A Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) restabeleceu liminar da 12ª Vara de Fazenda Pública de São Paulo que determinou a disponibilização de banhos aquecidos em todas as 168 unidades penitenciárias do estado no prazo máximo de seis meses. A decisão, tomada de forma unânime, levou em consideração questões humanitárias, respeito a acordos internacionais e a proteção dos direitos fundamentais dos detentos.
O pedido foi apresentado em ação civil pública pela Defensoria Pública de São Paulo, que argumentou que os presos do estado contam apenas com água gelada para a higiene pessoal, mesmo nos períodos mais frios do ano. Para a Defensoria, o tratamento dispensado aos detentos é cruel e degradante, além de possibilitar a disseminação de doenças como a tuberculose.
Em decisão liminar, a 12ª Vara de Fazenda Pública determinou que o poder público instalasse os equipamentos para o banho dos presos em temperatura adequada, sob pena de multa diária de R$ 200 mil. A presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) suspendeu a medida liminar por entender que, conforme alegado pelo estado, não existiam condições técnicas para executar a determinação.
Fato notório
Para o conhecimento do recurso especial da Defensoria Pública, o relator, ministro Herman Benjamin, ressaltou inicialmente que, conforme estipula o artigo 374 do Código de Processo Civil de 2015, não dependem de prova os fatos considerados notórios, a exemplo da queda sazonal de temperatura em São Paulo, o que afasta eventual alegação sobre a incidência da Súmula 7 do STJ (que impede reexame de provas em recurso especial).
No mérito do pedido, o relator entendeu que a decisão da presidência do TJSP não apresentou elementos jurídicos que justificassem a suspensão da liminar concedida em primeira instância. O ministro também destacou que o não oferecimento de banhos aquecidos aos detentos paulistas representa “violação massificada aos direitos humanos” e infringe a Constituição Federal e as convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.
“O Tribunal da Cidadania não pode fechar simplesmente os olhos a esse tipo de violação da dignidade humana”, concluiu o ministro.
Ao restabelecer a decisão liminar, os ministros da Segunda Turma ressalvaram a possibilidade de que o tribunal paulista aprecie outros recursos que discutam aspectos da decisão liminar, como a forma ou prazo estabelecido para execução da medida pelo estado.
O recurso ficou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. GARANTIA DE BANHO AQUECIDO AOS PRESOS. DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS. ARTS. 12 E 39, IX, DA LEI 7.210⁄1984 (LEI DE EXECUÇÃO PENAL). TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA. ART. 273, I, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 1973 (ART. 300 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015). TUTELA DA EVIDÊNCIA (ART. 311 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015). SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DA TUTELA DE URGÊNCIA. ART. 4º DA LEI 8.437⁄1992 C⁄C O ART. 1º DA LEI 9.494⁄1997. OBRIGAÇÃO DE FAZER. ALEGAÇÃO DE DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E DE INCIDÊNCIA DA RESERVA DO POSSÍVEL. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. MANIFESTO INTERESSE PÚBLICO REVERSO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. FATOS NOTÓRIOS E CONFESSADOS. SUSPENSÃO QUE VIOLA REQUISITOS LEGAIS OBJETIVOS PARA A CONCESSÃO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.HISTÓRICO DA DEMANDA1. Trata-se de Recurso Especial contra acórdão que negou provimento a Agravo Regimental interposto contra decisão do Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, que suspendeu liminar deferida nos autos de Ação Civil Pública proposta pela Defensoria Pública estadual visando obrigar o Estado de São Paulo a disponibilizar, em suas unidades prisionais, equipamentos para banho dos presos em temperatura adequada (“chuveiro quente”).2. Alega a Defensoria Pública: a) segundo parecer da Doutora Mônica Corso Pereira, Presidente da Sociedade Paulista de Pneumologia e Fisiologia e Professora da Unicamp, banho frio pode gerar ou agravar uma série de doenças, sobretudo em Estados como o de São Paulo, em que a temperatura cai sobremaneira em certos períodos do ano; b) a Secretaria da Administração Penitenciária – SAP informa que, dos 99 estabelecimentos prisionais do Estado, apenas cinco dispõem de instalações adequadas de aquecimento de água para presos, e c) nas demais instituições prisionais, somente