Pessoa jurídica pode recorrer contra penhora de bens de sócio para defender interesse próprio

A pessoa jurídica tem legitimidade para recorrer da decisão que decretou a penhora de bens de um sócio não integrante do polo passivo da ação, desde que o faça para defender interesse próprio e sem se envolver na esfera dos direitos do sócio.

Com esse entendimento – já adotado em precedentes dos colegiados de direito privado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) –, a Terceira Turma determinou ao Tribunal de Justiça de Roraima (TJRO) que julgue o recurso apresentado por uma sociedade empresária contra o ato judicial que permitiu a constrição de ativos financeiros de outra empresa, sua sócia.

O caso teve origem em ação indenizatória na qual uma sociedade de propósito específico (SPE) do ramo imobiliário foi condenada. Na fase de execução, o juízo determinou a penhora de ativos de uma pessoa jurídica que integra a sociedade executada. Esta entrou com agravo de instrumento, mas o TJRO entendeu que ela não teria legitimidade para contestar a decisão que bloqueou o patrimônio de outra pessoa jurídica.

Em recurso ao STJ, a SPE afirmou possuir autonomia econômica, jurídica e financeira em relação aos sócios e sustentou que, ao questionar a penhora decretada sem a prévia instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, estava agindo na defesa de interesse próprio.

Desconsideração resguarda interesses de credores e da própria sociedade

A relatora, ministra Nancy Andrighi, comentou que o desvirtuamento da atividade empresarial é punido com a desconsideração da personalidade jurídica, de acordo com o artigo 50 do Código Civil, o que resguarda os interesses dos credores e da própria sociedade empresária indevidamente manipulada.

Para que a parte possa recorrer de uma decisão – acrescentou a ministra –, é preciso que esteja presente o interesse recursal, relacionado à ideia de um prejuízo que possa ser revertido no julgamento do recurso.

Assim, de acordo com a relatora, o interesse na desconsideração ou na manutenção da personalidade jurídica pode partir da própria sociedade empresária, “desde que seja capaz de demonstrar a pertinência de seu intuito, o qual deve sempre estar relacionado à defesa de direito próprio. Ou seja, a pessoa jurídica cuja personalidade se busca desconsiderar pode, ao menos em tese, valer-se dos meios próprios de impugnação existentes para defender sua autonomia”.

Segundo Nancy Andrighi, tanto a Terceira quanto a Quarta Turma do STJ têm precedentes nessa mesma linha de entendimento.

Requisitos da desconsideração devem ser examinados em incidente próprio

A relatora apontou que são frequentes as decisões judiciais que, sem amparo legal – já que não houve a instauração do incidente previsto nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil para investigar os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica –, determinam o bloqueio de bens de pessoas jurídicas para garantir a execução de dívidas de seus sócios.

Ela afirmou que tais decisões – como a do caso em análise – se equiparam à desconsideração da personalidade jurídica nos seus efeitos práticos, o que autoriza que sejam adotados em relação a elas os mesmos fundamentos que levam ao reconhecimento da legitimidade recursal da sociedade empresária alvo da medida.

Ao dar provimento parcial ao recurso especial da SPE, afastando sua ilegitimidade, a Terceira Turma ordenou o retorno do processo à segunda instância para que analise o mérito do agravo de instrumento que aponta inobservância do procedimento adequado para a execução atingir bens de terceiros.

O recurso ficou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA EM FASE DE CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSÊNCIA. DECISÃO SURPRESA. INOCORRÊNCIA. DECISÃO QUE DETERMINOU A PENHORA DE ATIVOS FINANCEIROS DE SÓCIO. RECURSO DA SOCIEDADE EMPRESÁRIA. LEGITIMIDADE. CONFIGURAÇÃO. APLICAÇÃO DA TEORIA DA CAUSA MADURA. IMPOSSIBILIDADE.
1. Ação indenizatória em fase de cumprimento de sentença, da qual foi extraído o presente recurso especial interposto em 04⁄08⁄2021 e concluso ao gabinete em 21⁄11⁄2022.
2. O propósito recursal consiste em definir se a) houve negativa de prestação jurisdicional; b) o Tribunal de origem violou o princípio da não surpresa e c) a sociedade empresária tem legitimidade para impugnar decisão judicial que determina a constrição de bens de seus sócios.
3. Na hipótese em exame deve de ser afastada a existência de omissão no acórdão recorrido, pois as matérias impugnadas foram enfrentadas de forma objetiva e fundamentada no julgamento do agravo de instrumento, naquilo que o Tribunal a quo entendeu pertinente.
4. A proibição de decisão surpresa (art. 10 do CPC⁄2015) não se refere aos requisitos de admissibilidade recursal, porquanto diz com a mera aplicação da legislação presumidamente de todos conhecida. Precedentes.
5. A técnica da personalização visa, sobretudo, a conferir à pessoa jurídica autonomia negocial e patrimonial. O desvirtuamento da atividade empresarial, porque constitui verdadeiro abuso de direito dos sócios e⁄ou administradores, é punido pelo ordenamento jurídico com a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade (art. 50 do CC⁄02). A rigor, portanto, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica resguarda interesses de credores, bem como da própria sociedade indevidamente manipulada.
6. O interesse na desconsideração ou na manutenção do véu protetor pode partir da própria pessoa jurídica, desde que esta seja capaz de demonstrar a pertinência de seu intuito, o qual deve sempre estar relacionado à defesa de direito próprio. Ou seja, a pessoa jurídica cuja personalidade se busca desconsiderar pode, ao menos em tese, se valer dos meios próprios de impugnação existentes para defender sua autonomia.
7. Nada obstante a decisão judicial que determina a constrição de bens de sócio de sociedade empresária sem a observância do procedimento previsto nos arts. 133 a 137 do CPC⁄2015 não determine, expressamente, a desconsideração da personalidade jurídica, a esse provimento se equipara, já que produz o mesmo efeito, qual seja: a satisfação do direito do credor junto ao patrimônio dos sócios da sociedade empresária devedora. Sendo assim e considerando que a manutenção da autonomia dos patrimônios pode ser de interesse da própria empresa, a pessoa jurídica tem legitimidade para recorrer da decisão que autoriza a constrição de bem de sócio que não integra o polo passivo da ação, desde que o faça para defender interesse próprio, sem se imiscuir indevidamente na esfera de direitos do sócio.
8. A teoria da causa madura não é aplicável ao julgamento do recurso especial, devido à inafastável necessidade de prequestionamento da matéria. Precedentes. Portanto, reconhecida a legitimidade recursal da recorrente, o processo deve retornar à origem para o julgamento do mérito do agravo de instrumento por ela interposto.
9. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

Leia o acórdão no REsp 2.057.706.

Esta notícia refere-se ao(s) processo(s): REsp 2057706

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