Segundo dados do governo federal, o Brasil é atualmente o 29º maior importador do mundo, e entre os principais produtos importados estão óleos combustíveis, adubos e fertilizantes. Em 2019, o país comprou no exterior US$ 150 bilhões em bens e serviços – uma queda expressiva em relação a 2013, quando o valor chegou a US$ 202 bilhões.
No outro lado da balança comercial, exportamos em 2019 mais de US$ 189 bilhões, com destaque para produtos agropecuários e da indústria extrativa.
O comércio exterior está na pauta não só dos economistas, mas também dos juristas, dadas as inúmeras controvérsias legais em torno de tributação, incentivos e até mesmo condutas criminosas relacionadas ao movimento de mercadorias pelas fronteiras.
A complexidade das normas que regem o setor amplia as possibilidades de judicialização, e isso se reflete no grande volume de recursos que chegam ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja missão é dar a palavra final sobre a interpretação da legislação federal aplicável ao comércio exterior.
A jurisprudência do STJ sobre o tema é apresentada na série de reportagens especiais que começa neste domingo (22), com uma coletânea de entendimentos da corte relacionados às importações. No próximo domingo (29), as controvérsias jurídicas no campo das exportações.
Remessa postal
No caso do consumidor pessoa física, atualmente, a importação é isenta de imposto em mercadorias de até US$ 50. Em 2019, a Segunda Turma analisou o recurso de um consumidor contra essa limitação. Ele alegava que, de acordo com o Decreto-Lei 1.804/1980, o limite seria de US$ 100.
Para o colegiado, a isenção prevista no artigo 2º, inciso II, do Decreto-Lei 1.804/1980 é uma faculdade concedida ao Ministério da Fazenda, que pode ou não ser exercida, desde que a remessa postal seja limitada ao teto de US$ 100 e se destine a pessoa física. Dessa forma, a portaria editada pelo ministério em 1999 – na qual a isenção foi condicionada ao valor máximo de US$ 50 – é legítima.
O contribuinte importou uma peça de bicicleta no valor de US$ 98 e, logo após receber o aviso de cobrança do imposto, ingressou com mandado de segurança contra o chefe da Inspetoria da Receita Federal em Florianópolis para garantir a isenção tributária com base na regra do decreto-lei – que, segundo ele, teria estabelecido o limite em US$ 100.
O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), dando razão ao consumidor, concluiu que o Ministério da Fazenda extrapolou o limite estabelecido no Decreto-Lei 1.804/1980 ao fixar a isenção em US$ 50. A Fazenda recorreu ao STJ.
Segundo o ministro relator do recurso, Mauro Campbell Marques, o decreto-lei impõe um teto, e não um valor obrigatório de isenção do Imposto de Importação. Além disso, o relator destacou que a norma permite a criação de outras condições razoáveis para o gozo da isenção, como a exigência de que as encomendas sejam remetidas por pessoa física (o decreto-lei fala apenas do destinatário).
O ministro destacou que o decreto-lei que criou o regime de tributação simplificado para a cobrança do Imposto de Importação incidente sobre bens contidos em remessas postais internacionais permitiu ao Poder Executivo estabelecer os requisitos e as condições para a concessão do benefício.
“Essas regras, associadas ao comando geral que permite ao Ministério da Fazenda estabelecer os requisitos e condições para a aplicação de alíquotas, permitem concluir que o valor máximo da remessa para o gozo da isenção pode ser fixado em patamar inferior ao teto de US$ 100 e que podem ser criadas outras condições não vedadas (desde que razoáveis) para o gozo da isenção, como, por exemplo, a condição de que sejam remetidas por pessoas físicas”, resumiu o relator (REsp 1.736.335).
Veículos
Em outro caso envolvendo consumidores de produtos importados, a Primeira Seção, ao julgar o REsp 1.396.488, revisou o entendimento do Tema 695 dos recursos repetitivos e definiu que incide o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em relação a veículo importado para uso próprio, pois tal cobrança não viola o princípio da não cumulatividade nem configura bitributação.
Segundo o ministro Francisco Falcão, relator, a tese foi revista após uma mudança de entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), o que exigia adequar a compreensão do STJ sobre a matéria.
No caso analisado pelos ministros, o consumidor importou uma moto esportiva e alegou que, por força do princípio da não cumulatividade, disposto no inciso II do parágrafo 3º do artigo 153 da Constituição, não deveria pagar IPI na hora do desembaraço aduaneiro da moto em sua chegada ao Brasil.
O ministro Francisco Falcão destacou que, em 2016, ao analisar controvérsia semelhante, o STF decidiu que o IPI incide na importação de veículo automotor por pessoa natural, ainda que não desempenhe atividade empresarial e o faça para uso próprio. O recurso do contribuinte foi rejeitado, mantendo-se a cobrança do imposto.
Produtos industrializados
No EREsp 1.403.532, a Primeira Seção decidiu que os produtos industrializados importados estão sujeitos a uma nova incidência do IPI quando de sua saída do estabelecimento importador, na operação de revenda, mesmo que não tenham sofrido industrialização no Brasil.
