“Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.”
Essa foi a tese fixada pela Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), sob a sistemática dos recursos repetitivos, ao revisar o entendimento firmado anteriormente pelo colegiado no Tema 931. Os ministros estabeleceram um tratamento diferente para o caso de não pagamento da multa pelos condenados hipossuficientes ou insolventes.
Para o relator, ministro Rogerio Schietti Cruz, a extinção da punibilidade tem especial importância na situação do ex-presidiário, pois lhe permite exercer direitos e evita sua “invisibilidade civil”.
O magistrado ressaltou que esse novo entendimento significa para o condenado sem condições financeiras “a reconquista de sua posição como indivíduo aos olhos do Estado”, permitindo-lhe reconstruir sua vida “sob as balizas de um patamar civilizatório mínimo”. A interdição de direitos decorrente da não extinção da punibilidade, segundo Schietti, leva esses condenados a um “estágio de desmedida invisibilidade”, comparável “à própria inexistência de registro civil”.
Posição do STF levou à reforma da tese no STJ
Em um dos recursos submetidos a julgamento, a Defensoria Pública de São Paulo argumentou que a não extinção da punibilidade por causa da multa impede o acesso a programas assistenciais, essenciais para a reinclusão social e o exercício da cidadania.
Ao dar provimento ao recurso, o ministro Schietti explicou que, em 2015, na votação do Tema 931 dos repetitivos, a Terceira Seção definiu que, no caso de condenação a pena privativa de liberdade e a multa, havendo o cumprimento da primeira, o não pagamento da segunda não impediria o reconhecimento da extinção da punibilidade (REsp 1.519.777).
Em 2019, porém, o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.150, firmou o entendimento de que a alteração do artigo 51 do Código Penal não retirou o caráter criminal da pena de multa, de modo que o seu inadimplemento impediria a extinção da punibilidade – compreensão posteriormente sintetizada pela Lei 13.964/2019.
Em decorrência da posição do STF e da alteração do Código Penal, em setembro de 2021, o STJ reformou a tese do Tema 931 para considerar que o não pagamento da multa deveria obstar a extinção da punibilidade.
Entendimento voltado para os crimes de colarinho-branco
No entanto, Schietti observou que o STF, naquele julgamento, ressaltou o papel de prevenção e retribuição da pena de multa nos crimes de natureza econômica; e, ainda em 2015, ao julgar um recurso em execução penal, a Suprema Corte havia estabelecido que, nos crimes contra a administração pública e nos “crimes de colarinho-branco” em geral, a pena de multa deveria ser executada com mais rigor, impedindo, se não cumprida, a progressão de regime – a menos que fosse comprovada “a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo”, mesmo em parcelas.
De acordo com o relator, as decisões do STF que consideram o pagamento da multa indispensável para a progressão penal ou para a extinção da punibilidade se dirigem aos condenados que têm condições econômicas para tanto, “de modo a impedir que o descumprimento da decisão judicial resulte em sensação de impunidade”.
O ministro mencionou ainda que a Recomendação 425/2021 do Conselho Nacional de Justiça aponta a necessidade de se considerar a extinção da punibilidade da pessoa egressa em situação de rua que, por hipossuficiência econômica, cumpriu somente a pena privativa de liberdade.
Sobrepunição da pobreza e indigência dos apenados hipossuficientes
Schietti destacou dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) segundo os quais, em dezembro de 2020, 40,91% dos presos no país estavam cumprindo pena por crimes contra o patrimônio; 29,9%, por tráfico de drogas, e 15,13%, por crimes contra a pessoa – todos crimes que cominam pena privativa de liberdade concomitantemente com pena de multa.
Para ele, o quadro atual tem produzido a sobrepunição da pobreza, visto que o egresso miserável e sem condições de trabalho durante o cumprimento da pena, alijado dos direitos do artigo 25 da Lei de Execução Penal, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa, e ingressa em círculo vicioso de desespero. A retomada dos direitos e a reinserção social desses indivíduos invisibilizados – acrescentou – não devem ser condicionadas ao prévio pagamento da multa, se comprovada a situação de hipossuficiência.
“O condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal de proteção da família”, observou.
O magistrado destacou que manter os condenados pobres com o mesmo tratamento dado aos ricos, quanto à exigência de cumprimento das penas traduzidas em valores, somente serviria para exacerbar “a assimetria socioeconômica tão intrínseca à própria desigualitária formação da sociedade brasileira, potencializada pelo sistema de Justiça criminal”.
