A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, decidiu que na ação anulatória de testamento o valor da causa pode ser fixado tendo como base o valor líquido do acervo patrimonial apurado a partir das primeiras declarações prestadas na ação de inventário dos bens deixados pelo testador, sendo vedada a fixação do valor da causa em quantia muito inferior àquela desde logo estimável.
Segundo o colegiado, ainda que a fixação por estimativa seja amplamente aceita pela jurisprudência do STJ, em especial nas hipóteses em que é incerto o proveito econômico pretendido com a ação, esse tipo de atribuição não significa discricionariedade ou arbitrariedade das partes em conferir à causa qualquer valor.
“O fato de o testamento não ter conteúdo econômico imediatamente aferível ou quantificável, dificultando a identificação sobre o exato valor desse negócio jurídico e, consequentemente, do exato valor da causa na ação que se pretende anulá-lo, não dispensa as partes do dever de atribuir à causa valor certo, ainda que baseado apenas em estimativa”, afirmou a relatora, ministra Nancy Andrighi.
Valor da causa que variou de mil a mais de um milhão de reais
No caso analisado, oito pessoas ajuizaram a ação anulatória de testamento, atribuindo à causa, sem que fosse especificado nenhum critério para a estimativa, o valor de mil reais. Após o juízo de primeiro grau ajustar este valor para R$ 1,6 milhão, o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL) o reduziu para R$ 1,3 milhão. Para o TJAL, este valor corresponderia à estimativa do valor líquido do acervo patrimonial deixado pelo testador.
No recurso dirigido ao STJ, os autores alegaram que, como não haveria conteúdo econômico imediato na ação anulatória de testamento, seria incabível a atribuição do valor da causa nos moldes feitos tanto pela primeira quanto pela segunda instância.
Contestaram, também, a aplicação de multa pela ausência de recolhimento de custas processuais na hipótese em que não houve deferimento da gratuidade judiciária e tampouco incidente de impugnação à gratuidade judiciária.
Valor extraído a partir das primeiras declarações na ação de inventário se aproxima do valor da causa
Ao analisar o caso, a ministra Nancy Andrighi lembrou que o testamento é um negócio jurídico unilateral por meio do qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial, de modo que a ação que pretenda anulá-lo terá como valor da causa, em regra, o valor do próprio negócio jurídico, à luz do artigo 259, V, do Código de Processo Civil (CPC) de 1973 (atual artigo 292, inciso II, do CPC/15).
Em seu voto, Nancy Andrighi rejeitou o recurso. A ministra explicou que, “embora o valor extraído a partir das primeiras declarações na ação de inventário de bens deixados pelo testador seja provisório e possa não representar, integralmente, o conteúdo econômico da ação anulatória de testamento, é ele que, do ponto de vista da indispensável necessidade de uma estimativa razoável, melhor representa o valor da causa na referida ação, especialmente diante do ínfimo, abusivo e desarrazoado valor atribuído à causa pelos autores da ação anulatória”.
Nancy Andrighi destacou, ainda, que os recorrentes tinham “inequívoco conhecimento” a respeito de um patrimônio considerável a ser partilhado, caso o testamento fosse anulado, “razão pela qual a estimativa do valor da causa em apenas R$ 1.000,00 revela-se desarrazoada, abusiva e desprovida de qualquer aderência em relação à hipótese”.
Multa prevista na Lei 1.060/1950 pressupõe indeferimento da gratuidade e má-fé
Quanto à imposição de multa pela ausência de recolhimento de custas processuais diante da ausência de deferimento de gratuidade e de impugnação à gratuidade formulada, a ministra Nancy Andrighi observou que “o prévio deferimento da gratuidade judiciária é, no CPC/15, um pressuposto indispensável para a incidência da referida penalidade”.
Ocorre que a multa aplicada no caso em julgamento, inicialmente em dez vezes o valor das custas e posteriormente reduzida para cinco vezes, foi arbitrada em sentença proferida em 4/12/2015, isto é, antes da entrada em vigor da nova legislação processual, quando a matéria era regulada pela Lei 1.060/50.
“A regra do artigo 4º, parágrafo 1º, da Lei 1.060/1950, revogada, mas vigente ao tempo da aplicação da penalidade, não condicionava a sua incidência ao prévio deferimento da gratuidade judiciária, de modo que poderia o juiz aplicá-la na revogação do benefício ou, desde logo, ao indeferir o benefício”, afirmou a ministra.
