Falta de notificação adequada leva Primeira Seção a anular portaria que revogou anistia política de ex-militar

Por maioria de votos, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou portaria do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que, no ano passado, reverteu os efeitos de portaria anterior que havia reconhecido a condição de anistiado político a um ex-militar da Aeronáutica.

Para a maioria dos integrantes do colegiado, a notificação enviada pelo ministério ao anistiado não apontou, com clareza, as razões que levaram a administração a abrir o procedimento de revisão da anistia, impedindo o interessado de exercer plenamente o seu direito de defesa, com a consequente violação da garantia constitucional do contraditório e dos requisitos previstos no artigo 26, parágrafo 1º, VI, da Lei 9.784/1999.

A revisão do ato que, em 2005, reconheceu ao ex-militar a condição de anistiado ocorreu após o Supremo Tribunal Federal (STF), ao apreciar o Tema 839 da repercussão geral, decidir que a administração pública, no exercício de seu poder de tutela, pode rever a concessão de anistia a cabos da Aeronáutica afastados com fundamento na Portaria 1.104/1964, nos casos em que se comprovar a ausência de motivação exclusivamente política.

Segundo o ex-militar, entretanto, o ministério encaminhou a ele notificação vaga, apenas informando sobre a abertura do procedimento. Como resultado, o anistiado alegou que foi obrigado a fazer uma defesa às cegas, já que não teria ficado claro o motivo pelo qual a União decidiu anular a sua anistia.

O ministério, por sua vez, alegou que a notificação foi feita em consonância com a tese fixada pelo STF, e que o processo administrativo respeitou o contraditório e a ampla defesa, não havendo nulidade no procedimento que levou à anulação da portaria de 2005.

Atos interligados

O relator do mandado de segurança, ministro Sérgio Kukina, lembrou que a administração pública não é obrigada a revisar todas as concessões de anistia; porém, caso o faça, devem ser respeitadas algumas exigências, como a observância do regular processo administrativo e das garantias relativas ao devido processo legal.

Segundo o ministro, o processo administrativo envolve uma sequência de atos produzidos pelos interessados e pelos órgãos da administração, havendo um necessário encadeamento lógico entre eles. Dessa forma, com amparo na doutrina, o relator apontou que a existência de vício jurídico em ato anterior contamina todos os atos posteriores, na medida em que há entre eles um relacionamento lógico indissociável.

No caso dos autos, o magistrado apontou que, em vez de indicar precisamente os fatos e fundamentos legais – como exige a Lei 9.784/1999 –, a notificação se limitou a informar sobre a realização do procedimento de revisão da anistia, sem explicitar as razões que motivaram a decisão. Esse quadro gerou, para o relator, o vício de forma na notificação.

Defesa comprometida

Como desdobramento desse vício, Sérgio Kukina entendeu que houve o comprometimento do exercício do contraditório e da ampla defesa pelo anistiado, pois o alto grau de generalidade e de abstração da notificação lhe retirou o acesso às ferramentas adequadas de defesa.

“A leitura da notificação expedida ao anistiado político deixa ver, sim, os vícios de procedimento e a violação de princípios ancilares, na medida em que seu conteúdo, impreciso e vago, implicou violação da lei e inibiu, injustamente, a possibilidade de eficiente apresentação de argumentos em defesa dos interesses do anistiado, contrariando a orientação da Suprema Corte no Tema 839, na qual se louvou a própria administração para dar marcha à questionada revisão”, concluiu o ministro ao restabelecer a condição de anistiado ao ex-militar.

