Pessoa com doença mental incapacitante tem direito imprescritível ao auxílio-doença e à conversão em aposentadoria

Um cidadão que sofre de psicose orgânica, identificado por perícia judicial como incapaz para os atos da vida civil em processo de interdição, ganhou na Justiça Federal de 1º grau o direito de restabelecimento do auxílio-doença e a conversão em aposentadoria por invalidez. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), porém, apelou da sentença no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1).

No recurso, a autarquia federal sustentou a prescrição dos eventuais créditos vencidos antes dos cinco anos que antecedem o ajuizamento da ação e argumentou que se passaram mais de dez anos entre o requerimento administrativo do auxílio-doença e a data da ação. Por isso, alegou que ocorreu a decadência, ou seja, a perda do direito aos benefícios. O INSS também entendeu que não deve ser concedida a aposentadoria por invalidez alegando que o perito havia concluído pela inexistência de incapacidade.

O relator, desembargador federal Gustavo Soares Amorim, iniciou a análise do processo observando que não se aplica a decadência e nem a prescrição prevista no art. 103 da Lei 8.213/1991 (Lei sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social). A primeira porque não se trata de revisão, mas sim de concessão do benefício que havia sido indeferido pelo INSS, e a segunda porque a prescrição não corre contra os incapazes que não têm discernimento para os atos da vida civil, definidos como tal pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015).

O autor teve a condição verificada pela perícia judicial produzida na ação que declarou sua interdição.

Prosseguindo o voto, o magistrado verificou que, no caso, ficou comprovada a qualidade de segurado e o período de carência, conforme as contribuições à Previdência Social do autor do processo. A doença do segurado decorre de um tiro que atingiu seu crânio, sendo que o próprio INSS reconheceu a data do início da incapacidade em 1993, quando lhe concedeu o auxílio-doença, embora o perito tenha fixado a data da incapacidade em 2008, explicou.

Assim, “da análise da prova pericial produzida nos autos, verifica-se que o autor está incapacitado, total e permanentemente, para o trabalho desde dezembro de junho de 1992, devendo ser mantida a sentença que determinou a implantação do benefício de aposentadoria por invalidez ao autor desde a data da cessação do benefício”, concluiu o relator votando no sentido de manter a sentença favorável ao autor do processo.

O recurso ficou assim ementado:

PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. TRABALHADOR URBANO. APOSENTADORIA POR INVALIDEZ. COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS. LAUDO PERICIAL CONCLUSIVO. RECONHECIMENTO DA INCAPACIDADE TOTAL E PERMANENTE PARA O TRABALHO. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA AFASTADAS. PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INCAPACIDADE PARA OS ATOS DA VIDA CIVIL. DATA DO INÍCIO DO BENEFÍCIO. CESSAÇÃO DO BENEFÍCIO. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO.

1. Não se configura a decadência no presente caso (art. 103 da Lei n. 8.213/91), uma vez que o pedido da parte autora não se refere à revisão, mas sim à concessão de benefício que foi indeferido pela Autarquia.

2. Conforme já decidiu esta Turma “o teor do inciso I, do art. 198 do Código Civil dispõe que a prescrição não corre contra os incapazes de que trata o art. 3º daquele diploma. A redação do art. 3º do Código Civil foi alterada pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), passando a definir como absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil apenas os menores de 16 (dezesseis) anos. Entretanto, o Estatuto da Pessoa com Deficiência deve ser lido sistemicamente, a fim de colocar a salvo os interesses dos portadores de deficiência que não disponham de discernimento para os atos da vida civil, sob pena de ferir todo arcabouço protetivo intentado pelo legislador.” (AC 1009340-38.2018.4.01.3400, DESEMBARGADOR FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA, TRF1 – PRIMEIRA TURMA, PJe 08/09/2020 PAG.). Também nesse sentido, os precedentes: CC 1039790-08.2020.4.01.0000, DESEMBARGADOR FEDERAL CÉSAR JATAHY, TRF1 – PRIMEIRA SEÇÃO, PJe 19/10/2021 PAG; AC 0007219-93.2013.4.01.9199, JUIZ FEDERAL CLEBERSON JOSÉ ROCHA (CONV.), TRF1 – SEGUNDA TURMA, e-DJF1 20/11/2015 PAG 4265.

