O prazo de validade das patentes de medicamentos mailbox no Brasil é limitado a vinte anos contados da data do depósito do pedido no Instituto Nacional da Propriedade Industrial –INPI. Mailbox é o termo usado para os produtos farmacêuticos depositados na autarquia entre 1º de janeiro de 1995 e 14 de maio de 1997.
Essa foi a tese firmada pela 1ª Seção Especializada do TRF2, que julgou na quinta-feira, 27 de junho, incidente de resolução de demanda repetitiva (IRDR) apresentada pelo Trinity College, universidade sediada em Dublin, Irlanda. A instituição pretendia convencer os julgadores a mudar o entendimento que já vinha sendo adotado pela Corte e que, no entanto, agora foi confirmado.
Com o posicionamento definido no IRDR, o colegiado conclui que não vale o argumento dos laboratórios, que defendem a vigência da exclusividade de produção e comercialização desses produtos por, pelo menos, dez anos, calculados da data da concessão da patente. Na prática, por conta da demora do INPI em analisar os pedidos de patente, a mudança de entendimento beneficiaria grandes indústrias farmacêuticas, possibilitando a extensão do prazo de proteção para além dos vinte anos previstos na Lei de Propriedade Industrial (LPI).
Com a decisão, o TRF2 define orientação que deverá ser seguida em todos os processos que tratem do mesmo tema na Justiça Federal do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Este foi o primeiro IRDR julgado pela 1ª Seção Especializada. O instrumento, que serve para a unificação de entendimento sobre demandas idênticas em segundo grau de jurisdição, foi instituído pelo Código de Processo Civil de 2015.
O caso começou com uma ação ajuizada pelo INPI pedindo a declaração de nulidade da patente PI9700768-4, que se refere a uma vacina viva para combater infecção por estreptococos (um gênero de bactérias) em cavalos. O registro havia sido concedido ao Trinity College pelo própria autarquia, que decidiu rever administrativamente a validade de centenas de registros mailbox. A 13ª Vara Federal do Rio de Janeiro concedeu antecipação de tutela (um tipo de liminar) ao INPI. Contra essa medida, a instituição irlandesa recorreu ao Tribunal, que manteve a decisão de primeiro grau. Por conta disso, o Trinity College suscitou o IRDR.
Entenda a controvérsia
O antigo código brasileiro da propriedade industrial, a Lei nº 5.772, de 21 de dezembro de 1971, vetava o patenteamento de remédios e produtos agroquímicos. A regra mudou em 1994, quando o Brasil aderiu ao acordo TRIPs (em português, Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), firmado em um encontro realizado naquele ano no Uruguai. Na oportunidade, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Nas negociações, os Estados signatários se comprometeram a manter regras de proteção para esses produtos, o que, no Brasil, realizou-se com o Decreto nº 1355, de 1994. Dois anos depois foi sancionada a nova Lei de Propriedade Industrial (LPI – Lei 9.279/1996), que, retroativamente, garantiu a patenteabilidade de medicamentos depositados no INPI entre o início da vigência do Decreto 1355/1994 e o da atual LPI, ou seja, entre 1º de janeiro de 1995 e 14 de maio de 1997, criando a categoria mailbox.
Nas ações judiciais, as empresas farmacêuticas costumam basear os argumentos no parágrafo único do artigo 40 da nova lei, que prevê o prazo mínimo de dez anos de vigência da patente, a contar da data de concessão. Mas, no entendimento unânime dos julgadores da 1ª Seção Especializada, essa contagem não se aplica às patentes de medicamentos mailbox, já que o artigo 229 da LPI ordena que o cálculo do prazo, para esses produtos, seja feito a partir da “data efetiva do depósito do pedido no Brasil ou da prioridade, se houver, assegurando-se a proteção a partir da data da concessão da patente, pelo prazo remanescente a contar do dia do depósito no Brasil, limitado ao prazo previsto no caput [cabeça] do artigo 40”. O caput desse artigo determina a vigência da patente de invenção pelo prazo de vinte anos.
