Judiciário, políticas públicas e limites de atuação: questões sobre ativismo e o papel do STJ

Ao analisar processos que discutem a implementação de políticas públicas, a efetividade da ação governamental ou o poder discricionário da administração pública, os ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) constantemente precisam resolver uma delicada equação que envolve, de um lado, os limites de atuação do Poder Judiciário e, de outro, elementos como direitos fundamentais, direitos humanos e garantias sociais básicas. O princípio da separação dos poderes também costuma estar presente nessa espécie de “matemática jurídica”.

A resolução dessas controvérsias não tem fórmula pronta e, muitas vezes, evidencia uma discussão mais profunda travada atualmente no Brasil: o ativismo dentro do Poder Judiciário. Com conotações políticas, econômicas e sociais, o conceito de ativismo envolve a ideia da atribuição de proatividade à atuação da Justiça, em perspectiva expandida – mas não contraditória – da estrita aplicação da lei.

O assunto será objeto de discussão no seminário Independência e Ativismo Judicial: Desafios Atuais, que ocorre no dia 4 de dezembro, no auditório do STJ, em Brasília. Veja a programação preliminar do evento.

Banhos aquecidos

Questões humanitárias, cumprimento de acordos internacionais e a proteção dos direitos fundamentais foram levados em consideração quando a Segunda Turma do STJ determinou que o Estado de São Paulo disponibilizasse banhos aquecidos em suas 168 unidades penitenciárias.

O pedido de instalação de equipamentos de aquecimento foi apresentado pela Defensoria Pública de São Paulo, que alegou que os detentos dispunham somente de água gelada para fazer a higiene pessoal, mesmo nos períodos de frio mais intenso. Segundo a Defensoria, a situação era degradante e possibilitava a disseminação de doenças como a tuberculose.

Em resposta ao pedido da Defensoria, o Estado de São Paulo argumentou que as complexidades de administração do sistema prisional obrigavam o Poder Executivo a definir prioridades dentro das possibilidades dos recursos orçamentários. Para o estado, a melhoria das unidades prisionais dependeria de critérios como oportunidade e conveniência e, por consequência, os pedidos de resolução de problemas por meio do Judiciário importariam interferência indevida entre os poderes.

A instalação de equipamentos de banho quente foi determinada liminarmente pela 12ª Vara de Fazenda de São Paulo, porém a decisão foi revertida pela presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Ao analisar o recurso especial da Defensoria Pública, o ministro Herman Benjamin entendeu que o não oferecimento de banhos aquecidos aos detentos paulistas representava “violação massificada aos direitos humanos” e infringia, além da Constituição Federal, convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.

“O Tribunal da Cidadania não pode fechar simplesmente os olhos a esse tipo de violação da dignidade humana”, afirmou o ministro Herman Benjamin ao restabelecer a liminar da Justiça paulista.

Dignidade dos presos

As condições de encarcerados também levaram a Segunda Turma a afastar da alegação de indevida interferência do Poder Judiciário para reformar decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que, ao analisar a situação de superlotação da cadeia pública de Iturama (MG), havia concluído que a responsabilidade pela unidade prisional deveria ser mantida com o Poder Executivo, apesar das comprovadas condições degradantes no local.

O recurso especial foi apresentado pelo Ministério Público mineiro, que alegou que a cadeia pública apresentava condições absolutamente precárias e impróprias à sobrevivência humana. O MP apontava violações como a ausência de atendimento médico e de banho de sol na unidade, além de precárias condições de iluminação, higiene e ventilação.

“O STJ tem decidido que, ante a demora do poder competente, o Poder Judiciário poderá determinar, em caráter excepcional, a implementação de políticas públicas de interesse social – principalmente nos casos que visem resguardar a supremacia da dignidade humana –, sem que isso configure invasão da discricionariedade ou afronta à reserva do possível”, afirmou o relator do recurso especial, ministro Og Fernandes.

Na decisão que determinou que o TJMG estabeleça as medidas necessárias à garantia da dignidade dos presos, o ministro Og também destacou que o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já concluiu ser lícito ao Judiciário determinar que a administração pública adote medidas assecuratórias de direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que isso configure violação do princípio da separação dos poderes.

Atendimento 24 horas

A possibilidade de o Judiciário exercer o controle de decisões administrativas em virtude de violação de garantias legais foi discutida em recurso especial no qual o Ministério Público de Mato Grosso do Sul buscava restabelecer o sistema de plantão 24 horas na Delegacia Especializada de Atendimento à Infância e Juventude de Campo Grande.

O atendimento ininterrupto na delegacia havia sido extinto em 2010. Para o Ministério Público, a suspensão violou direitos fundamentais como a proteção da integridade física e mental de menores que, sem o atendimento especializado, eram obrigados a compartilhar celas com pessoas que já haviam atingido a maioridade penal.

Por meio de ação civil pública, o MP buscava que o Estado de Mato Grosso do Sul destinasse recursos do orçamento plurianual para atender políticas públicas voltadas ao adolescente em conflito com a lei.

Em primeira instância, o restabelecimento do regime de plantão havia sido determinado pelo magistrado; todavia, em segundo grau, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul reformou a decisão por entender que o remanejamento de delegados estaduais – medida necessária ao estabelecimento do atendimento especializado contínuo – estava inserido na responsabilidade administrativa do Estado. Por isso, para o tribunal, não seria possível a intervenção do Judiciário na formulação de políticas públicas estaduais.