A relatora, por fim, destacou que o TJAL verificou, na hipótese, a existência de intenção dos autores de induzir o Poder Judiciário em erro, pleiteando o benefício de má-fé, pois os autores apresentam patrimônio incompatível com a afirmada “pobreza/necessidade” e sabiam-se capazes de arcar com os custos da demanda, contrariando frontalmente o que se provém de seu retrato social.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO ANULATÓRIA. TESTAMENTO. NEGÓCIO JURÍDICO UNILATERAL COM DISPOSIÇÕES DE CARÁTER PATRIMONIAL OU EXTRAPATRIMONIAL. VALOR DA CAUSA CORRESPONDENTE AO VALOR DO NEGÓCIO, COMO REGRA. AUSÊNCIA DE CONTEÚDO ECONÔMICO AFERÍVEL OU QUANTIFICÁVEL COM EXATIDÃO. NECESSIDADE DE ATRIBUIÇÃO DE VALOR CERTO À CAUSA. FIXAÇÃO DO VALOR DA CAUSA POR ESTIMATIVA. POSSIBILIDADE. VALOR QUE, TODAVIA, DEVE SER O MAIS PRÓXIMO POSSÍVEL DO CONTEÚDO ECONÔMICO. AUSÊNCIA DE DISCRICIONARIDADE OU ARBITRARIEDADE DAS PARTES EM ATRIBUIR À CAUSA QUALQUER VALOR, ESPECIALMENTE EM QUANTIA MUITO INFERIOR ÀQUELA ESTIMÁVEL. MULTA PELA AUSÊNCIA DE RECOLHIMENTO DAS CUSTAS EM VIRTUDE DE GRATUIDADE JUDICIÁRIA. CONDICIONAMENTO À CONCESSÃO E POSTERIOR REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO. ENTENDIMENTO APLICÁVEL AO CPC/15. ENTENDIMENTO INAPLICÁVEL ÀS HIPÓTESES REGULADAS PELA LEI Nº 1.060/50, QUE AUTORIZAVA O JUIZ A APLICAR A PENALIDADE NO INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE GRATUIDADE, DESDE QUE PRESENTE A MÁ-FÉ E O INTUITO DE INDUZIR O PODER JUDICIÁRIO EM ERRO.
1- Ação distribuída em 08/06/2015. Recurso especial interposto em 11/04/2019 e atribuído à Relatora em 03/12/2021.
2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) se, na ação anulatória de testamento, é admissível a atribuição do valor da causa tendo como base o valor líquido do acervo patrimonial apurado a partir das primeiras declarações prestadas na ação de inventário dos bens deixados pelo testador; (ii) se é admissível a imposição de multa pela ausência de recolhimento das custas processuais na hipótese em que não houve deferimento da gratuidade judiciária e nem tampouco incidente de impugnação à gratuidade judiciária.
3- O testamento é um negócio jurídico unilateral por meio do qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou extrapatrimonial, de modo que a ação que pretenda anulá-lo terá como valor da causa, em regra, o valor do próprio negócio jurídico, à luz do art. 259, V, do CPC/73 (atual art. 292, II, do CPC/15).
4- O fato de o testamento não ter conteúdo econômico imediatamente aferível ou quantificável, dificultando a identificação sobre o exato valor desse negócio jurídico e, consequentemente, do exato valor da causa na ação que se pretende anulá-lo, não dispensa as partes do dever de atribuir à causa valor certo, ainda que baseado apenas em estimativa, assim compreendida como o valor que se supõe seja o mais próximo possível do conteúdo econômico da pretensão deduzida.
5- A atribuição do valor à causa por estimativa não significa discricionariedade ou arbitrariedade das partes em conferir à causa qualquer valor, sendo vedada a fixação do valor da causa em quantia muito inferior àquela desde logo estimável.
6- Na hipótese, embora o valor extraído a partir das primeiras declarações na ação de inventário de bens deixados pelo testador seja provisório e possa não representar, integralmente, o conteúdo econômico da ação anulatória de testamento, é ele que, do ponto de vista da indispensável necessidade de uma estimativa razoável, melhor representa o valor da causa na referida ação, especialmente diante do ínfimo, abusivo e desarrazoado valor atribuído à causa pelos autores da ação anulatória.
7- Na vigência do CPC/15, a aplicação da multa de até dez vezes o valor das custas não recolhidas pelas partes está condicionada a prévia concessão da gratuidade judiciária e a posterior revogação do benefício, nos termos do art. 100, parágrafo único, da legislação processual em vigor.
8- As exigências de prévio deferimento e posterior revogação da gratuidade judiciária para fins de aplicação de multa pela fruição indevida do benefício, contudo, não se aplicam às hipóteses reguladas pela Lei nº 1.060/50, que, em seu art. 4º, § 1º, autorizava o julgador a aplicar a referida penalidade, desde logo, no indeferimento do pedido de gratuidade judiciária indevidamente formulado.
9- Hipótese em que a multa foi adequadamente aplicada antes da entrada em vigor do CPC/15, ainda na vigência do art. 4º, § 1º, da Lei nº 1.060/50, por ocasião do indeferimento do pedido de gratuidade formulado pelas partes, especialmente diante da existência do elemento volitivo consistente em induzir o Poder Judiciário em erro, pleiteando o referido benefício de má-fé.
10- Recurso especial conhecido e não provido.