A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, entendeu que a modulação de efeitos adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Tema 809 da repercussão geral não se aplica à hipótese de acordo firmado pelas partes anteriormente à tese, porém ainda pendente de sentença homologatória. Com base nesse entendimento, o colegiado reformou o acórdão que havia excluído quatro irmãos de um acordo de sucessão.
No curso da ação de inventário, os quatro irmãos e a companheira do falecido firmaram um acordo para a partilha de bens e direitos, requerendo conjuntamente a homologação judicial da avença.
Quase quatro anos após a celebração do acordo, mas ainda antes de sua homologação, o STF julgou o tema 809 e declarou inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros prevista no artigo 1.790 do Código Civil (CC), o qual havia embasado a ação de inventário e o acordo celebrado entre as partes.
Cerca de dois anos após a fixação da tese, a companheira do falecido pleiteou a exclusão dos irmãos e o deferimento integral da herança em seu favor, alegando que o regime sucessório agora vigente (artigo 1.829 do CC) assim impunha. O pedido foi acolhido pelo juízo de primeiro grau, em decisão confirmada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Cessação definitiva do litígio ocorreu com a celebração do acordo
A ministra Nancy Andrighi, relatora do recurso dos irmãos no STJ, observou que, ao declarar a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC, o STF modulou temporalmente a aplicação da tese, limitando sua aplicação aos processos em que ainda não tivesse havido o trânsito em julgado da sentença de partilha, de modo a tutelar a confiança e a conferir previsibilidade às relações finalizadas sob as regras antigas.
A relatora apontou que, como a modulação dos efeitos do precedente teve a finalidade de preservar as relações jurídicas já finalizadas, era importante avaliar se isso ocorrerá apenas com o trânsito em julgado da sentença de partilha ou se tais relações também podem ser finalizadas de outro modo – caso em que a modulação poderá ter outro marco temporal, sem implicar acréscimo de conteúdo ou desrespeito ao precedente.
Segundo a ministra, havendo uma autocomposição dos herdeiros, o momento da cessação definitiva do litígio entre eles não é o trânsito em julgado da sentença homologatória do acordo de partilha.
“Se partes capazes e concordes podem entabular acordo de partilha de bens mediante escritura pública (artigo 2.015 do CC), não há nenhuma razão para que o acordo de partilha de bens celebrado por partes capazes e concordes no curso de uma ação de inventário dependa de homologação judicial para produzir efeitos, ao menos entre os transatores”, declarou.
Arrependimento posterior ou oportunismo não invalidam o negócio jurídico
Nancy Andrighi ressaltou que o arrependimento posterior ou o simples oportunismo de uma das partes não são causas de invalidade ou de ineficácia do negócio jurídico, cuja nulidade depende de requisitos específicos.
“A companheira firmou acordo de partilha de bens com os irmãos de seu falecido convivente e, sem nenhum pudor, não titubeou em pleitear a exclusão desses mesmos irmãos da sucessão, não coincidentemente, após o julgamento do Tema 809 pelo STF. Fê-lo, por óbvio, por vislumbrar, na superveniente declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790, a possibilidade de obter uma situação mais vantajosa do que aquela que havia pactuado de forma livre e expressa”, concluiu a relatora ao dar provimento ao recurso especial.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DAS SUCESSÕES. AÇÃO DE INVENTÁRIO E PARTILHA. CELEBRAÇÃO DE ACORDO ENTRE AS PARTES, CONVIVENTE SUPÉRSTITE E COLATERAIS DO FALECIDO. SUPERVENIÊNCIA DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1.790 DO CC/2002 PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (TEMA 809). MODULAÇÃO DE EFEITOS. APLICABILIDADE AOS PROCESSOS JUDICIAIS EM QUE NÃO TENHA HAVIDO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE PARTILHA. INTERPRETAÇÃO DO PRECEDENTE À LUZ DE SUA RATIO DECIDENDI. IDENTIFICAÇÃO DE HIPÓTESES NÃO CONTEMPLADAS OU QUE NÃO SE AMOLDAM AO PRECEDENTE. POSSIBILIDADE. FIXAÇÃO, COMO MARCO TEMPORAL, DO TRÂNSITO EM JULGADO DA SENTENÇA DE PARTILHA QUE DIALOGA COM A SOLUÇÃO HETEROCOMPOSITIVA DO LITÍGIO ENTRE OS HERDEIROS. REPRESENTAÇÃO DA CESSAÇÃO DEFINITIVA DA RELAÇÃO JURÍDICA. APLICABILIDADE DESSE ENTENDIMENTO À SOLUÇÃO AUTOCOMPOSITIVA. IMPOSSIBILIDADE. CONCLUSÃO E FINALIZAÇÃO DO INVENTÁRIO QUE, NA HIPÓTESE DE ACORDO, OCORRE COM A CELEBRAÇÃO DA AVENÇA. SOLUÇÃO AUTOCOMPOSITIVA QUE SE ORIENTA A PARTIR DO PRINCÍPIO DO AUTORREGRAMENTO DA VONTADE. PRODUÇÃO DE EFEITOS INTERPARTES IMEDIATAMENTE, AINDA QUE AUSENTE REGRA EXPRESSA CONFERINDO EXECUTORIEDADE IMEDIATA. HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL CUJA FINALIDADE É VINCULAR O JUIZ, APÓS O EXAME DOS REQUISITOS FORMAIS E PROCESSUAIS. PUBLICIDADE E EFICÁCIA EM RELAÇÃO A TERCEIROS QUE NÃO SE CONFUNDE COM A VINCULAÇÃO DAS PARTES. POSSIBILIDADE DE AS PARTES PARTILHAREM OS BENS EXTRAJUDICIALMENTE QUE REAFIRMA A DISPENSABILIDADE DA HOMOLOGAÇÃO JUDICIAL COMO CONDIÇÃO DE VALIDADE OU EFICÁCIA DO ACORDO. MODULAÇÃO DE EFEITOS NO TEMA 809/STF QUE TEM POR FINALIDADE TUTELAR A SEGURANÇA JURÍDICA, A CONFIANÇA E A PREVISIBILIDADE DAS RELAÇÕES, MAS NÃO PREMIAR AS CONDUTAS CONTRADITÓRIAS, A PROIBIÇÃO AO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM E A MÁ-FÉ. TESE, ADEMAIS, QUE VISA EQUIPARAR OS DIREITOS SUCESSÓRIOS ENTRE CONVIVENTES E CÔNJUGES, MAS NÃO PROÍBE QUE PARTES CAPAZES E CONCORDES DISPONHAM DO DIREITO MATERIAL DE MODO DISTINTO, INCLUSIVE NO MESMO SENTIDO DA REGRA DECLARADA INCONSTITUCIONAL.
