A aplicação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança legítima pode, de forma excepcional e em nome do interesse público, manter os efeitos de ato administrativo considerado ilegal. Esse foi o entendimento da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar válidos os efeitos de decisão do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que suspendeu os prazos processuais da sociedade de economia mista Furnas durante a greve dos funcionários do setor elétrico, em 2015.
No recurso em mandado de segurança, a concessionária de energia elétrica Celg, de Goiás, buscava a anulação do ato da presidência do TJRJ e, consequentemente, o reconhecimento do trânsito em julgado de sentenças contra Furnas.
Em 2015, o presidente do tribunal fluminense entendeu que a paralisação dos trabalhadores do setor elétrico seria motivo de força maior apto a suspender os prazos dos processos em que Furnas figurasse como parte, até o encerramento da greve. Amparada por essa decisão, Furnas apresentou recursos contra as sentenças que beneficiavam a Celg somente após finalizados os efeitos do ato administrativo.
Para a Celg, o benefício concedido a Furnas afrontou seu direito de prosseguir com a execução das sentenças, as quais já teriam transitado em julgado. Ela argumentou também que o ato contrariou o princípio da isonomia ao privilegiar uma das partes, além de desrespeitar a jurisprudência do STJ.
Proteção da confiança legítima
O mandado de segurança da Celg foi impetrado no TJRJ para anular o ato da presidência. A corte especial daquele tribunal, mesmo considerando o ato ilegal, manteve seus efeitos em razão dos princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança legítima e da presunção de legitimidade dos atos administrativos.
No STJ, o relator do recurso, ministro Gurgel de Faria, ressaltou o entendimento consolidado no tribunal de que a deflagração de greve não caracteriza hipótese de força maior capaz de justificar a suspensão do processo.
No entanto, ele concordou com o acórdão do TJRJ, que entendeu como legítimo Furnas acreditar que a determinação do presidente do tribunal se encontrava em conformidade com a lei. O ministro também destacou parecer do Ministério Público Federal que recomendou a manutenção dos efeitos do ato, já que se tratava de erro exclusivo da administração pública, e essa seria a conduta que melhor atenderia ao interesse público.
“Em face do quadro fático peculiar da hipótese, os primados da confiança legítima e da presunção de legitimidade dos atos administrativos recomendam a manutenção dos efeitos do ato administrativo impugnado, sob cujo amparo a parte deixou escoar o prazo para interpor o recurso de apelação”, concluiu o ministro ao manter o acórdão do TJRJ.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. JULGAMENTO ULTRA PETITA E DECISÃO SURPRESA. INOCORRÊNCIA. SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. SERVIDORES. MOVIMENTO GREVISTA. SUSPENSÃO DOS PRAZOS PROCESSUAIS. FORÇA MAIOR. NÃO CONFIGURAÇÃO. EFEITOS. MANUTENÇÃO. PRINCÍPIOS DA SEGURANÇA JURÍDICA E DA PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DOS ATOS. APLICAÇÃO.
1. A eventual ocorrência de julgamento ultra ou extra petita por parte de tribunal local está relacionada com o acolhimento da pretensão deduzida em juízo, mediante interpretação lógico-sistemática da peça inicial (AgInt no AREsp 987.196/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/10/2017, DJe 23/10/2017), e não com a rejeição do pedido, como na hipótese presente.
2. O termo “fundamento” mencionado no art. 10 do CPC/2015 refere-se ao fundamento jurídico, ou seja, à “circunstância de fato qualificada pelo direito, em que se baseia a pretensão ou a defesa, ou que possa ter influência no julgamento, mesmo que superveniente ao ajuizamento da ação” e não se confunde com o fundamento normativo utilizado pelo julgador para examinar a causa (EDcl no REsp 1.280.825/RJ, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 27/06/2017, DJe de 1º/08/2017).
3. O Superior Tribunal de Justiça tem consolidado o entendimento de que a deflagração de movimento paredista não caracteriza hipótese de força maior “capaz de ampliar ou devolver o prazo recursal da parte representada por membros das carreiras em greve” (AgRg no RE nos EDcl no AgRg no Ag 786.657/DF, Rel. Ministro CESAR ASFOR ROCHA, CORTE ESPECIAL, julgado em 30/06/2008, DJe 18/08/2008).
4. Caso em que concessionária do serviço de energia elétrica postula em ação mandamental anular ato da Presidência de Tribunal de Justiça que suspendeu os prazos processuais nos feitos em que figurava como parte sociedade de economia mista (Furnas, ora recorrida), em razão de greve de seus servidores.
5. A Corte Especial do Tribunal de origem, sem desconhecer a orientação jurisprudencial acima referida e a despeito de reputar ilegal o ato impugnado no mandamus, deixou de tê-lo por inválido, mantendo-lhe os efeitos, por prestigiar os primados da segurança jurídica e o respectivo corolário, a saber, a proteção da confiança legítima, bem como a presunção de legitimidade dos atos administrativos.
6. Mesmo que a deflagração do movimento grevista não sirva para consubstanciar motivo de força maior a autorizar a suspensão dos prazos processuais, o resguardo dos princípios mencionados no aresto recorrido recomenda a manutenção dos efeitos do ato, sob cuja égide a parte deixou escoar o prazo para interpor o recurso de apelação.
7. “Muito embora seja o ato inválido, trata-se de situação peculiar em que a conduta juridicamente viável, e que mais atende ao interesse público, é a de mantê-lo, já que, diante da situação fática constituída, por erro exclusivo da Administração Pública, reconhecer a perda do prazo recursal pela Recorrida e declarar o trânsito em julgado da decisão seria atritar com princípios maiores do ordenamento jurídico, sobretudo com a segurança jurídica”, nos termos do parecer do Ministério Público Federal.
8. Recurso desprovido.
Leia o acórdão.