3. Assim, somente “as pessoas com deficiência que têm discernimento para a prática de atos da vida civil não devem mais ser tratados como incapazes, estando, inclusive, aptos para ingressar no mercado de trabalho, casar etc. Os portadores de enfermidade ou doença mental que não têm o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil persistem sendo considerados incapazes, sobretudo no que concerne à manutenção e indisponibilidade (imprescritibilidade) dos seus direitos” (cf. TRF4, AC 5008232-30.2016.4.04.7202, TURMA REGIONAL SUPLEMENTAR DE SC, Relator PAULO AFONSO BRUM VAZ, juntado aos autos em 16/10/2018).  Deste modo, não há falar em prescrição, porquanto, o autor é portador de psicose orgânica, tendo sido reconhecido, pela perícia judicial produzida em sede de ação de interdição, como incapaz para os atos da vida civil, a partir de novembro de 2008 (Id. 85806775).

4. São requisitos para a concessão do benefício previdenciário de auxílio-doença/aposentadoria por invalidez: (a) a qualidade de segurado; (b) período de carência de 12 (doze) contribuições mensais, ressalvadas as hipóteses previstas no art. 26, II, da Lei 8.213/91; e (c) a incapacidade temporária para o trabalho por mais de 15 (quinze) dias (para o auxílio-doença) ou incapacidade total e permanente para atividade laboral (no caso de aposentadoria por invalidez).

5. Nos termos do art. 15, I e II, da Lei 8.213/1991, mantém a qualidade de segurado, independentemente de contribuições: (i) sem limite de prazo, quem está em gozo de benefício, exceto do auxílio-acidente; e (ii) até 12 meses após a cessação das contribuições, o segurado que deixar de exercer atividade remunerada abrangida pela Previdência Social, caso em que o prazo do inciso II será prorrogado para até 24 (vinte e quatro) meses se o segurado já tiver pago mais de 120 (cento e vinte) contribuições mensais sem interrupção que acarrete a perda da qualidade de segurado (cf. § 1º), acrescidos de mais 12 (doze) meses para o segurado desempregado na forma do § 2º, ocorrendo a perda da qualidade de segurado no dia seguinte ao do término do prazo fixado no Plano de Custeio da Seguridade Social para recolhimento da contribuição referente ao mês imediatamente posterior ao do final dos prazos fixados neste artigo e seus parágrafos (cf. § 4º).

6. Na hipótese em exame, relativamente à incapacidade, o último laudo pericial (Id. 85801963), produzido em 22/03/2019,  foi conclusivo no sentido de que o autor “é portador de Síndrome amnésica orgânica não induzida por álcool, CID F04, transtorno mental e do comportamento devido a lesão cerebral, CID F06.8 e epilepsia pós-traumática, CID G40. O laudo afirma ainda, que “a doença decorre de trauma craniano por projétil de arma de fogo ocorrido em julho de 1998, agravado por meningite e procedimentos cirúrgicos posteriores, com incapacidade documentada em laudo pericial desde novembro de 2008, estando total e permanentemente incapaz para o exercício de atividade laborativa”. Ademais, verifica-se, que o autor recebeu o benefício auxílio-doença entre 28/12/1993 à 15/08/2018, quando o benefício foi cessado.

7. No caso, embora a perícia tenha fixado a data da incapacidade em novembro de 2008, verifica-se que a doença que acomete o autor é a mesma que ensejou a percepção do primeiro benefício, uma vez que é decorrente de trauma craniano por projétil de arma de fogo ocorrido em 10/06/1992 (Id. 26175094), sendo que o próprio INSS reconheceu a data de Início da Incapacidade do requerente em 1993, quando concedeu o benefício de auxílio-doença naquela época.

8. Note-se que, conforme art. 43 da Lei 8.213/1991 “a aposentadoria por invalidez será devida a partir do dia imediato ao da cessação do auxílio-doença, ressalvado o disposto nos §§ 1º, 2º e 3º deste artigo” (AgRg no Ag 1090820/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, QUINTA TURMA, julgado em 18/10/2012, DJe 25/10/2012).

9. Assim, da análise da prova pericial produzida nos autos, verifica-se que o autor está incapacitado, total e permanentemente, para o trabalho desde junho de 1992, devendo ser mantida a sentença que determinou a implantação do benefício de aposentadoria por invalidez ao autor desde a data da cessação do benefício de auxílio-doença nº 0540346080, em 16/08/1998.

10. Atualização monetária e juros devem incidir nos termos do Manual de Cálculos da Justiça Federal, atendendo-se aos parâmetros estabelecidos no julgamento do RE 870.947 (Tema 810/STF) e REsp 1.492.221 (Tema 905/STJ).

11. Publicada a sentença na vigência do atual CPC (a partir de 18/03/2016, inclusive) e desprovido o recurso de apelação, deve-se aplicar o disposto no art. 85, § 11, do CPC, para majorar os honorários arbitrados na origem em 1% (um por cento).

12. Apelação do INSS desprovida.

 

Processo: 1003507-36.2018.4.01.3304

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