Nesse caso, uma empresa que importa máquinas de fisioterapia se insurgiu contra a cobrança de IPI em dois momentos: na retirada dos equipamentos na alfândega e, depois, na saída para os compradores. Para a empresa, tal prática configuraria bitributação, motivo pelo qual a segunda cobrança do imposto não seria correta.
Segundo o ministro Mauro Campbell Marques – cujo voto prevaleceu no julgamento –, não há qualquer ilegalidade na pretensão do fisco de cobrar o IPI quando os produtos de procedência estrangeira saem do estabelecimento do importador.
Ele afirmou que essa interpretação não ocasiona a ocorrência de bis in idem, dupla tributação ou bitributação, porque a lei elenca dois fatos geradores distintos: o desembaraço aduaneiro proveniente da operação de importação de produto industrializado e a saída desse produto do estabelecimento importador, equiparado a estabelecimento produtor.
De acordo com Mauro Campbell, a primeira tributação recai sobre o preço de compra – no qual está embutida a margem de lucro da empresa estrangeira –, e a segunda tributação recai sobre o preço de venda – no qual já entrou a margem de lucro da empresa brasileira importadora.
O ministro disse que a cobrança não onera a cadeia produtiva além do razoável, pois o importador, na primeira operação, apenas acumula a condição de contribuinte de fato e de direito em razão da territorialidade, já que o produtor estrangeiro não pode ser eleito pela lei brasileira como contribuinte de direito do IPI.
Desse modo, a empresa importadora nacional acumula o crédito do imposto pago no desembaraço aduaneiro para ser utilizado como abatimento do imposto a ser pago na saída do produto, como contribuinte de direito (não cumulatividade), mantendo-se a tributação apenas sobre o valor agregado.
Com esse entendimento, o colegiado negou a pretensão da empresa de não pagar IPI sobre a venda dos produtos importados.
Brinquedos
No REsp 1.492.832, julgado pela Primeira Turma em 2018, a fabricante de brinquedos Estrela não questionou a cobrança de tributos, mas sim a Portaria 492/1994 do Ministério da Fazenda, que reduziu o Imposto de Importação de diversos produtos – entre eles, brinquedos.
A Estrela alegou que, por facilitar a entrada no mercado nacional de produtos importados –especialmente da China e de outros países da Ásia, cuja qualidade classificou de duvidosa –, a política tarifária lhe causou prejuízos. No recurso especial, a empresa pleiteou o ressarcimento dos alegados prejuízos, com o fundamento de que a União teria violado o princípio da confiança ao editar a portaria.
O colegiado concluiu que o impacto econômico-financeiro causado pela alteração da política tarifária faz parte do próprio risco da atividade econômica.
O relator do caso, ministro Gurgel de Faria, manteve o entendimento do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), segundo o qual não há indícios de dano causado pela União com a redução da alíquota.
“Somente nos casos em que o Estado se compromete, por ato formal, a incentivar, no campo fiscal, determinado ramo do setor privado, por certo período, é que se poderia invocar a quebra da confiança na modificação de política extrafiscal”, afirmou.
Ele lembrou que a Lei 3.244/1957 já previa alterações na alíquota do imposto, e tal informação era do conhecimento de todos desde a sua aprovação.
“Se a ninguém é dado alegar o desconhecimento da lei, não pode o setor privado alcançado pela redução de alíquota sustentar a quebra do princípio da confiança e, com isso, pretender indenização porque o Estado brasileiro atuou, legitimamente, na regulação do mercado, exercendo competência privativa sua”, concluiu Gurgel de Faria.
Desembaraço aduaneiro
Muitos questionamentos que chegam ao STJ são referentes ao processo de entrada dos produtos importados no Brasil. No REsp 1.316.269, a Primeira Turma analisou se o erro culposo na classificação de mercadorias para fins de cobrança de imposto poderia justificar a pena de perda dos produtos importados.
A empresa importou cadeiras, poltronas e outros móveis, classificados em desconformidade com as regras da tabela da Receita Federal para importados. No recurso especial, a Fazenda alegou que houve declaração falsa, e que uma das penalidades a serem impostas seria a perda da mercadoria.
O relator do recurso, ministro Gurgel de Faria, considerou que existe uma diferença entre declaração falsa e declaração indevida. Na primeira, há a intenção de iludir a fiscalização; na segunda – explicou –, há um erro culposo por parte do declarante.
“O erro culposo na classificação aduaneira de mercadorias importadas e devidamente declaradas ao fisco não se equipara à declaração falsa de conteúdo e, portanto, não legitima a imposição da pena de perdimento”, afirmou.
Ele lembrou que, embora a declaração de conteúdo seja obrigatória para a aferição da regularidade do pagamento de tributos pelo importador e de suas informações, nada impede que a autoridade aduaneira, ao constatar erro na classificação, imponha determinadas exigências administrativas ou fiscais para o desembaraço das mercadorias – procedimento feito sem a necessidade de apreensão.
