A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a condenação de quatro pessoas por latrocínio, por entender que a morte da vítima em decorrência de um infarto agudo do miocárdio foi consequência da conduta dos criminosos. Eles invadiram a residência do idoso de 84 anos e o agrediram, amarraram e amordaçaram. Para a classificação do delito, o colegiado considerou irrelevantes as condições preexistentes de saúde, que indicaram doença cardíaca.
Segundo a relatora, ministra Laurita Vaz, para se imputar o resultado mais grave (no caso, latrocínio em vez de roubo majorado), basta que a morte seja causada por conduta meramente culposa, não se exigindo comportamento doloso.
“Por isso, é inócua a alegação de que não houve vontade dirigida com relação ao resultado agravador, porque, ainda que os pacientes não tenham desejado e dirigido suas condutas para obtenção do resultado morte, essa circunstância não impede a imputação a título de culpa“, afirmou a ministra ao rejeitar o pedido de desclassificação feito pela Defensoria Pública de São Paulo. O crime de latrocínio tem pena prevista de 20 a 30 anos; já o roubo seguido de lesão corporal grave, de 7 a 18 anos.
Segundo as informações processuais, os réus entraram na residência da vítima, que foi amarrada e agredida, falecendo no local em decorrência de um ataque cardíaco.
Ao analisar a apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve as condenações nos mesmos termos da sentença e registrou que os recorrentes assumiram o risco da possível morte da vítima, por se tratar de desdobramento causal previsível diante dos atos violentos praticados.
Ao STJ, a Defensoria Pública pleiteou a desclassificação do crime de latrocínio para o de roubo seguido de lesão corporal grave. De acordo com o entendimento da Defensoria, a vítima tinha histórico de doença cardíaca, o que representaria causa independente capaz de provocar a morte por si só.
Laudo comprova nexo causal entre conduta dos réus e resultado do crime
A ministra Laurita Vaz destacou que é válida a tese de nexo causal entre a ação dos réus e a morte da vítima após o infarto. Ela apontou que, entre outras provas analisadas pelo tribunal estadual, a relação causa-efeito foi demonstrada por meio de laudo atestando que o sofrimento durante o roubo pode ter colaborado para a morte da vítima.
“Considerando que a doença cardíaca, in casu, é concausa preexistente relativamente independente, não há como afastar o resultado mais grave (morte) e, por consequência, a imputação de latrocínio”, observou a relatora.
Dependência das causas para fins de tipificação
Ainda sobre o nexo causal, a ministra rebateu o argumento da defesa no sentido de a doença cardíaca ser uma causa preexistente total ou relativamente independente. Para ela, tal afirmação é incoerente, “pois ou a concausa é absolutamente independente ou é apenas relativamente independente”.
Laurita Vaz frisou a importância da distinção, especialmente na hipótese de relação de causalidade. Citando teoria, ela apontou que as causas absolutamente independentes sempre excluirão a imputação do resultado mais grave, mas as relativamente independentes nem sempre afastarão a imputação.
Quanto a esta última, a ministra destacou que, na hipótese de concausa relativamente independente preexistente ou concomitante à ação do criminoso, não haverá exclusão do nexo de causalidade.
“A própria defesa alega, na inicial, que a doença cardíaca da qual a vítima sofria seria uma concausa preexistente. Nesse sentido, apenas seria possível cogitar a exclusão do nexo de causalidade se essa enfermidade fosse a única causa que levou ao óbito da vítima (concausa absolutamente independente)”, fundamentou.
O recurso ficou assim ementado:
HABEAS CORPUS. LATROCÍNIO. PLEITO DESCLASSIFICATÓRIO. NÃO CABIMENTO. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE DOLO. RESULTADO AGRAVADOR QUE PODE SER IMPUTADO A TÍTULO DE CULPA. LAUDO PERICIAL. LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO. REVOLVIMENTO DO ACERVO PROBATÓRIO INCABÍVEL NA VIA ELEITA. CAUSA DA MORTE. INFARTO DO MIOCÁRDIO. VÍTIMA QUE SOFRIA DE DOENÇA CARDÍACA. CONCAUSA PREEXISTENTE RELATIVAMENTE INDEPENDENTE. NÃO AFASTAMENTO DO NEXO CAUSAL. PACIENTES QUE CRIARAM RISCO JURIDICAMENTE PROIBIDO E O CONCRETIZARAM. PENA-BASE. COMETIMENTO DO DELITO DURANTE CUMPRIMENTO DE PENA POR CRIME DIVERSO. FUNDAMENTO ADEQUADO. MOTIVOS DO DELITO. COMPRA DE DROGA. MOTIVAÇÃO INIDÔNEA. MULTIRREINCIDÊNCIA. CONFISSÃO. COMPENSAÇÃO INTEGRAL. NÃO CABIMENTO. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA, EM PARTE, APENAS PARA REDUZIR AS PENAS.