Interesse público
Em seu voto, o relator do IRDR, desembargador federal Ivan Athié, ressaltou a necessidade de fixação de uma tese jurídica sobre o problema e destacou que a interpretação da norma deve “resguardar prioritariamente o interesse público, em detrimento do particular”. O magistrado rebateu o argumento de que o Judiciário Federal estaria quebrando a isonomia em relação ao tratamento dado à questão pelos demais países da OMC, já que “escritórios de patentes de outros Estados membros, correspondentes ao INPI, também adotam critérios que estabelecem a precedência do interesse coletivo”.
Ainda, Ivan Athié, citando o parecer do Ministério Público Federal, ponderou que a dificuldade do INPI em analisar os pedidos de patente com rapidez não serve de justificativa para beneficiar a indústria farmacêutica: “O ônus da mora não pode ser transferido para a sociedade”, alertou.
Concluindo, o relator lembrou que os laboratórios contam com a proteção de seus produtos desde a data do depósito, independentemente de haver patente concedida, já que o artigo 44 da LPI assegura o direito de indenização pela exploração indevida do produto, “inclusive em relação à exploração ocorrida entre a data da publicação do pedido e a da concessão da patente”.
O recurso ficou assim ementado:
PROPRIEDADE INDUSTRIAL. APELAÇÃO CÍVEL. SUSPENSÃO DO PROCESSO EM VIRTUDE DE INTERPOSIÇÃO DE INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS . NÃO CABIMENTO . COMPETÊNCIA DO RELATOR DO INCIDENTE NOS TERMOS DO ART. 982 DO CPC/15 E DO ART. 113-A DO REGIMENTO INTERNO DO TRF2 . PATENTES CONCEDIDAS SOB O SISTEMA MAILBOX. PRAZO DE VIGÊNCIA. 20 (VINTE) ANOS A CONTAR DA DATA DO DEPÓSITO. APLICAÇÃO DOS ARTIGOS 229, PARÁGRAFO ÚNICO C/C 40, CAPUT DA LPI. VIOLAÇÃO DA SEGURANÇA JURÍDICA, DA BOA FÉ E DO PRINCÍPIO DA CONFIANÇA. INOCORRÊNCIA. APELAÇÃO CÍVEL PROVIDA. APELAÇÃO ADESIVA. DANOS MORAIS E MATERIAIS. INEXISTÊNCIA. RECURSO ADESIVO DESPROVIDO. 1. Compete ao Relator do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) a eventual determinação de suspensão do presente feito, nos termos do art. 982 do CPC/2015 e do art. 113-A do Regimento Interno do TRF2. 2. As patentes das empresas apeladas foram concedidas sob o sistema conhecido como mailbox. O parágrafo único do art. 229, ao estabelecer que o prazo de vigência será “limitado ao prazo previsto no caput do art. 40”, visa a que as patentes mailbox não tenham proteção que ultrapasse vinte anos a partir do depósito do pedido de patente. E isto exatamente porque as patentes mailbox foram protegidas quanto ao seu exame, numa “caixa” que as resguardava da aplicação de uma legislação que repercutiria em seu indeferimento, o que fazia mesmo com que fosse necessário que houvesse um prazo para sua apreciação, o que foi estabelecido pelo art. 229-B, remetendo o seu parágrafo único ao limite do art. 40 caput, ambos da LPI. É ainda uma norma de transição que se aplica especialmente às patentes mailbox, estando, inclusive, inserta no Título VIII “Das disposições transitórias e finais”. 3. A regra das patentes denominadas mailbox, contida no art. 229, parágrafo único, da LPI, 1 remetendo ao caput do art. 40, está mais em consonância com o sistema geral do que a criação brasileira do parágrafo único do art. 40. Para as patentes mailbox, há um prazo definido para decisão da autarquia: até 31 de dezembro de 2004. Por essa razão, não há que se adotar um dispositivo que visa a trazer um prazo limite após a concessão, previsto para aquelas hipóteses em que não se assinalou um prazo ao INPI, a pretexto de ampliar a vigência da patente em virtude da inércia da autarquia, em desacordo, portanto, com a própria razão de ser de sua inclusão excepcional na Lei, que foi a de prever termo a quo de privilégio que nenhum país do mundo adota: a concessão. Destarte, na verdade a regra geral é mesmo a do caput do art. 40, sobremodo quando ao INPI foi assinalado legalmente um prazo para decisão, como no caso das patentes mailbox, no art. 229-B da LPI. Consiste, pois, o parágrafo único do art. 40, a exceção para limitar o prazo de privilégio nos casos de enorme demora da autarquia na tomada da decisão, quando a ela não se determinou legalmente prazo para tanto, tendo como termo a quo, excepcionalmente mais uma vez, a data da concessão. 