A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) iniciou na terça-feira (3) o reexame da decisão de 2013 em que o colegiado reconheceu o direito ao esquecimento alegado por um serralheiro acusado de participação na Chacina da Candelária – e que acabou sendo absolvido pelo tribunal do júri. Após o ministro Luis Felipe Salomão, relator, votar pela ratificação do acórdão que condenou a TV Globo a indenizar o cidadão, o julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Raul Araújo.
Em 1993, perto da igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, oito jovens moradores de rua foram assassinados. Em 2006, o programa Linha Direta – Justiça, da TV Globo, apresentou um documentário sobre o caso e expôs o nome e a imagem do serralheiro, que ajuizou ação indenizatória. O STJ manteve a condenação da emissora a pagar R$ 50 mil como reparação pela ofensa à sua dignidade.
A Globo entrou com recurso extraordinário, mas o processo ficou sobrestado, aguardando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em um julgamento que também envolvia o direito ao esquecimento: o caso Aída Curi (RE 1010606, Tema 786 da repercussão geral). Publicada a decisão do STF, a Quarta Turma passou a reexaminar o acórdão de 2013 para decidir se reformula ou mantém seu entendimento – caso em que o recurso extraordinário seguirá para o STF.
Situação abusiva e violadora de direitos fundamentais
Em seu voto, o ministro Luis Felipe Salomão reafirmou a conclusão de que o revolvimento de acontecimentos que abalaram a honra e a convivência social do autor da ação representam uma situação abusiva e violadora de seus direitos fundamentais.
“Permitir nova veiculação do fato, com a indicação precisa do nome e imagem do autor, significaria a permissão de uma segunda ofensa à sua dignidade, só porque a primeira já ocorrera no passado, uma vez que, além do crime em si, o inquérito policial consubstanciou uma reconhecida vergonha nacional à parte”, declarou o relator, relembrando seu voto no julgamento original.
Em sua defesa, a emissora de TV alegou que o acolhimento de um direito ao esquecimento – ou direito de ser “deixado em paz” – feriria o seu direito de informar, já que não seria possível retratar a história dos homicídios da Candelária sem mencionar o serralheiro, peça chave do episódio e do conturbado inquérito policial.
E sustentou que o caso se amoldaria à tese do STF segundo a qual “é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social”.
Em consonância com a tese do STF
De acordo com Luis Felipe Salomão, o acórdão da Quarta Turma não está em choque com o Tema 786 do STF, pois não guarda relação com essa primeira parte do que foi decidido na repercussão geral, em relação ao direito ao esquecimento, mas sim com a segunda parte da tese: “Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais – especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral – e das expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível”.
Para o ministro, a análise do STF sobre o aparente choque entre os direitos de informação e de intimidade resultou na identificação de duas situações distintas. Em uma delas, há apenas o descontentamento do sujeito com a informação que não lhe é conveniente, e nesse caso o direito à informação e a liberdade de imprensa assumem posição preponderante em relação à intimidade, à imagem e à vida privada.
A outra situação – que, segundo ele, guarda similitude com o caso da Candelária – é o exercício irresponsável e abusivo dos direitos de informação, de expressão e de liberdade de imprensa, diante do qual o controle judicial deverá ser imperativo, sempre considerando as peculiaridades de cada caso.
Salomão concluiu que não há motivo para se falar em retratação, pois, no julgamento de 2013, a Quarta Turma constatou justamente a situação abusiva a que se referiu o STF, “situação para a qual aquele tribunal determinou: em sendo constatado o excesso na divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais, proceda o julgador competente ao estancamento da violação, a partir das legítimas formas previstas pelo ordenamento”.