. Não houve, ao contrário do que afirma o acórdão recorrido, a preservação da identidade dos menores apenas porque se omitiram seus nomes e rostos”.

Efetiva e integral

De acordo com Og Fernandes, a vedação prevista no ECA proíbe a divulgação de qualquer elemento que permita a identificação direta ou indireta do adolescente que tenha cometido ato infracional. O ministro disse que o entendimento do STJ é de que a proteção ao adolescente infrator vai além do nome ou da imagem, devendo sua identidade ser preservada de forma efetiva e integral.

“É de se notar que a norma não afirma a necessidade de a identificação ser viabilizada ao público em geral; ao contrário, bastaria que a informação divulgada tivesse o potencial de, por exemplo, permitir a um vizinho, colega, professor ou parente do adolescente infrator o eventual conhecimento de seu envolvimento em situações de conflito com a lei para configurar-se a violação da garantia do ECA”, explicou.

O ministro lembrou que a revista tinha autorização da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal para a realização das entrevistas, mas não a autorização para identificação dos menores, conforme exigido pelo ECA. A revista ainda teria desconsiderado os termos da autorização, que, segundo os autos, eram claros no tocante à proibição de divulgar quaisquer elementos – fotos, nomes e sobrenomes – que pudessem identificar os jovens.

“A garantia do anonimato do adolescente, de sua intimidade, é o objetivo último da norma, seu objeto jurídico tutelado, e deve ser assegurado de forma efetiva, sem subterfúgios, em observância ao princípio da proteção integral da criança e do adolescente”, frisou o relator.

Imprensa

O ministro esclareceu que a restrição prevista no ECA não causa qualquer prejuízo à liberdade de imprensa. “Não se pode ter por razoável o afastamento de direitos expressamente positivados apenas porque determinada publicação ou parcela, mesmo que realmente majoritária, da sociedade considera os sujeitos tutelados indignos da proteção conforme conferida pela lei. É exatamente para a proteção da minoria contra abusos da maioria que historicamente se estabeleceram os direitos humanos”, frisou.

Segundo Og Fernandes, a relevância da discussão sobre a forma de punição de adolescentes que transgrediram uma lei não autoriza veículos da imprensa brasileira a violarem outra lei, no caso, o ECA.

O relator destacou que jornalistas, sindicatos e órgãos de imprensa nacional e internacional reconhecem que “o exercício da liberdade de imprensa coaduna-se com a promoção de valores humanos e, expressamente, preveem a preservação da privacidade e imagem, em particular de crianças, salvo em caso de interesse público. Este, no entanto, não pode ser confundido com o interesse do público, que facilmente se mistura com o sensacionalismo”.

O recurso ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA). ART. 247. MENOR INFRATOR. DIVULGAÇÃO POR MEIO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL. IDENTIFICAÇÃO INDIRETA. EFEITO QUEBRA-CABEÇAS. FILIAÇÃO. FOTOGRAFIAS. IMPOSSIBILIDADE. RELEVÂNCIA SOCIAL E ENFOQUE DA NOTÍCIA. IRRELEVÂNCIA JURÍDICA. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA CONFIGURADA.
1. No caso, a análise da pretensão recursal não exige o revolvimento de fatos e provas dos autos, mas apenas a ressignificação jurídica dos fatos conforme narrados objetivamente pelo acórdão recorrido. Precedentes.
2. Se o acórdão recorrido trata somente de forma indireta da matéria constitucional, não incide a Súmula 126⁄STJ. Precedentes. Hipótese em que o acórdão afirma o exercício regular de direitos constitucionais apenas após afastar as premissas de violação de lei infraconstitucional.
3. O ECA veda a veiculação de notícias que permitam a identificação de menores infratores, de forma alinhada a normas internacionais de proteção à criança e ao adolescente.
4. A proteção do menor infrator contra a identificação visa proteger a integridade psíquica do ser humano em formação e assegurar sua reintegração familiar e social.
5. A prática vedada pelo ECA é, em essência, a  divulgação, total ou parcial, de qualquer elemento, textual ou visual, que permita a identificação, direta ou indireta, da criança ou do adolescente a que se relacione ato infracional, sem a autorização, inequívoca e anterior, da autoridade judicial competente para a veiculação das informações.
6. Incide na prática interdita a veiculação de nome – inclusive iniciais –, apelido, filiação, parentesco ou residência do menor infrator, assim como fotografias ou qualquer outra ilustração referente a si que permita sua identificação associada a ato infracional. A norma impede o recurso a qualquer subterfúgio que possa resultar na identificação do menor.
7. Para configurar-se a conduta vedada, é desnecessário verificar  a ocorrência concreta de identificação, sendo bastante que a notícia veiculada forneça elementos suficientes para tanto. Dispensa-se, também, que a identificação seja possibilitada ao público em geral, bastando que se permita particularizar o menor por sua comunidade ou família.
8. A transgressão ocorre ainda na hipótese em que, apesar de isoladamente incólumes, os elementos divulgados permitam, se conjugados, a identificação indireta do menor.
9. Para a ocorrência da infração é despicienda a análise da intenção dos jornalistas ou o enfoque da notícia. A prática é vedada de forma objetiva e ocorre com a divulgação dos elementos identificadores.
10. Hipótese em que a reportagem: a) obteve autorização para realizar entrevistas com menores, não para divulgar suas identidades; b) publicou fotografias com tatuagens e partes dos corpos dos menores; c) veiculou fotografias e nomes completos das genitoras, associando-as aos menores.
11. Recurso especial provido, para reconhecer a ilicitude da conduta e determinar o retorno dos autos à origem a fim de que aprecie os pedidos subsidiários da apelação dos recorridos, no tocante ao valor da sanção, à luz das premissas ora estabelecidas.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 1636815

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