O Supremo Tribunal Federal começou a discutir ontem (24), em audiência pública, os perigos envolvidos na extração, industrialização e comercialização do amianto devido aos riscos ambientais e à saúde. Embora o problema atinja toda a sociedade, o foco de boa parte das discussões está na saúde do trabalhador, e se revela em casos concretos que desembocam na Justiça do Trabalho em busca de reparação. A atuação do Judiciário na garantia dos direitos desses trabalhadores vem acompanhando a evolução do conhecimento e da legislação sobre o tema, somada à conscientização em relação a princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e aos direitos sociais do trabalhador.
Foi no início do século XX que pesquisadores começaram a observar um número significativo de mortes precoces e de problemas pulmonares em regiões de extração de amianto. O primeiro relato de morte de trabalhador por exposição ao mineral é de 1907, feito pelo médico inglês H. Montagne Murray. Ele detectou a relação causal entre o desenvolvimento de fibrose pulmonar e a manipulação de fios condutores de energia. Já o primeiro diagnóstico de asbestose data de 1924. Na década de 30, surgiram, também na Inglaterra, as primeiras leis que definiam a asbestose como doença relacionada ao trabalho.
Em 1986, a Organização Internacional do Trabalho aprovou a Convenção nº 162, que se propõe a fixar normas para a utilização segura do amianto. Aprovada na 72ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho daquele ano, o documento entrou em vigor no plano internacional em 1989. Um dos princípios gerais era o de que a legislação nacional dos países que a ratificassem deveria prescrever medidas para prevenir e controlar os riscos para a saúde oriundos da exposição profissional ao amianto e proteger os trabalhadores desses perigos. Previa, ainda, que essa legislação fosse submetida a revisão periódica, com base na evolução técnica e científica sobre o tema.
Normas regulamentadoras
No Brasil, as primeiras regras de proteção datam da década de 70. A Lei 6.514/1977 alterou os artigos da CLT relativos a segurança e medicina do trabalho (Capítulo V do Título II) para introduzir regras mais rigorosas voltadas à proteção dos trabalhadores, entre elas a obrigatoriedade do fornecimento, pelo empregador, de equipamentos de proteção individual (EPI). No ano seguinte, a Portaria 3.214/1978 do Ministério do Trabalho e Emprego fixou as Normas Regulamentadoras (NR) previstas na nova redação da CLT.
A introdução específica do amianto entre as normas de proteção ocorreu, de fato, a partir de 1991, com a ratificação da Convenção 162 da OIT pelo Decreto 126/1991 e pela inclusão, na Norma Regulamentadora nº 15 (NR 15) do MTE, do Anexo 12, que trata dos limites de tolerância para poeiras minerais em atividades nas quais os trabalhadores estão expostos ao amianto.
Insalubridade
A partir daí, começaram a surgir reclamações trabalhistas voltadas para o direito à insalubridade – primeiro passo no reconhecimento da necessidade de proteção mais efetiva dos trabalhadores expostos ao agente nocivo. Um processo ajuizado em 1994 na 1ª Vara do Trabalho de São José dos Pinhais (PR) chegou ao TST em 1997 (RR-385.106/97.6). Nele, o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Ladrilhos Hidráulicos, Produtos de Cimento e Artefatos de Cimento Armado de Curitiba, representando os trabalhadores da Multilajes Pré-Moldados de Concreto Ltda., pedia o reconhecimento do adicional de insalubridade.
O Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região (PR) deferiu o pedido com o entendimento de que, embora fosse obedecido o limite de tolerância previsto em lei, o manuseio do amianto, por si só, gera direito ao adicional. “Entre a tolerância da lei e o laudo pericial, deve prevalecer a opinião médica, até porque também é amparada na justiça e, pois, na lei em última análise”, afirmou o acórdão regional. No laudo, o perito defendia que as atividades que envolvem o manuseio do amianto deveriam “ser banidas do território nacional progressivamente, como já ocorreu em muitos países desenvolvidos”. Ao examinar recurso da Multilajes, o TST manteve o entendimento.
Dano moral
A Constituição da República de 1988 e, sobretudo, a Emenda Constitucional 45/2004 deram à matéria uma nova abordagem, ao atribuir à Justiça do Trabalho a competência para examinar casos de dano moral decorrente da relação de trabalho – entre eles os resultantes de acidentes. Ao mesmo tempo, equiparou-se a doença profissional ao acidente de trabalho. Abriu-se, então, um novo caminho para reparação aos trabalhadores. São numerosos, hoje, os casos de indenização a empregados – e, em muitos casos, aos seus herdeiros – vítimas das doenças decorrentes da exposição prolongada ao amianto.
“O pó impregnava todo o ambiente”
É o caso, entre tantos outros, de Nivaldo, que trabalhou, na década de 80, na Avibrás Indústria Aeroespacial S/A como operador de produção, montando componentes para foguetes e mísseis – feitos com com amianto. Em 2007, foi diagnosticado com mesotelioma, tipo agressivo de câncer de pleura comprovadamente ligado à exposição e à inalação de amianto. O caso de Nivaldo foi, segundo a advogada, o segundo diagnosticado na Avibrás.
