A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reformou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) e afastou condenação imposta à Bovespa para indenizar uma investidora pela venda irregular de ações mediante procuração falsa.
O documento teria sido apresentado à corretora, que, por sua vez, ordenou a venda das ações. Para o colegiado, não há relação de consumo entre a Bolsa de Valores e a investidora para justificar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) ao caso.
“A entidade de compensação e liquidação presta fundamental serviço no âmbito do mercado de capitais, mas não os fornece no mercado de consumo, tampouco ao público em geral, mantendo relação exclusivamente com as distribuidoras e corretoras de valores mobiliários – instituições previamente autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para exercer tais atividades”, explicou a relatora, ministra Nancy Andrighi.
Ações vendidas após entrega de uma procuração falsa
Na origem, a investidora ajuizou uma ação de indenização após descobrir que suas 20 mil ações da Telemar foram vendidas em 1993 com o uso de uma procuração falsa apresentada à corretora. A sentença foi favorável à investidora, condenando a Bovespa (na época dos fatos Câmara de Liquidação e Custódia – CLC) ao pagamento das ações e de danos morais. Na decisão, o Juízo de primeiro grau aplicou o CDC.
O TJRJ manteve a condenação, reconhecendo a responsabilidade objetiva da Bovespa por entender que a relação jurídica entre a titular das ações e a ré teria sido regida pelo CDC.
No recurso especial, a Bovespa destacou, entre outros pontos, que não se enquadra no conceito de fornecedora de serviços no mercado de consumo, pois presta serviços às corretoras de valores que negociam títulos no mercado financeiro.
Não há relação de consumo entre investidores e bolsa de valores
Ao analisar o caso, a ministra Nancy Andrighi destacou que não há relação de consumo entre os investidores e a recorrente, mas apenas uma relação interempresarial entre a Bovespa e as corretoras. Segundo apontou, a relação jurídica entre a recorrente e o investidor não tem natureza consumerista e é regulamentada por normas especiais, razão pela qual não incide o CDC.
A relatora lembrou que uma das condições para o investidor negociar títulos e ações na bolsa de valores é a contratação de uma corretora, conforme disposto no artigo 15, inciso III e VI da Lei 6.385/1976 e artigo 2º do Regulamento Anexo à Resolução CMN 1.655/1989. Nessa linha de raciocínio, cabe às corretoras fazerem a negociação direta na Bovespa.
“Diante da não incidência do CDC, a responsabilidade civil da recorrente deve ser analisada à luz dos direitos e deveres fixados nas normas específicas”, destacou.
Corretoras possuem o dever de conferir documentação dos investidores
Nancy Andrighi afirmou que, nessa ordem de negócios, de acordo com as Resoluções CMN 1.655/1989 e 1.656/1989, o dever de verificar a legitimidade da procuração do titular das ações é da sociedade corretora e não da Bovespa, a quem cabe apenas assegurar o cumprimento da ordem dada por aquela.
“A entidade de compensação e liquidação não pode ser responsabilizada pelos prejuízos decorrentes da negociação de ações na bolsa de valores, mediante uso de procuração falsa em nome do titular apresentada à corretora de valores”, enfatizou a relatora.
A ministra ressalvou, contudo, ser possível “que, em determinada situação concreta, fique comprovada alguma atitude culposa efetivamente praticada pela CLC [Bovespa], no exercício de suas atividades, a ensejar a condenação pelos danos causados, o que deve ser analisado em cada hipótese, como matéria de mérito“.