presos “faxina” (encarregados da limpeza), os que cuidam do preparo ou distribuição de alimentos e os confinados em celas de enfermaria têm acesso a banho quente. Já o Estado de São Paulo aduz, entre outros argumentos, que a instalação de chuveiros elétricos exigirá obras complexas e recursos financeiros, que são finitos, além de implicar riscos à ordem e à segurança dos presídios.3. De acordo com a decisão do Presidente do Tribunal paulista, o pleito de suspensão dos efeitos da tutela antecipada se apoia basicamente no fundamento de que “a ordem judicial representa ameaça de grave lesão de difícil reparação” (e-STJ fl. 123), ao exigir obras e dispêndios financeiros da Fazenda Pública. A providência foi deferida, porquanto estariam presentes “os requisitos ensejadores da intervenção desta Presidência para a suspensão da execução da decisão atacada”.4. Como se verá a seguir, na hipótese dos autos, contudo, não estão presentes os requisitos legais objetivos para a suspensão da tutela antecipada pelo Presidente do Tribunal. Ora, não se confunde grave lesão à ordem pública e à ordem econômica com dificuldades normais e superáveis da Administração (alocação de verbas) em cumprir decisão judicial de proteção de direitos humanos fundamentais. Ao contrário, o que se vislumbra, em juízo preliminar e perfuntório da matéria, é a possibilidade de se configurar grave lesão reversa à ordem, segurança e saúde públicas, caso mantida a decisão de suspensão da liminar.NATUREZA INCONTROVERSA DO FATO (AUSÊNCIA DE BANHO QUENTE) QUE AMPARA A TUTELA DE URGÊNCIANA PRIMEIRA INSTÂNCIA5. É incontroversa – por notória e confessada – a situação fática de fundo (inexistência de banho quente nos estabelecimentos prisionais do Estado de São Paulo). Assim, no presente processo, somente dois pontos jurídicos da decisão recorrida do Presidente do Tribunal de Justiça serão considerados. Ambos embasaram o acórdão recorrido e são estritamente de direito. Estão atrelados, de modo direto, o juízo preliminar (que ao STJ sempre incumbe fazer) acerca da compatibilidade entre as razões de decidir explícitas ou implícitas utilizadas pelo Presidente do Tribunal e o estatuído nos dispositivos legislativos invocados. O primeiro refere-se à hipotética invasão pelo Judiciário de esfera exclusiva da Administração. Vale dizer, a decisão de primeiro grau invadiria o âmbito de políticas públicas, território insuscetível de sindicabilidade e controle judiciais (= definição de prioridades administrativas). O segundo gira em torno da natureza jurídica da higiene de pessoas custodiadas pelo Estado (direito, dever, ou nada disso).RECURSO ESPECIAL E SUSPENSÃO DE LIMINAR OU SEGURANÇA: PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO6. Em regra, o Superior Tribunal de Justiça entende que decisão que concede suspensão de liminar não se sujeita à censura de Recurso Especial, já que ostenta juízo político. Nesse sentido: AgRg no REsp 957.825⁄CE, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, DJe de 13⁄9⁄2013.7. O caso concreto, no entanto, é peculiar, por ferir triplamente aspectos existenciais da textura íntima de direitos humanos substantivos. Primeiro, porque se refere à dignidade da pessoa humana, naquilo que concerne à integridade física e mental a todos garantida. Segundo, porque versa sobre obrigação inafastável e imprescritível do Estado de tratar prisioneiros como pessoas, e não como animais. Por mais grave que seja o ilícito praticado, não perde o infrator sua integral condição humana. Ao contrário, negá-la a um, mesmo que autor de crime hediondo, basta para retirar de todos nós a humanidade de que entendemos ser portadores como parte do mundo civilizado. Terceiro, porque o encarceramento configura pena de restrição do direito de liberdade, e não salvo-conduto para a aplicação de sanções extralegais e extrajudiciais, diretas ou indiretas. Quarto, porque, em presídios e lugares similares de confinamento, ampliam-se os deveres estatais de proteção da saúde pública e de exercício de medidas de assepsia pessoal e do ambiente, em razão do risco agravado de enfermidades, consequência da natureza fechada dos estabelecimentos, propícia à disseminação de patologias.8. Em síntese, ofende os alicerces do sistema democrático de prestação jurisdicional admitir que decisão judicial, relacionada à essência dos direitos humanos fundamentais, não possa ser examinada pelo STJ sob o argumento de se tratar de juízo político. Quando estão em jogo aspectos mais elementares da dignidade da pessoa humana (um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito em que se constitui a República Federativa do Brasil – expressamente enunciado na Constituição, logo em seu art. 1º) impossível subjugar direitos indisponíveis a critérios outros que não sejam os constitucionais e legais.NÃO INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7⁄STJ9. A Súmula 7⁄STJ não constitui obstáculo ao conhecimento do Recurso Especial sob análise, pois desnecessário revolver matéria fática. Pelo lado da pretensão manifestada na Ação Civil Pública, temos fatos notórios, que, como tais, independem de prova, consoante enuncia hoje o art. 374, I, do CPC⁄2015 e o fazia o art. 334, I, do CPC⁄1973. É notório que, pelo menos durante quatro meses do ano, em São Paulo, e, às vezes até durante o verão, ocorrem baixas temperaturas. Se assim é e se incontroverso que o Estado de São Paulo não disponibiliza banho quente para a maioria da população carcerária, estamos realmente diante de desrespeito, não individual, mas massificado, a direitos humanos.10. Por outro lado, a sucinta argumentação do acórdão recorrido não aponta elementos concretos hábeis a demonstrar o preenchimento dos requisitos normativos para a suspensão da liminar, previstos no art. 4º da Lei 8.437⁄1992. A decisão recorrida não está fundada em análise de prova produzida, mas apenas na verossimilhança de argumentos apresentados pela Fazenda.REGIME LEGAL DA HIGIENE PESSOAL DOS PRESOS11. Mais do que privilégio ou leniência do sistema punitivo estatal, a higiene pessoal representa expediente de proteção de todos os presos, dos funcionários, dos voluntários sociais e religiosos, e dos familiares visitantes. Essa a razão para a Lei de Execução Penal atribuir filiação dúplice a “higiene pessoal e asseio da cela ou alojamento”, simultaneamente como direito e dever do condenado (art. 39, IX, da Lei 7.210⁄1984).12. Além disso, a legislação impõe ao Estado o dever de garantir assistência material ao preso e ao internado, nela incluída “instalações higiênicas” (Lei 7.210⁄1984, art. 12), expressão que significa disponibilidade física casada com efetiva possibilidade de uso. Assim, não basta oferecer banho com água em temperatura polar, o que transformaria higiene pessoal em sofrimento ou, contra legem, por ir além da pena de privação de liberdade, caracterizaria castigo extralegal e extrajudicial, consubstanciando tratamento carcerário cruel, desumano e degradante.13. Finalmente, as Regras Mínimas para o Tratamento dos Reclusos, promulgadas pelas Nações Unidas (Regras de Mandela), dispõem que “Devem ser fornecidas instalações adequadas para banho”, exigindo-se que seja “na temperatura apropriada ao clima” (Regra 16, grifo acrescentado, cf. publicação do Conselho Nacional de Justiça, com o título “Regras de Mandela”). Irrelevante, por óbvio, que o texto não faça referência expressa a “banho quente”.14. Correto, portanto, o juiz de primeira instância quando, na decisão de concessão da tutela antecipada, concluiu que “submeter os presos a banhos frios, sobretudo no inverno, segundo respeitado parecer médico juntado com a inicial, desencadeia ou agrava uma série de doenças. E, pior, segundo levantamento do CNJ, a maioria dos estabelecimentos penais não possuem médicos e enfermeiros em todos os períodos” (e-STJ, fl. 57)15. Assim, patente a presença de todos os elementos para a concessão de tutela antecipada, decisão de primeiro grau, aliás, em harmonia com precedentes do STJ, citado pela petição inicial da Defensoria Pública: “A omissão injustificada da administração em efetivar as políticas públicas constitucionalmente definidas e essenciais para a promoção da dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário” (REsp 1.041.197⁄MS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 16⁄9⁄2009). Na mesma linha, outro precedente mencionado, este do Supremo Tribunal Federal: “O mínimo existencial, como se vê, associado ao estabelecimento de prioridades orçamentárias, é capaz de conviver produtivamente com a reserva do possível” (ADPF 45⁄DF, Rel. Min. Celso de Mello, j. 29.4.2004). Por isso, impõe-se restabelecer a integralidade da decisão de primeiro grau.16. Eventuais dificuldades técnicas particulares insuperáveis, relacionadas a estabelecimentos específicos, que impeçam o oferecimento de banho quente, poderão ser submetidas ao próprio juiz de primeiro grau, a quem caberá apreciar a necessidade, ou não, de modificação do prazo que fixou, bem como os contornos e a extensão da sua decisão.CONCLUSÃO17. Recurso Especial conhecido e provido.