Hospital é responsável por morte de auxiliar de lavanderia por covid-19

Para a 8ª Turma, ficou demonstrado que a contaminação estava relacionada à atividade exercida por ele

A Oitava Turma do Tribunal Superior do Trabalho reconheceu a responsabilidade do Hospital Misericórdia, de Santos Dumont (MG), pela morte de um auxiliar de lavanderia por complicações decorrentes da covid-19. A decisão leva em conta que a atividade desenvolvida por ele em um hospital referência para o tratamento da doença resulta na maior probabilidade de contaminação.

Morte

Segundo a viúva, o auxiliar foi diagnosticado com covid-19 em julho de 2020 e, 11 dias depois, faleceu. Ela e os dois filhos do casal também foram infectados.

Na reclamação trabalhista, ela alegava que a contaminação havia ocorrido no trabalho, uma vez que ele tinha contato direto com as roupas dos funcionários e dos pacientes. Segundo ela, o hospital deveria ter comunicado o falecimento à Previdência Social como acidente de trabalho, mas não o fez nem prestou auxílio à família.

Normas de segurança

O hospital, em sua defesa, sustentou que sempre cumprira as normas de segurança de seus trabalhadores após declaração a situação de pandemia, fornecendo os EPIs necessários e orientando-os sobre os riscos de contaminação e as medidas profiláticas que deveriam ser adotadas.

Hospital de referência

O juízo da 2ª Vara do Trabalho de Barbacena (MG) considerou dispensável apurar a culpa do hospital. De acordo com a sentença, a responsabilização advém do risco assumido pelo empregador ao submeter o empregado, durante o período agudo da pandemia, ao perigo de contaminação pelo contato direto com roupas sujas de todos os pacientes do hospital, que era o estabelecimento de referência no tratamento de casos de covid-19 em Santos Dumont.

Grupo de risco

Ainda conforme a sentença, embora o auxiliar tenha passado por treinamento, as medidas adotadas não foram suficientes, sobretudo porque ele era do grupo de risco, por ser obeso e hipertenso, e não havia protocolo de distanciamento entre empregados, pacientes e visitantes. Com esses fundamentos, foi deferida a indenização à viúva no valor de R$ 50 mil, a título de danos morais, e de pensão mensal de 70% da última remuneração do auxiliar até a data em que ele completaria 75 anos.

Risco acima da média

A condenação foi mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (MG), que entendeu que, embora não trabalhasse na chamada “linha de frente”, o auxiliar se expunha ao risco de contágio em proporção inquestionavelmente superior à média das pessoas, em razão do contato habitual com o material utilizado pelos pacientes infectados.

Risco comunitário

Na tentativa de rediscutir o caso no TST, o hospital alegou que o risco decorrente da covid-19 é comunitário e abstrato e independe de o empregado estar trabalhando ou não. Também argumentou que o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os casos de contaminação pelo coronavírus somente seriam considerados doença ocupacional se fosse comprovado o nexo causal, o que não ocorreu no caso.

Doença do trabalho

O relator do recurso, ministro Agra Belmonte, observou que a Lei 8.213/1991 não reconhece como doença do trabalho as doenças endêmicas, a não ser que seja comprovado que ela resulta da exposição ou do contato direto decorrente da natureza do trabalho. No caso da covid-19, a Medida Provisória 927/2020, que vigorou entre março e julho daquele ano, dispunha que os casos de contaminação não seriam considerados doença do trabalho, exceto mediante comprovação do nexo causal, mas esse dispositivo foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal um mês após a sua edição, permitindo a análise de eventual contaminação como sendo doença ocupacional.

Trabalhador da saúde

Outro aspecto salientado pelo ministro é o fato de os profissionais de limpeza serem enquadrados como essenciais ao controle de doenças e à manutenção da ordem pública na Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia.

Em voto convergente, o presidente da Oitava Turma, ministro Caputo Bastos, lembrou que a Lei 14.128/2021, que trata da compensação financeira a ser paga pela União aos profissionais e trabalhadores de saúde que faleceram ou ficaram incapacitados para o trabalho em razão da covid-19, define o alcance dessa expressão. Ela inclui “aqueles que, mesmo não exercendo atividades-fim nas áreas de saúde, auxiliam ou prestam serviço de apoio presencialmente nos estabelecimentos de saúde para a consecução daquelas atividades”, no desempenho de atribuições, entre outros, em serviços de lavanderia.

O recurso ficou assim ementado:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. PROCESO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467/2017. CONTAMINAÇÃO POR CORONAVÍRUS. MORTE DE EMPREGADO AUXILIAR DE LAVANDERIA DE HOSPITAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. NEXO CAUSAL. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA.

1 – A lide versa sobre a responsabilização do empregador em face do falecimento do ex-empregado em decorrência das complicações de saúde advindas da contaminação pelo coronavírus. O recurso detém transcendência jurídica, na medida em que a postulação se refere a direito socialmente assegurado se trata de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista.

