A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.109), estabeleceu a seguinte tese: “Não ocorre renúncia tácita à prescrição (artigo 191 do Código Civil), a ensejar o pagamento retroativo de parcelas anteriores à mudança de orientação jurídica, quando a administração pública, inexistindo lei que, no caso concreto, autorize a mencionada retroação, reconhece administrativamente o direito pleiteado pelo interessado”.
Com a fixação da tese, os recursos especiais e agravos em recurso especial com a mesma controvérsia, que estavam suspensos, poderão voltar a tramitar. O precedente deverá ser observado em todos os casos idênticos.
O relator dos recursos escolhidos como representativos da controvérsia, ministro Sérgio Kukina, esclareceu que, em 2006, o Tribunal de Contas da União (TCU), alterando o seu entendimento, passou a admitir a possibilidade de contagem, para fins de aposentadoria, do tempo de serviço especial exercido em condição penosa, insalubre ou perigosa por servidores públicos celetistas – ou seja, antes da Lei 8.112/1990, que adotou o regime jurídico único no âmbito federal.
A partir dessa mudança, mediante provocação, a administração passou a deferir a contagem do tempo especial e a alterar o ato de aposentação, reconhecendo os devidos acréscimos financeiros, mas com efeitos retroativos somente até a data da reorientação do entendimento do TCU, quando fosse o caso.
Instâncias ordinárias estavam admitindo retroatividade até a data da aposentadoria
Ao examinar a jurisprudência do STJ, o ministro apontou três linhas de compreensão sobre o tema. Uma delas, que vinha sendo adotada pelas instâncias ordinárias, permitia a retroação dos efeitos financeiros até a data da aposentadoria. Nesse caso, entendia-se que a administração, ao deferir o recálculo do benefício após mais de cinco anos de sua concessão (quando estaria prescrito o próprio fundo de direito), teria tacitamente renunciado à prescrição já consumada – renúncia que alcançaria também as prestações desde a data da aposentadoria.
O relator mencionou precedentes do STJ que reconheceram a renúncia à prescrição nos casos em que o gestor público, na via administrativa revisional, concedeu reajustes salariais previstos em lei específica, mesmo que a pretensão do servidor já estivesse prescrita.
No entanto, Sérgio Kukina enfatizou que esse raciocínio não poderia ser aplicado à controvérsia do repetitivo em análise, já que o reconhecimento administrativo da possibilidade da contagem de tempo ficto não se baseou em lei autorizativa específica, o que impede a compreensão de ter havido a questionada renúncia à prescrição por parte da União.
Lei autorizativa específica é condição para renúncia à prescrição
Para o relator, a edição de prévia lei autorizativa é condição para a renúncia à prescrição quando esta implicar a produção de efeitos retroativos que extrapolem a legislação ordinária de regência.
Sem essa lei – acrescentou o ministro –, considerar que houve renúncia à prescrição, além de ilegal, tornaria o reconhecimento administrativo do direito muito mais gravoso à administração do que se ela tivesse negado tal direito, pois, se o interessado fosse à Justiça – na improvável hipótese de não ser declarada a prescrição do fundo de direito –, o máximo que ele poderia conseguir seria a retroação de efeitos nos cinco anos anteriores ao pedido administrativo.
Segundo Kukina, “em respeito ao princípio da deferência administrativa, o agir administrativo transigente, pautado na atuação conforme a lei e o direito, segundo padrões éticos de probidade e boa-fé, deve ser prestigiado pela jurisdição, sinalizando, assim, favoravelmente a que os órgãos administrativos tomadores de decisão sempre tenham em seu horizonte a boa prática da busca de soluções extrajudiciais uniformes, desestimulando, com isso, a litigiosidade com os administrados”.
A Primeira Seção, de forma unânime, concluiu, assim, que deve ser prestigiada a atitude da administração quando ela, no exercício da autotutela, na promoção da igualdade e da segurança jurídica, decide revisar atos já consolidados para ajustá-los à interpretação dos tribunais superiores – ou, como no caso, do TCU –, evitando a litigiosidade.