Na reclamação trabalhista ajuizada na Vara do Trabalho de Jacareí (SP), o operário contou que o pó da usinagem do amianto “era tão fino e tão excessivo” que se infiltrava em todo o ambiente, impregnando os uniformes, corpos e vias respiratórias dos trabalhadores. Em abril de 2008, antes da prolação da sentença, a família noticiou a morte de Nivaldo, e seus herdeiros assumiram o pólo ativo do processo, que resultou numa condenação de R$ 200 mil por danos morais e R$ 100 mil por danos materiais.
A Avibrás interpôs, sucessivamente, recurso ordinário e embargos de declaração rejeitados pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (Campinas/SP), que também negou seguimento ao recurso de revista. Por meio de agravo de instrumento (AIRR-73400-92.2007.5.15.0023), tentou trazer a discussão para o TST, a fim de questionar o valor da indenização, mas a pretensão foi frustrada pela Quarta Turma, que negou provimento ao agravo.
Princípio da precaução
Caso semelhante foi examinado pela Sexta Turma, desta vez envolvendo a Saint-Gobain do Brasil Produtos Industriais e Para Construção Ltda. e a família de Ary, vítima, em 2003, de mesotelioma por contato prolongado com o amianto. A Saint-Gobain (antiga Brasilit), condenada a pagar indenização post mortem aos herdeiros, recorreu ao TST (RR-40500-98.2006.5.04.0281) argumentando não haver comprovação de culpa ou dolo que justificasse a condenação.
Os depoimentos retrataram que o empregado, cuja função era a de comprador, circulava com frequência dentro da fábrica, para verificar a quantidade de cimento e amianto para reposição, e sua sala ficava a 50m do depósito de amianto. Uma das testemunhas afirmou que, no período em que trabalhou na Saint-Gobain, o único EPI que recebeu “foi um par de botinas”.
O relator do recurso de revista da empresa, ministro Aloysio Corrêa da Veiga, manteve a condenação. “A omissão da empresa no cuidado com o meio ambiente seguro de seus empregados acarreta o reconhecimento da sua responsabilidade objetiva pelos eventos danosos que, no caso, não apenas eram presumíveis, mas também evitáveis”, afirmou.
O relator ressaltou que as preocupações atuais da sociedade quanto às questões ligadas a meio ambiente, condições de trabalho, responsabilidade social, valores éticos e morais e dignidade da pessoa humana “exigem do empregador estrita observância do princípio da precaução”. Trata-se, como explicou, de uma “obrigação de resultado”: o empregador tem o dever de antecipar e avaliar os riscos da atividade empresarial e a efetivação das medidas de precaução necessárias. “No Brasil, o amianto é permitido, embora não existam limites de tolerância suficientemente seguros para garantir a vida e a saúde daqueles que estão em contato diário com ele”, afirmou.
“Ninguém usava máscara”
Em maio deste ano, a Primeira Turma do TST examinou o caso de Enoque Pinheiro de Oliveira (AIRR-127500-11.2007.5.02.0006). Entre 1970 e 1977, ele trabalhou na fábrica da Eternit S/A – a maior empresa do mundo no ramo de exploração industrial do amianto – em Osasco (SP), como servente, ajudante de desintegração de amianto, ajudante de marcenaria e meio oficial eletricista. Como servente, Enoque varria e limpava a fábrica e carregava restos de massa de cimento-amianto. Como ajudante de desintegração, colocava o amianto sólido na máquina de moagem e depois armazenava o produto desintegrado em caixas, em meio a alta concentração do pó.
Em 1982, foi aposentado por invalidez. Em 1997, alertado por colegas sobre a nocividade do amianto, submeteu-se a diversos exames que confirmaram o diagnóstico de asbestose. No ano seguinte, ajuizou reclamação trabalhista buscando a responsabilização da Eternit pelas despesas com tratamento, pensão vitalícia e indenização por dano moral. A sentença da 6ª Vara do Trabalho de São Paulo deferiu os pedidos, fixando a indenização em R$ 20 mil.
Os laudos e depoimentos constataram que os operários aspiravam muita poeira no setor, e só passaram a receber máscaras a partir de 1977/1978, quando a legislação passou a exigir o fornecimento de EPIs. “Era uma máscara comum, e quando estava vencida iam até o almoxarifado para substituí-la, mas nem sempre tinham outra para reposição”, afirmou uma das testemunhas. “Era uma máscara pequena e que não prestava”, afirmou outra. Um terceiro operário, que trabalhou por 20 anos em todos os setores da fábrica, afirmou que “ninguém usava máscara”, que os exaustores “não funcionavam” e que, “quando estourava um saco de amianto, ficava tudo empoeirado”.
A Eternit vem recorrendo desde então, sem sucesso. Sustenta que não há nos autos “qualquer indício” de que Enoque “esteja sofrendo de qualquer constrangimento, dor, angústia, depressão ou tendo problemas psicológicos em consequência de sua suposta moléstia ocupacional”. Em maio, a Primeira Turma negou provimento a agravo de instrumento e, um mês depois, a embargos de declaração. Ainda inconformada, a empresa agora tenta, por meio de recurso extraordinário, levar o caso ao Supremo Tribunal Federal, alegando “a patente inconstitucionalidade do entendimento adotado e corroborado” pela Justiça do Trabalho.