O recurso ficou assim ementado:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL ADMINISTRATIVO. PROCESSO DE REVISÃO DE ANISTIA DE MILITAR. CABO DA AERONÁUTICA. MANDADO DE SEGURANÇA.  ENUNCIADO APROVADO PELO STF EM REGIME DE REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 839. APLICAÇÃO IMEDIATA. DESNECESSIDADE DE PUBLICAÇÃO. NOTIFICAÇÃO GENÉRICA DO ANISTIADO. VÍCIO DE FORMA. PREJUÍZO AO EXERCÍCIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA. NULIDADE RECONHECIDA. ORDEM CONCEDIDA. RESTABELECIMENTO DA CONDIÇÃO DE ANISTIADO.
1. A ausência de publicação do respectivo acórdão não impede a imediata aplicação de enunciado aprovado pelo STF, em regime de repercussão geral. Nesse sentido: RE 1.215.332 AgR, Rel. Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, 1ª Turma, DJe 14⁄12⁄2020 e RE 1.129.931 AgR, Rel. Ministro GILMAR MENDES, 2ª Turma, DJe 27⁄08⁄2018.
2. Caso concreto em que se discute a validade de ato administrativo ministerial que determinou a anulação de anterior portaria, por meio da qual se havia declarado a condição de anistiado político do ora impetrante, ex-cabo da Aeronáutica.
3. Ao apreciar o Tema 839, com repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal aprovou o seguinte enunciado: “No exercício do seu poder de autotutela, poderá a Administração Pública rever os atos de concessão de anistia a cabos da Aeronáutica com fundamento na Portaria nº 1.104⁄1964, quando se comprovar a ausência de ato com motivação exclusivamente política, assegurando-se ao anistiado, em procedimento administrativo, o devido processo legal e a não devolução das verbas já recebidas“.
4. Como explica CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, “Nos procedimentos administrativos, os atos previstos como anteriores são condições indispensáveis à produção dos subsequentes, de tal modo que estes últimos não podem validamente ser expedidos sem antes completar-se a fase precedente. Além disto, o vício jurídico de um ato anterior contamina o posterior, na medida em que haja entre ambos um relacionamento lógico incindível” (Curso de direito administrativo. 30 ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 453).
5. Na espécie, a notificação endereçada ao anistiado não especificou, como de lei (art. 26, § 1º, VI, da Lei n. 9.784⁄99), os fatos e fundamentos de que deveria o impetrante se defender, ante a anunciada possibilidade de perder seu estatuto de anistiado político, daí resultando inequívoco vício de forma.
6. Em indissociável desdobramento, restou também comprometida a amplitude do exercício do contraditório e da ampla defesa pelo autor (art. 5º, LV, da CF), notadamente porque o alto grau de generalidade e de abstração de sua notificação lhe subtraiu, pelo desconhecimento dos fatos e fundamentos ensejadores do procedimento revisional, o acesso às ferramentas de defesa constitucionalmente postas à sua disposição. Assiste-lhe razão, pois, quando diz ter sido chamado a fazer uma defesa “às cegas”. Não poderia ter se defendido eficazmente do oculto, do encoberto, do que não se deu a conhecer.
7. A tal propósito, conforme ensinamento de THIAGO MARRARA, “O contraditório é a premissa da defesa, daí porque andam inexoravelmente juntos. Não há reação ao desconhecido; não há, pois, defesa possível sem conhecimento do objeto processual, suas causas, elementos probatórios nem dos motivos a sustentar as decisões liminares ou finais. O contraditório enseja a divulgação, ativa ou a pedido, dos elementos que estimulam, inspiram e motivam as decisões, garantindo-se aos sujeitos por ela potencialmente afetados a faculdade de reações formais. Essa divulgação há de ser garantida, em situação extrema, mesmo em prejuízo do sigilo ou da restrição de acesso a informações sensíveis. Não por outra razão, a Lei de Acesso à Informação adequadamente prescreve que: ‘não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais’ (art. 21, caput).” (Princípios do Processo Administrativo. In Processo administrativo brasileiro – estudos em homenagem aos 20 anos da lei federal de processo administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2020, p. 89-90).
8. Ordem concedida, com o pleno e imediato restabelecimento do estatuto de anistiado político do ora impetrante.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): MS 26323

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