O recurso REsp 1785861, ficou assim ementado:
RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. EXECUÇÃO PENAL. REVISÃO DE TESE. TEMA 931. CUMPRIMENTO DA SANÇÃO CORPORAL. PENDÊNCIA DA PENA DE MULTA. CUMPRIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE OU DE RESTRITIVA DE DIREITOS SUBSTITUTIVA. INADIMPLEMENTO DA PENA DE MULTA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPREENSÃO FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO JULGAMENTO DA ADI N. 3.150⁄DF. MANUTENÇÃO DO CARÁTER DE SANÇÃO CRIMINAL DA PENA DE MULTA. PRIMAZIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA EXECUÇÃO DA SANÇÃO PECUNIÁRIA. ALTERAÇÃO LEGISLATIVA DO ART. 51 DO CÓDIGO PENAL. DISTINGUISHING. IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PENA PECUNIÁRIA PELOS CONDENADOS HIPOSSUFICIENTES. PRINCÍPIO DA INTRASCENDÊNCIA DA PENA. VIOLAÇÃO DE PRECEITOS FUNDAMENTAIS. EXCESSO DE EXECUÇÃO. RECURSO PROVIDO.1. A Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do Recurso Especial Representativo da Controvérsia n. 1.519.777⁄SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 10⁄9⁄2015), assentou a tese de que “[n]os casos em que haja condenação a pena privativa de liberdade e multa, cumprida a primeira (ou a restritiva de direitos que eventualmente a tenha substituído), o inadimplemento da sanção pecuniária não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”.2. Entretanto, ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.150 (Rel. Ministro Marco Aurélio, Rel. p⁄ Acórdão Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-170 divulg. 5⁄8⁄2019 public. 6⁄8⁄2019), o Pretório Excelso firmou o entendimento de que a alteração do art. 51 do Código Penal, promovida Lei n. 9.268⁄1996, não retirou o caráter de sanção criminal da pena de multa, de modo que a primazia para sua execução incumbe ao Ministério Público e o seu inadimplemento obsta a extinção da punibilidade do apenado. Tal compreensão foi posteriormente sintetizada em nova alteração do referido dispositivo legal, levada a cabo pela Lei n. 13.964⁄2019.3. Em decorrência do entendimento firmado pelo STF, bem como em face da mais recente alteração legislativa sofrida pelo artigo 51 do Código Penal, o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento dos Recursos Especiais Representativos da Controvérsia n. 1.785.383⁄SP e 1.785.861⁄SP (Rel. Ministro Rogerio Schietti, 3ª S., DJe 21⁄9⁄2021), reviu a tese anteriormente aventada no Tema n. 931, para assentar que, “na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade”.4. Ainda consoante o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal julgamento da ADI n. 3.150⁄DF, “em matéria de criminalidade econômica, a pena de multa desempenha um papel proeminente de prevenção específica, prevenção geral e retribuição”.5. Na mesma direção, quando do julgamento do Agravo Regimental na Progressão de Regime na Execução Penal n. 12⁄DF, a Suprema Corte já havia ressaltado que, “especialmente em matéria de crimes contra a Administração Pública – como também nos crimes de colarinho branco em geral –, a parte verdadeiramente severa da pena, a ser executada com rigor, há de ser a de natureza pecuniária. Esta, sim, tem o poder de funcionar como real fator de prevenção, capaz de inibir a prática de crimes que envolvam apropriação de recursos públicos”.6. Mais ainda, segundo os próprios termos em que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela indispensabilidade do pagamento da sanção pecuniária para o gozo da progressão a regime menos gravoso, “[a] exceção admissível ao dever de pagar a multa é a impossibilidade econômica absoluta de fazê-lo. […] é possível a progressão se o sentenciado, veraz e comprovadamente, demonstrar sua absoluta insolvabilidade. Absoluta insolvabilidade que o impossibilite até mesmo de efetuar o pagamento parcelado da quantia devida, como autorizado pelo art. 50 do Código Penal” (Rel. Ministro Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe-111 divulg. 10⁄6⁄2015 public. 