4. Não se trata de adotar o art. 40, parágrafo único como uma espécie de sanção ao INPI ou compensação ao titular da patente em razão da demora ou descumprimento da Lei específica para o caso, por parte da autarquia. Até porque, dada a sistemática legal, tal aplicação apenas puniria, ao cabo de tudo, a coletividade no que respeita, agora, ao resguardo da função social que deve também revestir o sistema patentário, haja vista que o ato administrativo de concessão de patente não assume o aspecto somente de ato administrativo unilateral concreto. Precisamente por essa razão, e com fulcro no art. 2º da Lei n. 5.648, de 11 de dezembro de 1970, é que o INPI busca anular o ato, judicialmente, no exercício de sua atribuição de “executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica”. 5. Diante de um ato originariamente praticado contra a legalidade expressa na Lei (não decisão até 31 de dezembro de 2004), em disposição normativa que inclusive era do conhecimento das próprias apeladas, cujo objeto de registro, a patente mailbox, se encontrava regulamentada naquela disposição legal do art. 229 da LPI, não podem agora as empresas argumentar a violação da boa fé objetiva. Não estão presentes os pressupostos para o reconhecimento da traição à confiança legítima: embora a Administração Pública tenha realmente agido concretamente, concedendo a patente com prazo definido de acordo com parágrafo único do art. 40, não atuou com surpresa imprevisível para as empresas, seja quanto ao descumprimento do que dispunham os artigos, 40, caput e 229-B da LPI, seja no que concerne à probabilidade de que, notando o equívoco na concessão, certamente atuaria para buscar consertar o que fez. Nessa esteira, também não se constata violação à segurança jurídica na ação do INPI. É que o ato de concessão da patente, no caso, como ato jurídico, 2 também não se apresentou perfeito a ponto de reunir lidimamente todos os seus elementos essenciais. 6. Em uma ponderação de custos e benefícios advindos da manutenção da ilegalidade praticada pelo INPI na origem da concessão e que agora procura reparar, quem sofreria os efeitos negativos da concessão errada do prazo de vigência maior para as patentes mailbox em causa seria a coletividade, que teria que arcar com medicamentos caros (seja o particular ou o próprio Estado através do SUS). Afinal, é ponto pacífico que a diminuição da concorrência impacta diretamente nos preços e no acesso a medicamentos. 7. Sobre a responsabilidade civil, a literalidade do Código Civil de 2002 determina, em seus artigos 186 e 927, que a parte que pleiteia uma reparação por danos materiais ou morais deve comprovar a conduta ilícita da outra parte; a ocorrência de um dano gerado em razão de tal ação ou omissão; e, ainda, o nexo de causalidade, isto é, o vínculo entre o ato e o resultado danoso. Quanto ao pedido de indenização por danos materiais, é cediço que somente é indenizável o dano material mediante prova efetiva de sua ocorrência. De acordo com a regra geral, o dano deve ser demonstrado, não presumido. Porém, conforme a própria apelante afirmou, a empresa não dispõe dos elementos para mensurar os danos materiais alegadamente sofridos. No que tange ao pedido de indenização por danos morais, de plano identifico o seu descabimento, posto que o dano moral da Pessoa Jurídica está estritamente vinculado à sua honra objetiva, isto é, a PJ somente é capaz de sofrer dano moral quando o conceito, a reputação, o crédito que possui perante a sociedade é abalado (STJ, Informativo nº 508, de novembro de 2012, REsp 1.298.689-RS, Rel. Min. Castro Meira, julgado em 23/10/2012). 8. Eventual erro ou mora da Administração Pública não exime a parte interessada de comprovar a prática do ato ilícito e do nexo de causalidade com o resultado danoso. A apelação adesiva não logrou êxito em demonstrar qualquer dano moral ou material sofrido, ônus que lhe caberia, nos termos do art. 373 do CPC. Descaracterizada a pretensão da requerente. 9. Apelação do INPI provida. Apelação adesiva desprovida.
Processo 0014410-75.2017.4.02.0000