Motorista de caminhão entregador de bebidas será indenizado por cumprir jornada excessiva

Para a 3ª Turma, o excesso de jornada caracterizou dano existencial.

A Terceira Turma do Tribunal Superior do Trabalho condenou a Norsa Refrigerantes S.A., distribuidora da Coca-Cola em Jaboatão dos Guararapes (PE), ao pagamento de indenização a um motorista de caminhão entregador de mercadorias que chegava a trabalhar das 6h às 22h. Para o colegiado, o excesso de jornada caracterizou dano existencial.

Frustração

Na reclamação trabalhista, o motorista afirmou que a jornada de trabalho “bastante alongada” havia prejudicado sua pretensão de fazer curso técnico à noite ou em qualquer horário do dia e o impedido de desfrutar momentos ao lado da família e dos amigos. Segundo ele, a empresa não o autorizava a sair mais cedo, ao argumento de que o expediente só acabava depois da última entrega, e por isso se via “diariamente frustrado”.

Folga

O juízo da 4ª Vara do Trabalho de Jaboatão deferiu a indenização por dano moral, ao constatar que o motorista cumpria habitualmente jornada superior a dez horas e que, de acordo com os controles de jornada, era comum ele começar a trabalhar às 6h e terminar às 21h. Mas o Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (PE), embora considerando reprovável a conduta da empresa, entendeu que não havia nos autos elementos que comprovassem que ela teria causado sofrimento considerável ao empregado. “A existência de folga semanal garante ao trabalhador o razoável direito ao lazer e ao convívio familiar”, registrou.

Situação anômala

Para o relator do recurso de revista do motorista, ministro Mauricio Godinho Delgado, a atitude da empresa agride diversos princípios constitucionais. “O excesso de jornada extraordinária, para muito além das duas horas previstas na Constituição e na CLT, cumprido de forma habitual e por longo período, tipifica, em tese, o dano existencial, por configurar manifesto comprometimento do tempo útil de disponibilidade que todo indivíduo livre, inclusive o empregado, ostenta para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais”, afirmou.

O ministro explicou que o dano existencial consiste em lesão ao tempo razoável e proporcional assegurado ao empregado pela ordem jurídica para que possa se dedicar às atividades individuais, familiares e sociais inerentes a todos os indivíduos, sem a sobrecarga horária desproporcional e desarrazoada. Configurada essa situação no caso, a conclusão foi que a condenação, arbitrada na sentença em R$ 10 mil, devia ser restabelecida.

O recurso ficou assim ementado:

A) AGRAVO DE INSTRUMENTO DO RECLAMANTE. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017. DANO EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO EXCESSIVA, CONTÍNUA E DESARRAZOADA DE HORAS EXTRAS. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. Demonstrado no agravo de instrumento que o recurso de revista preenchia os requisitos do art. 896 da CLT, dá-se provimento ao agravo de instrumento para melhor análise da alegada violação do art. 927 do CCB. Agravo de instrumento provido.

B) RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017. 1. DANO EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO EXCESSIVA, CONTÍNUA E DESARRAZOADA DE HORAS EXTRAS. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. O excesso de jornada extraordinária, para muito além das duas horas previstas na Constituição e na CLT, cumprido de forma habitual e por longo período, tipifica, em tese, o dano existencial, por configurar manifesto comprometimento do tempo útil de disponibilidade que todo indivíduo livre, inclusive o empregado, ostenta para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais. A esse respeito é preciso compreender o sentido da ordem jurídica criada no País em cinco de outubro de 1988 (CF/88). É que a Constituição da República determinou a instauração, no Brasil, de um Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), composto, segundo a doutrina, de um tripé conceitual: a pessoa humana, com sua dignidade; a sociedade política, necessariamente democrática e inclusiva; e a sociedade civil, também necessariamente democrática e inclusiva (Constituição da República e Direitos Fundamentais – dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2015, Capítulo II). Ora, a realização dos princípios constitucionais humanísticos e sociais (inviolabilidade física e psíquica do indivíduo; bem-estar individual e social; segurança das pessoas humanas, ao invés de apenas da propriedade e das empresas, como no passado; valorização do trabalho e do emprego; justiça social; subordinação da propriedade à sua função social, entre outros princípios) é instrumento importante de garantia e cumprimento da centralidade da pessoa humana na vida socioeconômica e na ordem jurídica, concretizando sua dignidade e o próprio princípio correlato da dignidade do ser humano. Essa realização tem de ocorrer também no plano das relações humanas, sociais e econômicas, inclusive no âmbito do sistema produtivo, dentro da dinâmica da economia capitalista, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil. Dessa maneira, uma gestão empregatícia que submeta o indivíduo a reiterada e contínua jornada extenuante, que se concretize muito acima dos limites legais, (o autor praticava jornada extraordinária de forma habitual, sendo comum iniciar sua jornada por volta das 6h da manhã e encerrá-la após às 21h, conforme registrado pelo TRT), em dias sequenciais, agride todos os princípios constitucionais acima explicitados e a própria noção estruturante de Estado Democrático de Direito. Se não bastasse, essa jornada gravemente excessiva reduz acentuadamente e de modo injustificável, por longo período, o direito à razoável disponibilidade temporal inerente a todo indivíduo, direito que é assegurado pelos princípios constitucionais mencionados e pelas regras constitucionais e legais regentes da jornada de trabalho. Tal situação anômala deflagra, assim, o dano existencial, que consiste em lesão ao tempo razoável e proporcional, assegurado pela ordem jurídica, à pessoa humana do trabalhador, para que possa se dedicar às atividades individuais, familiares e sociais inerentes a todos os indivíduos, sem a sobrecarga horária desproporcional, desarrazoada e ilegal, de intensidade repetida e contínua, em decorrência do contrato de trabalho mantido com o empregador. Logo, configurada essa situação no caso dos autos, em que a jornada de trabalho do Autor comumente ultrapassava 10 horas, não há dúvida sobre a necessidade de reparação do dano moral sofrido, devendo ser condenada a Reclamada ao pagamento de uma indenização. Recurso de revista conhecido e parcialmente provido no aspecto. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. TRANSPORTE DE VALORES. VALOR ARBITRADO. Conforme a jurisprudência do TST, o empregado desviado de função, que realiza transporte de valores, está exposto a risco, porque não é contratado e treinado para tal mister, fazendo jus, de fato, ao recebimento de indenização. Entretanto, não há na legislação pátria delineamento do quantum a ser fixado a título de dano moral. Caberá ao Juiz fixá-lo, equitativamente, sem se afastar da máxima cautela e sopesando todo o conjunto probatório constante nos autos. A lacuna legislativa na seara laboral quanto aos critérios para fixação da indenização por dano moral leva o Julgador a lançar mão do princípio da razoabilidade, cujo corolário é o princípio da proporcionalidade, pelo qual se estabelece a relação de equivalência entre a gravidade da lesão e o valor monetário da indenização imposta, de modo que possa propiciar a certeza de que o ato ofensor não fique impune e servir de desestímulo a práticas inadequadas aos parâmetros da lei. A jurisprudência desta Corte vem se direcionando no sentido de rever o valor fixado nas instâncias ordinárias a título de indenização apenas para reprimir valores estratosféricos ou excessivamente módicos. No caso em tela, restou incontroverso nos autos que o Reclamante, contratado para laborar como entregador de mercadorias, no desempenho de suas atividades, transportava não apenas mercadorias, mas também valores. Nesse contexto, o TRT considerou “reprovável a conduta da empresa ao se omitir de adotar medidas de segurança eficazes à preservação da integridade física do trabalhador, já que não fornecia escolta armada ao obreiro no transporte dos referidos numerários, nem optou por tomar iniciativa de outra natureza para salvaguardar a integridade física do reclamante. Essa circunstância, indene de dúvida, evidencia a culpa da reclamada na exposição do autor a risco de morte, inclusive, pelo que devida a reparação pecuniária“. Nesse sentido, o montante de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) se revela módico no caso concreto, pelo que se entende razoável e proporcional a majoração do seu valor para R$ 10.000,00 (dez mil reais). Recurso de revista conhecido e parcialmente provido no tema.