1- Ação de inventário e partilha ajuizada em 10/04/2007. Recurso especial interposto em 21/01/2022 e atribuído à Relatora em 07/07/2022.
2- O propósito recursal é definir se é admissível a exclusão dos colaterais da sucessão na hipótese em que as partes firmaram acordo submetido ao juízo do inventário na vigência do art. 1.790 do CC/2002, mas ainda não homologado judicialmente quando sobreveio o julgamento do tema 809/STF, que declarou a inconstitucionalidade da referida regra.
3- Ao declarar a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 (tema 809), o Supremo Tribunal Federal modulou temporalmente a aplicação da tese para apenas “os processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha”, de modo a tutelar a confiança e a conferir previsibilidade às relações finalizadas sob as regras antigas (ou seja, às ações de inventário concluídas nas quais foi aplicado o art. 1.790 do CC/2002).
4- Embora as interpretações subsequentes da modulação de efeitos não devam acrescer conteúdo aquilo que o intérprete autêntico pretendeu, em caráter excepcional, proteger e salvaguardar, não se pode olvidar que determinadas hipóteses podem não ter sido contempladas pela modulação ou podem não se amoldar adequadamente à modulação.
5- Examinando-se a ratio decidendi do precedente firmado no julgamento do tema 809/STF, verifica-se que a modulação tem por finalidade preservar as relações finalizadas sobre as regras antigas (art. 1.790 do CC/2002), de modo que a eleição do marco temporal do trânsito em julgado da sentença de partilha dialoga perfeitamente com as hipóteses em que haverá solução heterocompositiva do litígio entre os herdeiros, pois esse será o momento em que, por decisão judicial meritória da qual não houve ou não cabe mais recurso, o litígio cessará em definitivo.
6- Para as hipóteses de solução autocompositiva, contudo, o momento da cessação definitiva do litígio entre os herdeiros, da finalização e da conclusão do inventário e da relação jurídica havida entre eles pode não ser o trânsito em julgado da sentença homologatória do acordo de partilha, especialmente quando as partes, capazes e concordes, transacionam sobre o direito disponível.
7- O art. 2.015 do CC/2002 não condiciona a produção de efeitos do acordo à prévia homologação judicial, não se inserindo essa hipótese no escopo da modulação de efeitos realizada no julgamento do tema 809/STF, uma vez que: (i) em se tratando de solução autocompositiva do litígio, vigora o princípio do autorregramento da vontade; (ii) ainda que ausente regra expressa, o acordo sobre direito disponível produz efeitos interpartes imediatamente, vinculando-as independentemente prolação de sentença homologatória, que vinculará o juiz após o exame dos requisitos formais e processuais e que tem por finalidade conferir publicidade e eficácia em relação a terceiros; (iii) se partes capazes e concordes podem entabular acordo de partilha de bens mediante escritura pública, por igual razão o acordo de partilha de bens celebrado por partes capazes e concordes no curso de ação de inventário não depende de homologação judicial para ser reputado como válido.
8- É igualmente importante destacar que a modulação de efeitos realizada pelo Supremo Tribunal Federal por ocasião do julgamento do tema 809 tem como base a tutela de valores caros ao ordenamento jurídico, como a segurança jurídica, a confiança e a previsibilidade das relações, mas não para tutelar as posturas contraditórias, o venire contra factum proprium e as condutas despidas de boa-fé, como na hipótese em uma das partes celebra acordo em determinadas bases, mas, diante da superveniente declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, insurge-se contra o acordo validamente celebrado.
9- A tese firmada no julgamento do tema 809/STF declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002 para conceder aos conviventes os mesmos direitos sucessórios que o art. 1.829 do CC/2002 concedia aos cônjuges, mas não proibiu que os herdeiros capazes e concordes livremente disponham sobre o acervo hereditário da forma que melhor lhes convier, inclusive de modo a retratar fielmente a regra declarada inconstitucional.
10- Recurso especial conhecido e provido.
Leia o acórdão no REsp 2.050.923.