11⁄6⁄2015).7. Nota-se o manifesto endereçamento das decisões retrocitadas àqueles condenados que possuam condições econômicas de adimplir a sanção pecuniária, de modo a impedir que o descumprimento da decisão judicial resulte em sensação de impunidade.8. Oportunamente, mencione-se também o teor da Recomendação n. 425, de 8 de outubro de 2021, do Conselho Nacional de Justiça, a qual institui, no âmbito do Poder Judiciário, a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua e suas interseccionalidades, abordando de maneira central a relevância da extinção da punibilidade daqueles a quem remanesce tão-somente o resgate da pena pecuniária, ao estabelecer, em seu art. 29, parágrafo único, que, “[n]o curso da execução criminal, cumprida a pena privativa de liberdade e verificada a situação de rua da pessoa egressa, deve-se observar a possibilidade de extinção da punibilidade da pena de multa”.9. Releva, por seu turno, obtemperar que a realidade do País desafia um exame do tema sob outra perspectiva, de sorte a complementar a razão final que inspirou o julgamento da Suprema Corte na ADI 3.150⁄DF. Segundo dados do Infopen, até dezembro de 2020, 40,91% dos presos no país estavam cumprindo pena pela prática de crimes contra o patrimônio; 29,9%, por tráfico de drogas, seguidos de 15,13% por crimes contra a pessoa, crimes que cominam pena privativa de liberdade concomitantemente com pena de multa.10. Não se há, outrossim, de desconsiderar que o cenário do sistema carcerário expõe as vísceras das disparidades sócio-econômicas arraigadas na sociedade brasileira, as quais ultrapassam o inegável caráter seletivo do sistema punitivo e se projetam não apenas como mecanismo de aprisionamento físico, mas também de confinamento em sua comunidade, a reduzir, amiúde, o indivíduo desencarcerado ao status de um pária social. Outra não é a conclusão a que poderia conduzir – relativamente aos condenados em comprovada situação de hipossuficiência econômica – a subordinação da retomada dos seus direitos políticos e de sua consequente reinserção social ao prévio adimplemento da pena de multa.11. Conforme salientou a instituição requerente, o quadro atual tem produzido “a sobrepunição da pobreza, visto que o egresso miserável e sem condições de trabalho durante o cumprimento da pena (menos de 20% da população prisional trabalha, conforme dados do INFOPEN), alijado dos direitos do art. 25 da LEP, não tem como conseguir os recursos para o pagamento da multa, e ingressa em círculo vicioso de desespero”.12. Ineludível é concluir, portanto, que o condicionamento da extinção da punibilidade, após o cumprimento da pena corporal, ao adimplemento da pena de multa transmuda-se em punição hábil tanto a acentuar a já agravada situação de penúria e de indigência dos apenados hipossuficientes, quanto a sobreonerar pessoas próximas do condenado, impondo a todo o seu grupo familiar privações decorrentes de sua impossibilitada reabilitação social, o que põe sob risco a implementação da política estatal proteção da família (art. 226 da Carta de 1988).13. Demais disso, a barreira ao reconhecimento da extinção da punibilidade dos condenados pobres, para além do exame de benefícios executórios como a mencionada progressão de regime, frustra fundamentalmente os fins a que se prestam a imposição e a execução das reprimendas penais, e contradiz a inferência lógica do princípio isonômico (art. 5º, caput da Constituição Federal) segundo a qual desiguais devem ser tratados de forma desigual. Mais ainda, desafia objetivos fundamentais da República, entre os quais o de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (art. 3º, III).14. A extinção da punibilidade, quando pendente apenas o adimplemento da pena pecuniária, reclama para si singular relevo na trajetória do egresso de reconquista de sua posição como indivíduo aos olhos do Estado, ou seja, do percurso de reconstrução da existência sob as balizas de um patamar civilizatório mínimo, a permitir outra vez o gozo e o exercício de direitos e garantias fundamentais, cujo panorama atual de interdição os conduz a atingir estágio de desmedida invisibilidade, a qual encontra, em última análise, semelhança à própria inexistência de registro civil.15. Recurso especial provido, para acolher a seguinte tese: Na hipótese de condenação concomitante a pena privativa de liberdade e multa, o inadimplemento da sanção pecuniária, pelo condenado que comprovar impossibilidade de fazê-lo, não obsta o reconhecimento da extinção da punibilidade.
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Leia o voto do relator no REsp 1.785.861.