Capatazia
No julgamento do REsp 1.799.306 (Tema 1.014 dos recursos repetitivos), a Primeira Seção estabeleceu que os serviços de capatazia estão incluídos na composição do valor aduaneiro e integram a base de cálculo do Imposto de Importação.
Tais serviços – como a movimentação de mercadorias nos portos, carregamento e descarregamento, entre outras atividades logísticas –, na visão das empresas importadoras, não deveriam ser incluídos na base de cálculo do imposto.
O ministro Francisco Falcão, autor do voto condutor da decisão, acolheu o argumento da Fazenda de que esses serviços devem ser considerados no cálculo do imposto devido.
Ele lembrou que os serviços integram a atividade de capatazia, de acordo com a Lei 12.815/2013, e a Receita Federal editou instrução normativa explicitando que eles devem fazer parte do valor aduaneiro.
“Evidencia-se que os serviços de capatazia, conforme a definição acima referida, integram o conceito de valor aduaneiro, tendo em vista que tais atividades são realizadas dentro do porto ou ponto de fronteira alfandegado”, explicou o ministro.
Drawback
Outro tema frequente em discussões jurídicas sobre tributação e incentivos é o regime de drawback, por meio do qual, com o objetivo de estimular as exportações, são suspensos ou eliminados tributos incidentes sobre a aquisição de insumos importados utilizados na produção de bens destinados ao mercado externo.
Um dos entendimentos do tribunal sobre o assunto está consolidado na Súmula 569. De acordo com o enunciado, é indevida a exigência de nova certidão negativa de débitos federais no desembaraço aduaneiro da mercadoria importada, se já houve a comprovação da quitação de tributos quando da concessão do benefício relativo ao regime de drawback.
Em um dos precedentes que deram origem à súmula – o REsp 1.041.237 –, o ministro Luiz Fux (hoje no STF) destacou que, segundo o artigo 60 da Lei 9.069/1995, a concessão ou o reconhecimento de qualquer incentivo ou benefício fiscal, relativo a tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal, fica condicionado à comprovação, pelo contribuinte pessoa física ou jurídica, da inexistência de débitos tributários federais.
Por essa razão, afirmou o ministro, é ilícita a exigência de nova certidão negativa de débito no momento do desembaraço aduaneiro.
Exportação frustrada
No REsp 1.310.141, a Primeira Turma analisou o termo inicial para o pagamento de multa e juros devidos na hipótese de empresa que se beneficiou com o regime de drawback na modalidade de suspensão, mas não cumpriu com a promessa de exportação.
Para o colegiado, o termo inicial a ser considerado nessa hipótese é a data em que se encerra a condição suspensiva. De acordo com o ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator, o regime especial de drawback na modalidade suspensão é, de fato, verdadeira causa de exclusão do crédito tributário, uma vez que é espécie de isenção tributária condicional.
Nesse regime, explicou, “o termo inicial para fins de multa e juros moratórios será o 31º dia do inadimplemento do compromisso de exportar, ou seja, quando escoado o prazo da suspensão – antes disso, o contribuinte não está em mora, em razão do seu prazo de graça –, visto que somente a partir daí ocorre a mora do contribuinte, em razão do descumprimento da norma tributária a qual determina o pagamento do tributo no regime especial até 30 dias da imposição de exportar”.
Napoleão Nunes Maia Filho disse que, no caso analisado, a empresa efetuou o pagamento no prazo previsto pela legislação aduaneira, “não se justificando, desse modo, a aplicação de penalidade em razão da mora, nem para fins de multa moratória nem de juros moratórios, porquanto o fato (mora) não existiu”.
Embalagens
No julgamento do REsp 1.404.148, a Segunda Turma afirmou que o regime de drawback na modalidade suspensão não pode ser concedido a empresa que importa embalagens plásticas para o transporte de frutas que serão exportadas.
Nesse caso, o tribunal estadual considerou que as embalagens importadas pela empresa reforçavam a segurança das frutas, mas não eram indispensáveis; dessa forma, não havia beneficiamento ou agregação de valor para justificar a concessão do drawback.
Autor do voto que prevaleceu no colegiado, o ministro Herman Benjamin lembrou que a suspensão dos tributos é relacionada à importação não apenas de mercadoria utilizada no beneficiamento do produto a ser exportado, mas também de mercadoria utilizada para acondicionamento. Isso, porém, não se aplica ao caso em julgamento, pois, segundo o ministro, o legislador não incluiu em sua previsão as mercadorias usadas no transporte.
“A segurança vinculada ao transporte diz respeito à preservação de valor do bem a ser exportado, ou seja, ao impedimento de que haja diminuição parcial ou integral de sua expressão econômica, situação evidentemente inconfundível com a agregação de valor”, declarou.
Para Herman Benjamin, inexistindo beneficiamento ou agregação de valor à mercadoria a ser exportada, fica descaracterizada a concessão do benefício fiscal pleiteado.
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