Amparo especializado

O relator do recurso do MP na Primeira Turma, ministro Napoleão Nunes Maia Filho, destacou que a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente preveem a obrigatoriedade da proteção e amparo especializado aos menores, ainda que na condição de infratores. Dessa forma, em situações de violação da legislação e de tratados internacionais, o ministro apontou que o Poder Judiciário deve avançar na discricionariedade da administração para reformar decisões contrárias à lei.

“Veja-se, portanto, que não se está diante de uma escolha moralmente aceitável do Estado, mas de efetiva preterição de uma prioridade imposta pela Constituição Federal de 1988, e de uma conduta contrária à lei, nacional e internacional, constituindo hipótese legalmente aceita de intervenção do Poder Judiciário nos atos da administração praticados com suporte no poder discricionário”, conclui o relator ao determinar o restabelecimento do atendimento especializado ininterrupto.

Meio ambiente

O número de reformas realizadas pelo STJ em acórdãos relacionados à separação de poderes e às limitações da atividade jurisdicional revela as divergências ainda existentes dentro do próprio Judiciário quando os magistrados são chamados a decidir sobre casos oriundos da inexistência ou ineficácia de políticas públicas.

Em uma dessas situações, a Segunda Turma analisou pedido do Ministério Público de Minas Gerais para que o município de Uberlândia (MG) adotasse políticas públicas para a correta gestão dos resíduos sólidos gerados pelo setor da construção civil. O MP trouxe ao processo indícios de que a falta de coleta e armazenamento adequados trazia problemas como contaminação da água de nascentes, erosão e disseminação de doenças.

Ao analisar a ação civil pública, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais entendeu que, além de não haver comprovação de que o município estivesse cometendo ilegalidade, a escolha da realização de obra pública específica – como uma usina de reciclagem de resíduos, conforme buscava o MP – seria ato discricionário do Poder Executivo, a ser praticado segundo a sua conveniência, com a observância do princípio da separação dos poderes.

De acordo com o relator do recurso do MP, ministro Humberto Martins, quando a administração extrapola os limites da competência que lhe é atribuída, o princípio da separação dos poderes não pode impedir que o Judiciário reconheça que o Executivo não cumpriu com a sua obrigação legal e, assim, determine que sejam corrigidas eventuais agressões a direitos difusos e coletivos.

“A atuação do Poder Judiciário no controle das políticas públicas não se pode dar de forma indiscriminada, pois isso violaria o princípio da separação dos poderes. No entanto, quando a administração pública, de maneira clara e indubitável, viola direitos fundamentais por meio da execução ou falta injustificada de programa de governo, a interferência do Poder Judiciário é perfeitamente legítima e serve como instrumento para restabelecer a integridade da ordem jurídica violada”, apontou o ministro Humberto Martins ao acolher do recurso do MP.

Mudanças sociais

Para além dos debates sobre os limites de atuação do Judiciário em questões relativas ao campo da administração pública, os contornos do ativismo judicial também surgem quando cortes superiores como o STJ tomam decisões para assegurar efetividade aos direitos fundamentais previstos na Constituição diante das modificações nos costumes da sociedade.

É o que a doutrina costuma chamar de posição contramajoritária do Poder Judiciário: a atuação judicial na proteção de minorias em situações de interpretação e aplicação da legislação (formulada, em tese, como uma afirmação da maioria).

“Com a transformação e evolução da sociedade, necessariamente também se transformam as instituições sociais, devendo, a reboque, transformar-se a análise jurídica desses fenômenos”, afirmou o ministro Luis Felipe Salomão em 2011, ao relatar decisão inédita da Quarta Turma sobre a possibilidade do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.

Após julgamentos de improcedência do casamento homoafetivo nas instâncias ordinárias, a turma entendeu que a orientação sexual não poderia representar fator determinante para a concessão ou cassação de direitos civis, mesmo porque a própria Constituição fixou como um de seus princípios a promoção do bem de todos, sem preconceito de sexo ou qualquer forma de discriminação.

À época, ao posicionar-se pela possibilidade do matrimônio, o ministro Salomão antecipou eventuais críticas sobre a necessidade de o Congresso Nacional, antes do Judiciário, apreciar a matéria, sobretudo para verificar se haveria “aceitação social”.

O ministro lembrou, todavia, que o regime representativo – que tem o povo como fonte de poder – não significa necessariamente um regime democrático. Isso porque a democracia é forma de governo cujo acesso é estabelecido pela maioria, mas a regra majoritária não tem relação direta com a legitimação democrática.

“Não fosse por isso, não se explicaria a razão de as ações do Estado deverem prestigiar também os não votantes, como, por exemplo, as crianças, os presos, os eleitores facultativos e, de resto, as minorias vencidas pelo voto”, explicou Salomão.

Por esse motivo, segundo o ministro, a soberania popular não é absoluta no tocante ao exercício do poder e aos destinatários das ações públicas. Da mesma forma, a maioria, mediante seus representantes eleitos, não pode “democraticamente” decretar a perda de direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutra alguma aversão.

“Nesse cenário, em regra, é o Poder Judiciário – e não o Legislativo – que exerce um papel contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a Constituição, sempre em vista à proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam eles das minorias, sejam das maiorias”, apontou o ministro Salomão.

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