C) AGRAVO DE INSTRUMENTO DA RECLAMADA. RECURSO DE REVISTA. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.015/2014 E ANTERIOR À LEI 13.467/2017. BANCO DE HORAS. INVALIDADE. PRESTAÇÃO HABITUAL DE HORAS EXTRAS. ULTRAPASSADO O LIMITE DE 10 HORAS DIÁRIAS. ART. 59, § 2º, DA CLT. MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 126/TST. 2. INTERVALO INTERJORNADA. OJ 355 DA SDI-1/TST. 3. REFLEXOS DAS HORAS EXTRAS EM RSR. SÚMULA 172/TST. 4. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. MOTORISTA DE CAMINHÃO. ENTREGADOR DE BEBIDAS. TRANSPORTE DE VALORES. DESVIO DE FUNÇÃO. EXPOSIÇÃO DO EMPREGADO A RISCO. DANO MORAL CONFIGURADO. 5. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. VALOR ARBITRADO. O banco de horas somente existe para o Direito caso atenda à sua estrita tipicidade legal, após aprovado por negociação coletiva, uma vez que, na qualidade de figura desfavorável, não pode sofrer interpretação extensiva. O art. 59 da CLT, desde janeiro de 1998, fixou indisfarçável marco diferenciador na evolução sociojurídica do regime compensatório no País, por eliminar a reciprocidade de vantagens que a clássica figura de compensação de jornada equilibradamente sempre propiciara às partes contratuais. De fato, o regime flexibilizatório clássico – anterior à Lei n. 9.601/98, portanto – trazia consigo instigante dubiedade que certamente justificava seu prestígio no cotidiano trabalhista e no estuário normativo da Carta Magna: é que o mecanismo, quando manejado com prudência e em extensão ponderada, tendia a favorecer não somente ao empregador, mas, também, de modo incontestável, ao próprio empregado. As vantagens que o regime flexibilizatório conferia ao empregador já eram, na época, óbvias, propiciando a realização de adequações tópicas e circunstanciais no horário laborativo dos obreiros no contexto da empresa, elevando, com isso, a produtividade do trabalho. Contudo, o regime flexibilizatório clássico propiciava igualmente indubitáveis vantagens também para o empregado. Efetivamente, quando utilizado em extensão ponderada, este mecanismo permitia a concentração mais racional do tempo do obreiro nas atividades laborativas, alargando-lhe, em contrapartida, o tempo para livre disponibilidade pessoal, sem prejuízo às cautelas recomendáveis no tocante à saúde e segurança laborais. Note-se um aspecto de suma relevância: a extensão na utilização do mecanismo compensatório é que autoriza preservar-se (ou não) seu impacto favorável ao trabalhador. Sendo manejado em extensão temporal excessiva, pode provocar danos à saúde e segurança laborais; sendo manejado em extensão temporal ponderada, não propicia esse tipo de malefício, alargando, ao revés, o tempo de disponibilidade pessoal do obreiro. Assim, a jornada de trabalho não pode ultrapassar o montante de duas horas suplementares ao dia ou, sendo a jornada inferior a 8 horas, o teto global de 10 horas diárias. No caso concreto, o Tribunal Regional reputou inválido o regime de banco de horas praticado pela Reclamada, por constatar, através da apreciação do conjunto fático-probatório produzido nos autos, a prestação habitual de horas extras acima do limite legal (art. 59 da CLT). Nesse contexto, descumpridos pelo empregador os requisitos fixados para a adoção do regime de banco de horas, nos termos do art. 59, § 2º, da CLT, não há, realmente, como reputá-lo válido. Frise-se que as situações de desrespeito à regularidade do banco de horas conduzem à automática sobrerremuneração das horas diárias em excesso, como se fossem efetivas horas extras. Registre-se, ainda, que a Súmula 85/TST se refere somente ao regime compensatório clássico, não se aplicando ao banco de horas os critérios atenuadores fixados em seus incisos. A matéria, inclusive, já está pacificada no item V do referido verbete. De outra face, decidida a matéria com base no conjunto probatório produzido nos autos, o processamento do recurso de revista fica obstado, por depender do reexame de fatos e provas (Súmula 126/TST). Agravo de instrumento desprovido.

A decisão foi unânime.

Processo: ARR-2016-65.2015.5.06.0144

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