A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a condenação de uma empresa de ônibus do Distrito Federal ao pagamento de indenização e pensão vitalícia a passageiro que teve as pernas amputadas após um acidente. Entretanto, por considerar que o valor fixado a título de danos estéticos pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) configurou julgamento ultra petita (além do pedido), o colegiado reduziu de R$ 200 mil para R$ 150 mil o montante da indenização.
De acordo com o processo, o motorista do ônibus não aguardou a descida do passageiro, que ficou com a perna esquerda prensada pelas portas do veículo e teve a direita arrastada. Em razão do acidente, o passageiro precisou amputar a perna direita e ficou com várias lesões no outro membro. No curso do processo, foi preciso amputar também a perna esquerda.
Em primeira instância, o juízo condenou a empresa a pagar R$ 50 mil a título de danos morais, além de R$ 80 mil por danos estéticos e pensão vitalícia de um salário mínimo. O TJDFT elevou o valor dos danos morais e estéticos para R$ 400 mil.
Por meio de recurso especial, a empresa questionou a condenação ao pagamento de duas próteses – em vez de uma, como pedido pela vítima –, bem como a indenização por danos estéticos em montante acima do requerido. A empresa também buscou reverter a condenação por danos morais.
Tribunal analisou fato superveniente
Relatora do recurso, a ministra Nancy Andrighi destacou que, conforme estabelecido no artigo 141 do Código de Processo Civil, o juiz deve decidir nos limites levados pelas partes ao processo, não podendo analisar questões não suscitadas. Além disso, apontou, o artigo 492 do CPC veda ao magistrado proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diferente do que foi demandado.
Por outro lado, a ministra lembrou que, conforme disposto no artigo 493, é dever do julgador levar em consideração, mesmo de ofício, fatos supervenientes que influenciem no julgamento da causa, sob pena de a prestação jurisdicional se tornar ineficaz ou não resolver adequadamente o litígio.
Em relação à prótese, Nancy Andrighi observou que, quando a ação foi ajuizada, a vítima havia amputado apenas a perna direita, mas, ao longo do processo, precisou amputar também a outra. No julgamento da apelação, o TJDFT considerou esse fato superveniente, sem que tivesse havido alteração do pedido ou da causa de pedir.
Quanto aos danos estéticos, a ministra ressaltou que o passageiro pediu R$ 150 mil, mas o tribunal local fixou essa verba em R$ 200 mil. Por isso, a magistrada entendeu que deveria ser retirado da condenação o montante de R$ 50 mil.
Tratamento longo e doloroso
Em seu voto, Nancy Andrighi enfatizou que o TJDFT fundamentou a indenização por danos estéticos na amputação dos membros inferiores, além de fixar ressarcimento por dano moral em virtude da perda dos membros e do longo e doloroso tratamento ao qual a vítima precisou se submeter. Esse contexto, para ela, justifica as indenizações nos patamares fixados pela corte distrital, retirando-se apenas o excesso do valor a título de danos estéticos.
“De fato, para além do prejuízo estético, a perda de dois importantes membros do corpo atinge a integridade psíquica do ser humano, trazendo-lhe dor e sofrimento em razão da lesão deformadora de sua plenitude física, com afetação de sua autoestima e reflexos no próprio esquema de vida, seja no âmbito do exercício de atividades profissionais, como nas simples relações do meio social”, concluiu a ministra.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. ACIDENTE EM COLETIVO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INOCORRÊNCIA. LEGITIMIDADE PASSIVA CONFIGURADA. NEXO DE CAUSALIDADE. REVOLVIMENTO DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 7/STJ. JULGAMENTO ULTRA PETITA COM RELAÇÃO À INDENIZAÇÃO POR DANOS ESTÉTICOS. DANO MORAL E ESTÉTICO. PRESENÇA. REVISÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. DESCABIMENTO. JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. CITAÇÃO. PENSÃO VITALÍCIA. CABIMENTO. MULTA POR EMBARBOS PROTELATÓRIOS. MANUTENÇÃO. JULGAMENTO: CPC/2015.
1. Ação de indenização por danos extrapatrimoniais e materiais ajuizada em 24/07/2013, da qual foi extraído o presente recurso especial interposto em 25/05/2020 e concluso ao gabinete em 10/02/2021.