O recurso ficou assim ementado:
CIVIL, PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E DE COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. DENUNCIAÇÃO DA LIDE. AUSÊNCIA DE NULIDADE. PRESCRIÇÃO. INTERRUPÇÃO PELA CITAÇÃO. OCORRÊNCIA. SÚMULA 106⁄STJ. PRAZO PRESCRICIONAL. CC⁄1916. AUSÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. VENDA DE AÇÕES NA BOLSA DE VALORES MEDIANTE PROCURAÇÃO FALSA. DINÂMICA DO MERCADO DE CAPITAIS. PROCURAÇÃO APRESENTADA À CORRETORA DE VALORES MOBILIÁRIOS. ORDEM DE VENDA DADA PELA CORRETORA. OPERAÇÃO DE VENDA EFETIVADA PELA ENTIDADE DE COMPENSAÇÃO E LIQUIDAÇÃO. CÂMARA DE LIQUIDAÇÃO E CUSTÓDIA. RELAÇÃO DE CONSUMO COM O TITULAR DAS AÇÕES. INEXISTÊNCIA. INCIDÊNCIA DE NORMAS ESPECIAIS. EXAME DA LEGITIMIDADE DA PROCURAÇÃO. DEVER DA CORRETORA. RESPONSABILIDADE DA ENTIDADE DE COMPENSAÇÃO E LIQUIDAÇÃO. INEXISTÊNCIA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL PREJUDICADO.1. Ação de indenização de danos materiais e de compensação por danos morais, ajuizada em 3⁄2⁄2000, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 15⁄7⁄2016 e concluso ao gabinete em 29⁄6⁄2022.2. O propósito recursal é definir se (I) há nulidade por ausência de denunciação da lide; (II) ocorreu a prescrição da pretensão da autora; (III) a relação jurídica entre o investidor titular das ações e a entidade de compensação e liquidação das operações em bolsa de valores é regida pelo CDC; e (IV) há responsabilidade dessa entidade na hipótese de venda indevida de ações na bolsa de valores, mediante procuração falsa apresentada à corretora.3. Segundo a jurisprudência desta Corte, o estado avançado do processo – após a prolação de sentença de mérito, por exemplo – não recomenda o deferimento do pedido de denunciação da lide, sob pena de afronta aos mesmos princípios que o instituto busca preservar.4. Nos termos da Súmula 106⁄STJ, “proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação, por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não justifica o acolhimento da argüição de prescrição ou decadência”.5. Conforme a dinâmica legal do mercado de capitais, o investidor contrata os diversos serviços prestados pela corretora (agente de custódia) e esta, por sua vez, contrata o serviço de custódia prestado, na época, pela Câmara de Liquidação e Custódia S⁄A (CLC), na qual a corretora abre uma conta em nome do titular das ações e as deposita, para que, após, a CLC, mediante ordem da corretora, execute na bolsa de valores as operações relativas a essas ações.6. A corretora fornece a prestação de seus serviços no mercado de consumo, mediante remuneração, os quais são adquiridos e utilizados pelo investidor como destinatário final, caracterizando uma relação de consumo. Precedentes.7. Por outro lado, a entidade de compensação e liquidação presta fundamental serviço no âmbito do mercado de capitais, mas não os fornece no mercado de consumo, tampouco ao público em geral, mantendo relação exclusivamente com as distribuidoras e corretoras de valores mobiliários – instituições previamente autorizadas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para exercer tais atividades.8. Não se desconsidera que há uma relação jurídica entre os investidores e as entidades que atuam exclusivamente para viabilizar o funcionamento do mercado de capitais e fiscalizá-lo, na condição de órgãos auxiliadores da CVM (dentre elas, a CLC, na forma do art. 17, § 1º, da Lei nº 6.385⁄1976), mas se trata de uma relação especial, regulamentada por normas específicas.9. Portanto, não incide o CDC na relação jurídica existente entre o investidor titular das ações e a entidade de compensação e liquidação de operações na bolsa de valores (na época, a CLC).10. Nas operações realizadas em bolsa de valores, a sociedade corretora é responsável perante os seus clientes pela legitimidade de procuração ou documentos necessários para a transferência de valores mobiliários, conforme as Resoluções CMN nº 1.655⁄1989 e 1.656⁄1989.11. Portanto, essa responsabilidade não pode ser atribuída à CLC, uma vez que ela não tem o dever de verificar a legitimidade da procuração do investidor, mas tão somente o de assegurar o adequado cumprimento da ordem dada pela corretora. Essa procuração nem chega a ser analisada pela CLC, não havendo, assim, como imputar a ela uma conduta culposa por não ter verificado a falsidade do documento.12. Por consequência, a CLC – sucedida pela recorrente BM&F BOVESPA S.A. – não pode ser responsabilizada pelos prejuízos decorrentes da negociação de ações na bolsa de valores, mediante uso de procuração falsa em nome do titular apresentada à corretora de valores. Precedentes.13. Hipótese em que (I) afastada a incidência do CDC, não ocorreu a prescrição da pretensão da autora, considerando o prazo prescricional de 20 anos previsto no art. 177 do CC⁄1916; (II) a autora recorrida ajuizou a ação apenas contra a CLC e a TELEMAR, esta já excluída do polo passivo por decisão que não foi objeto de recurso; e (III) o Tribunal de origem, aplicando o CDC, reconheceu a responsabilidade da recorrente (BM&F BOVESPA S.A., que sucedeu a CLC).14. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido, para julgar improcedentes os pedidos formulados na inicial.
Leia o acórdão no REsp 1.646.261.