A 3ª Turma do TRF 1ª Região afastou a circunstância qualificadora “motivo torpe” e reduziu as penas aplicadas pelo juiz federal presidente do Tribunal do Júri Federal da Subseção Judiciária de Eunápolis/BA decorrente da decisão do Conselho de Sentença que condenou dois indígenas da etnia Pataxó, o cacique e seu subordinado, de 18 para 15 anos de reclusão e de 16 para 14 anos e seis meses de reclusão, respectivamente. Os índios foram condenados pelos crimes de homicídio, cárcere privado e ocultação de cadáver.
De acordo com a denúncia, no dia 09/08/2014, na Fazenda Brasília, situada na zona rural de Porto Seguro (BA), ocupada pelos silvícolas, os indígenas mantiveram um homem, que tinha sido convidado pelo proprietário do imóvel, amarrado com uma corda e em seguida o assassinaram. No intuito de impedir a identificação da vítima, os silvícolas destruíram e ocultaram o cadáver. O proprietário da fazenda conseguiu fugir. Consta dos autos que várias testemunhas presenciaram o fato.
Em defesa dos indígenas, a Procuradoria-Geral Federal recorreu ao TRF1 sustentando, entre outros argumentos, a nulidade absoluta do julgamento, uma vez que uma das testemunhas, considerada imprescindível, sequer foi ouvida. Argumentou que a denúncia foi produzida unicamente pela versão dada pelo proprietário da fazenda. Por fim, caso nenhuma das teses fosse aceita pelo Colegiado, requereu a reanálise da dosimetria da pena por entender favoráveis todas as circunstâncias judiciais dos envolvidos, devendo a pena de prisão ser aplicada no mínimo legal.
Decisão – Ao analisar o caso, o relator, desembargador federal Ney Bello, destacou que não há que se falar em nulidade decorrente da ausência de oitiva de testemunhas, uma vez que a própria defesa, em diversas oportunidades, foi chamada para regularizar o rol de testemunhas e não demonstrou interesse necessário na oitiva de testemunha, bem como o tipo de prejuízo causado aos representados.
O desembargador federal salientou que, mesmo sendo uma espécie de crime que deixa vestígios, característica que exigiria o exame de corpo de delito na forma do art. 158 do CPP, a prova testemunhal supre a ausência do exame, nos termos do art. 167 do CPP, uma vez que o corpo da vítima jamais foi encontrado. O relator fez referência ao “caso Bruno”, ex-goleiro do Flamengo que foi considerado o autor do homicídio de Elisa Samúdio.
O magistrado explicou, no entanto, que a dosimetria precisava ser revista, pois há nos autos provas de que a vítima de homicídio teria tentado assassinar três indígenas, inclusive uma em trabalho de parto. “As relações entre os indígenas têm muitas peculiaridades. O sentimento de vingança diante das tentativas de mortes violentas de silvícolas de seu grupo, além da insegurança provocada em todos os demais, pode muito bem tê-lo levado, como chefe, bem como o corréu, seu subordinado, a agir tanto preventivamente quanto na forma de resposta à suposta ação do falecido”, explicou. “Assim, a vingança torpe deve ser afastada da dosimetria, com fulcro no precedente do STJ”, finalizou.
O recurso ficou assim ementado:
PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. TRIBUNAL DO JÚRI. HOMICÍDIO PRATICADO POR SILVÍCOLAS. CÁRCERE PRIVADO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. OITIVA DE TESTEMUNHA EM PLENÁRIO. NULIDADE INEXISTENTE. SENTENÇA DE PRONÚNCIA. ALEGAÇÃO DE FALTA DE JUSTA CAUSA. MATERIALIDADE E INDÍCIOS DE AUTORIA PRESENTES. PROVA CONTRÁRIA AOS AUTOS. NÃO COMPROVAÇÃO. TESE ENCAMPADA PELO CONSELHO DE SENTENÇA COMPATÍVEL COM AS PROVAS CARREADAS AOS AUTOS. SOBERANIA DO VEREDITO. VINGANÇA. MOTIVO TORPE. AFASTAMENTO. PECULIARIDADE DO CASO. 1. Não há que se falar em nulidade decorrente da ausência de oitiva, no plenário do Tribunal do Júri, de testemunha considerada imprescindível, uma vez que a própria defesa, em diversas oportunidades concedidas pelo Juízo, foi chamada a regularizar o rol e não demonstrou o interesse específico, bem como o suposto prejuízo para os representados. 2. É sem fundamento a pretendida nulidade do julgamento pelo Tribunal do Júri, por ausência de justa causa, quando a sentença de pronúncia demonstra, inequivocamente, a presença de materialidade e indícios de autoria na forma do art. 413, § 1º, do Código de Processo Penal. 3. A alegação de condenação contrária à prova dos autos é infundada, no caso da escolha, pelo Conselho de Sentença, de uma tese compatível com as provas carreadas aos autos. 4. A soberania dos vereditos do Tribunal do Júri, princípio de estatura constitucional, impede a reforma da decisão do Conselho de Sentença por juízes togados, caso não haja demonstração de que é contrária à prova dos autos. 5. Segundo jurisprudência do STJ, a vingança (…) é aquela que mais vivamente ofende a moralidade média, o senso ético social comum. É o motivo abjeto, repugnante, indigno. A realidade fática, as características do acontecimento, as peculiaridades relevantes e as condições das pessoas envolvidas é que nortearão o intérprete na acolhida ou na repulsa do gravame (REsp 1637001/PR; rel. Ministro Rogério Schietti Cruz; Sexta Turma; unânime; DJe de 19/12/2017). 6. Dada a peculiaridade das relações entre indígenas, o fato de um dos réus ser cacique da tribo e o outro, seu subordinado, e diante da tentativa de assassinato de 03 (três) indígenas, inclusive uma em trabalho de parto, pela vítima do homicídio que foi descrita na denúncia como uma pessoa que andava armada, a vingança torpe deve ser afastada da dosimetria, com fulcro no precedente do STJ. 7. Apelação parcialmente provida.
A decisão foi unânime.
Processo nº: 0002901-46.2014.4.01.3310