1. A despeito da controvérsia doutrinária a respeito da classificação do crime previsto no art. 157, § 3.º, inciso II, do Código Penal – se preterdoloso ou não – fato é que, para se imputar o resultado mais grave (consequente) ao autor, basta que a morte seja causada por conduta meramente culposa, não se exigindo, portanto, comportamento doloso, que apenas é imprescindível na subtração (antecedente). Portanto, é inócua a alegação de que não houve vontade dirigida com relação ao resultado agravador, porque, ainda que os Pacientes não tenham desejado e dirigido suas condutas para obtenção do resultado morte, essa circunstância não impede a imputação a título de culpa.
2. O sistema da persuasão racional, acolhido pelo ordenamento jurídico brasileiro, garante ao Julgador a livre apreciação da prova, desde que, evidentemente, o faça de maneira fundamentada. No caso, após analisar a conclusão do laudo – atestando que as agruras vivenciadas pela vítima podem ter colaborado para o resultado morte – e as demais provas carreadas aos autos, concluiu o Juízo Sentenciante haver nexo causal entre as condutas dos Réus e o resultado morte. Para desconstituir tal conclusão, seria imprescindível incursionar, verticalmente, no acervo probatório, o que, como se sabe, é incabível na estreita via do habeas corpus.
3. O art. 13, caput, do Código Penal, acolheu a teoria da equivalência das condições ou conditio sine qua non, ao prever que “[c]onsidera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. A aplicação da teoria em comento ao estudo das concausas implica concluir que as causas absolutamente independentes sempre excluirão a imputação do resultado mais gravoso, as relativamente independentes, nem sempre.
4. O Código Penal, em seu art. 13, § 1.º, prevê uma hipótese de exclusão da imputação – denominada por alguns de “rompimento do nexo causal” -, respondendo o agente apenas pelos atos já praticados.
Essa hipótese, porém, apenas tem cabimento quando a concausa, além de relativamente independente, também for superveniente à ação do agente, conduzindo, por si só, ao resultado agravador. Ou seja, se a concausa relativamente independente for preexistente ou concomitante à ação do autor, não haverá exclusão do nexo de causalidade.
5. No caso, o laudo pericial não atestou que a morte tenha sido causada exclusivamente pela doença cardíaca preexistente da vítima.
Ao contrário, consignou-se que o infarto “pode ter sido ajudado pelo stress sofrido na data do óbito, pois há s inais de violência e tortura encontrados no exame” – o que evidencia que a vítima apenas veio a falecer, exatamente, durante o crime praticado pelos Pacientes, que a agrediram severamente. Considerando que a doença cardíaca, in casu, é concausa preexistente relativamente independente, não há como afastar o resultado mais grave (morte) e, por consequência, a imputação de latrocínio.
6. Nem mesmo a aplicação da teoria da imputação objetiva, mencionada pela zelosa Defesa, conduziria a outra conclusão. Como se sabe, “[p]ara a teoria da imputação objetiva, o resultado de uma conduta humana somente pode ser objetivamente imputado a seu autor quando tenha criado a um bem jurídico uma situação de risco juridicamente proibido (não permitido) e tal risco se tenha concretizado em um resultado típico” (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: Parte geral: arts. 1 a 120. 27. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 161). Nos limites cognitivos possibilitados na via do habeas corpus, parece evidente que, ao dirigirem suas ações contra vítima idosa (um senhor de 84 anos) e usarem de exacerbada violência, os Pacientes criaram, sim, um risco juridicamente proibido – conclusão contrária seria impensável à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Esse risco, concretizou-se em um resultado típico previsto justamente no tipo imputado aos Réus (art. 157, § 3.
º, inciso II, do Código Penal).
7. O fato de o agente cometer o delito enquanto cumpre pena aplicada em razão da prática de crime pretérito é fundamento adequado para exasperar a pena-base.
8. A vetorial dos motivos, em crimes patrimoniais, não pode ser desabonada apenas porque a intenção dos agentes seria comprar entorpecentes com o proveito do delito. Precedentes.
9. Consoante entendimento fixado em precedente qualificado desta Corte, “nos casos de multirreincidência, deve ser reconhecida a preponderância da agravante prevista no art. 61, I, do Código Penal, sendo admissível a sua compensação proporcional com a atenuante da confissão espontânea, em estrito atendimento aos princípios da individualização da pena e da proporcionalidade” (REsp 1.931.145/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, Terceira Seção, julgado em 22/06/2022, DJe 24/06/2022).
10. Ordem de habeas corpus concedida, em parte, apenas para reduzir as penas aplicadas aos Pacientes.
O habeas corpus foi parcialmente concedido apenas para redimensionar as penas aplicadas.