O recurso ficou assim ementado:
DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. TEMA 1.109. SERVIDOR PÚBLICO APOSENTADO. REVISÃO ADMINISTRATIVA DEFLAGRADA DEPOIS DE TRANSCORRIDOS MAIS DE CINCO ANOS DESDE O ATO DE APOSENTAÇÃO. RECONHECIMENTO DO DIREITO À CONTAGEM DE TEMPO ESPECIAL COM REFLEXO FINANCEIRO FAVORÁVEL AO APOSENTADO. REALINHAMENTO DA ADMINISTRAÇÃO FEDERAL AO QUANTO DECIDIDO PELO TCU NO ACÓRDÃO N. 2008/2006 (CONFORME ORIENTAÇÕES NORMATIVAS 3 E 7, DE 2007, DO MPOG). PRETENSÃO DA PARTE APOSENTADA EM RECEBER AS RESPECTIVAS DIFERENÇAS DESDE 11/2010. IMPOSSIBILIDADE. RECONHECIMENTO DE DIREITO QUE NÃO IMPLICOU RENÚNCIA TÁCITA À PRESCRIÇÃO POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO. INAPLICABILIDADE DO ART. 191 DO CÓDIGO CIVIL NA ESPÉCIE. REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO DE DIREITO PÚBLICO QUE EXIGE LEI AUTORIZATIVA PRÓPRIA PARA FINS DE RENÚNCIA À PRESCRIÇÃO JÁ CONSUMADA EM FAVOR DA ADMINISTRAÇÃO.
1. O Tema Repetitivo n. 1.109 teve sua afetação assim delimitada:
“Definição acerca da ocorrência, ou não, de renúncia tácita da prescrição, como prevista no art. 191 do Código Civil, quando a Administração Pública, no caso concreto, reconhece o direito pleiteado pelo interessado”.
2. A revisão administrativa que promova a adoção de entendimento mais favorável ao administrado, em observância aos princípios da igualdade e da segurança jurídica, não se caracteriza como renúncia, tácita ou expressa, à prescrição já consumada em favor da Administração Pública, máxime com vistas à pretendida produção de efeitos financeiros retroativos à data do ato concessivo da aposentadoria da parte autora, à míngua de lei nesse sentido.
Inaplicabilidade do art. 191 do Código Civil na espécie.
3. Em respeito ao princípio da deferência administrativa, o agir administrativo transigente, pautado na atuação conforme a lei e o direito, segundo padrões éticos de probidade e boa-fé, deve ser prestigiado pela jurisdição, sinalizando, assim, favoravelmente a que os órgãos administrativos tomadores de decisão sempre tenham em seu horizonte a boa prática da busca de soluções extrajudiciais uniformes, desestimulando, com isso, a litigiosidade com os administrados.
4. Nesse sentido, destaca-se orientação doutrinária segundo a qual “[os] tribunais também desestimulam a solução extrajudicial quando conferem à Administração transigente, que reconhece administrativamente direitos, tratamento até mais gravoso do que aquele que lhe seria conferido em caso de intransigência.” (Luciano, Pablo Bezerra. In A renúncia tácita à prescrição pelo Poder Público. Revista Consultor Jurídico, 11 fev. 2002).
5. TESE REPETITIVA: Não ocorre renúncia tácita à prescrição (art.
191 do Código Civil), a ensejar o pagamento retroativo de parcelas anteriores à mudança de orientação jurídica, quando a Administração Pública, inexistindo lei que, no caso concreto, autorize a mencionada retroação, reconhece administrativamente o direito pleiteado pelo interessado. 6. RESOLUÇÃO DO CASO CONCRETO:
6.1. Em razão de nova interpretação jurídica decorrente do Acórdão TCU n. 2008/2006 (superação da Súmula n. 245/TCU), a Administração Pública reconheceu administrativamente o direito de servidora aposentada à contagem de tempo especial (serviço insalubre) prestado no serviço público, mas em regime celetista, até ao advento do Regime Jurídico Único (Lei n. 8.112/90), com os correspondentes reflexos financeiros, retificando e, com isso, majorando seus proventos (a contar de 6/11/2006, data da publicação do referido acórdão do TCU, observada a prescrição quinquenal, marcada pelo requerimento administrativo datado de outubro de 2016).
6.2. Nada obstante a Administração Pública tenha reconhecido a produção de efeitos financeiros prospectivos, isto é, a partir da nova interpretação jurídica conferida pelo acórdão do TCU, a decisão judicial ora recorrida qualificou a sobredita revisão administrativa como sendo caso de renúncia tácita à prescrição, condenando a União ao pagamento retroativo de diferenças vencimentais desde 11/2010, período postulado na exordial, ou seja, em desalinho com a tese firmada no presente repetitivo.
6.3. Recurso especial da União conhecido em parte e, nessa extensão, parcialmente provido.
Leia o acórdão no REsp 1.925.193.