2. O propósito recursal é decidir sobre a) a ocorrência de negativa de prestação jurisdicional, b) a legitimidade passiva da recorrente;
c) o nexo de causalidade entre a conduta do preposto da recorrente e o evento danoso; d) a existência de julgamento extra e ultra petita; e) a viabilidade de afastar-se a indenização por dano moral ou por dano estético e de reduzir os valores arbitrados a tais títulos; f) o termo inicial dos juros de mora incidentes sobre as indenizações por danos extrapatrimoniais; g) o pensionamento fixado na origem e a legalidade da sua vinculação ao salário mínimo; h) o abatimento dos descontos compulsórios e do benefício previdenciário do pensionamento vitalício; i) o cabimento da multa por embargos protelatórios.
3. A jurisprudência do STJ é firme no sentido de que não há ofensa ao art. 1.022 do CPC/15 quando o Tribunal de origem, aplicando o direito que entende cabível à hipótese, soluciona integralmente a controvérsia submetida à sua apreciação, ainda que de forma diversa daquela pretendida pela parte.
4. A teoria da asserção impõe que as condições da ação, entre elas a legitimidade passiva, sejam aferidas mediante análise das alegações delineadas na petição inicial. Precedentes. Na hipótese, das afirmações constantes da inicial, depreende-se, em abstrato, a legitimidade passiva da recorrente.
5. Alterar o decidido no acórdão impugnado, no que se refere ao liame de causalidade, exige o reexame de fatos e provas (Súmula 7/STJ).
6. Caso o juiz ultrapasse os limites do pedido e não se trate de hipótese excepcionada pela lei, a decisão será proferida com error in procedendo, caracterizando-se como ultra ou extra petita (arts.
141 e 492 do CPC/2015). No entanto, o art. 492 deve ser interpretado sistematicamente com a previsão do art. 493 do CPC/15, de forma a se extrair a norma de que o reconhecimento de fatos supervenientes que interfiram no julgamento justo da lide respeita integralmente os princípios da adstrição e da congruência, sobretudo porque não pode implicar alteração da causa de pedir. No particular, a circunstância superveniente considerada pela Corte estadual amputação da perna esquerda após a propositura da ação não alterou a causa de pedir. Ademais, pode-se concluir que a condenação ao pagamento da segunda prótese está contemplada no pedido genérico de condenação à reparação dos danos materiais constatados no curso do processo. Por outro lado, a condenação ao pagamento de indenização por danos estéticos em montante superior ao requerido na inicial configura julgamento ultra petita, sendo de rigor o afastamento do valor excedente.
7. Para além do prejuízo estético, a perda de dois importantes membros do corpo (os dois membros inferiores) atinge a integridade psíquica do ser humano, trazendo-lhe dor e sofrimento em razão da lesão deformadora de sua plenitude física, com afetação de sua autoestima e reflexos no próprio esquema de vida, seja no âmbito do exercício de atividades profissionais, como nas simples relações do meio social. Assim, estão caracterizados, no particular, o dano estético e moral.
8. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que a modificação do valor fixado a título de danos morais e estéticos somente é permitida quando a quantia estipulada for irrisória ou exagerada. Precedentes. Na espécie, tanto o fato em si quanto as consequências que ele ocasionou na vida da vítima são gravíssimas.
Conforme quadro fático cristalizado na origem, o preposto da recorrente fechou as portas do coletivo antes de o recorrido descer, de modo que a sua perna esquerda ficou prensada e a direita foi arrastada. O ocorrido culminou na amputação de ambos os membros inferiores, tornando o recorrido permanentemente incapaz para o exercício de atividade laboral. Nesse contexto, os valores arbitrados revelam-se razoáveis e adequados para compensar os árduos danos extrapatrimoniais suportados pela vítima.
9. Nos termos da jurisprudência uníssona desta Corte, em caso de responsabilidade contratual, os juros moratórios incidem a partir da citação.
10. O entendimento do STJ é no sentido de que o direito à pensão vitalícia previsto no art. 950 do CC/02 exige apenas a comprovação da redução da capacidade de trabalho, sendo prescindível a demonstração de exercício de atividade remunerada à época do acidente. Se a vítima não auferia renda, o valor da pensão vitalícia deve ser fixado em um salário mínimo. Precedentes.
11. O benefício previdenciário é cumulável com o pensionamento vitalício. Precedentes. Na hipótese, ademais, não há que se falar em dedução de quaisquer outros valores, até porque, os supostos descontos obrigatórios dizem respeito a quantias que, eventualmente, terão de ser desembolsadas pelo próprio recorrido.
12. É correta a aplicação da penalidade prevista no art. 1.026, § 2º, do CPC/2015 quando as questões tratadas foram devidamente fundamentadas na decisão embargada e ficou evidenciado o caráter manifestamente protelatório dos embargos de declaração.
13. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido.
Leia o acórdão no REsp 1.884.887.