2 – A pandemia gerada pelo novo coronavírus ensejou impactos inimagináveis em toda a sociedade, em especial nas relações de trabalho e nas obrigações dela decorrentes. Atento a essa nova realidade, o Governo Federal, em decorrência do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, editou a Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020 (vigorou até 20/7/2020), que traçou medidas alternativas trabalhistas para enfrentamento do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus (covid-19) para preservação do emprego e da renda. No Parágrafo Único do art. 1º da referida Medida Provisória, foi expressamente reconhecida, para fins trabalhistas, a hipótese de força maior. O instituto, conforme dispõe o art. 501 da CLT, contém um elemento objetivo (inevitabilidade do contágio do coronavírus) e outro subjetivo (ausência de culpa por imprevidência do empregador no tocante à sua causa).

3 – No presente caso, a Corte Regional entendeu pela responsabilidade objetiva do Reclamado ao fundamento de que ” a atividade do de cujus, como “auxiliar de lavanderia” em hospital, implica, por sua natureza, maior probabilidade de contaminação, mormente se considerado o grave momento da pandemia por Covid-19 no país em julho de 2020, período em que o ex-empregado contraiu a doença.” Conclui “ser presumível que o de cujus, laborando como “auxiliar de lavanderia” em hospital referência no tratamento da Covid-19, tenha sido infectado no seu ambiente de trabalho pelo coronavírus (Sars-CoV-2).” O Regional foi enfático no sentido de que o de cujus mantinha contato habitual e permanente com material utilizado por pacientes infectados, embora tenha recebido treinamentos e EPI’s.

4 – O art. 20 da Lei 8.213/91, no seu inciso II, considera doença do trabalho aquela “adquirida ou desencadeada em função de condições especiais em que o trabalho é realizado e com ele se relacione diretamente, constante da relação mencionada no inciso I.” O § 1º, item “d”, do art. 20 da referida lei dispõe que não é considerada doença do trabalho ” a doença endêmica adquirida por segurado habitante de região em que ela se desenvolva, salvo comprovação de que é resultante de exposição ou contato direto determinado pela natureza do trabalho.”

5 – Ressalte-se, como bem consignou o Regional, que a própria MP 927 de 22/3/2020, que no seu art. 29 dispunha que os casos de contaminação do coronavírus não serão considerados doença do trabalho, exceto mediante comprovação do nexo causal, teve a eficácia do referido dispositivo suspensa pelo Supremo Tribunal Federal um mês após a sua edição (em 29/4/2020), permitindo a análise de eventual contaminação pela COVID-19 como sendo doença ocupacional. No referido julgamento prevaleceu a divergência aberta pelo ministro Alexandre de Moraes, no sentido de que as regras dos artigos 29 e 31 fogem da finalidade da MP de compatibilizar os valores sociais do trabalho, “perpetuando o vínculo trabalhista, com a livre iniciativa, mantendo, mesmo que abalada, a saúde financeira de milhares de empresas”. Segundo esse ministro, “o artigo 29, ao prever que casos de contaminação pelo coronavírus não serão considerados ocupacionais, exceto mediante comprovação de nexo causal, ofende inúmeros trabalhadores de atividades essenciais que continuam expostos ao risco.” (extraído do site do STF – Supremo Tribunal Federal (stf.jus.br), em 1º/9/2022 às 16h35)

6 – Embora não haja norma expressa a disciplinar a responsabilidade objetiva do empregador, a possibilidade de reconhecimento da responsabilidade objetiva, tese consagrada, há muito, na jurisprudência dos Tribunais do Trabalho, foi ratificada pelo plenário do STF, ao julgar o RE nº 828.040, Relator Ministro Alexandre de Moraes, DJE 26/6/2020, e firmar a seguinte tese em repercussão geral (Tema 932): “O artigo 927, parágrafo único, do Código Civil é compatível com o artigo 7º, XXVIII, da Constituição Federal, sendo constitucional a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida, por sua natureza, apresentar exposição habitual a risco especial, com potencialidade lesiva e implicar ao trabalhador ônus maior do que aos demais membros da coletividade.” Assim, prevalece no Direito do Trabalho a Teoria do Risco Negocial, que enseja a atribuição da responsabilidade objetiva ao empregador, impondo a este a obrigação de indenizar os danos sofridos pelo empregado, independentemente de culpa, quando a atividade normal da empresa propicie, por si só, riscos à integridade física do empregado. Desse modo, a atividade normal da empresa (hospital) oferece risco acentuado à integridade física de seus empregados, uma vez que seus empregados, com algumas exceções, estão sempre em contato com doenças infectocontagiosas. Precedentes. No caso, a atividade desenvolvida pelo falecido, como auxiliar de lavanderia em hospital referência para o tratamento do covid-19, atrai uma maior probabilidade de contaminação. Saliente-se que o Regional foi categórico no sentido de que “o Reclamado sequer provou a adoção de todas as medidas sanitárias aptas a preservar a saúde de seus trabalhadores e impedir ou reduzir os riscos de contaminação pela Covid-19 (art. 157, da CLT). Inexistem, também, prova do desleixo e negligência do de cujus, de modo a se sujeitar, acima da média, ao risco de contágio ao Coronavírus fora de seu ambiente de trabalho.” Ademais, nos termos do art. 3º-J, § 1º, da Lei 13.979/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, a atividade dos profissionais de limpeza (item XXI), tal como o empregado, se enquadra dentre aquelas listadas como essenciais ao controle de doenças e à manutenção da ordem pública .

7 – Não se ignora o fato de se tratar de um vírus globalizado, que poderia o de cujus ter contraído em qualquer lugar que frequentasse, como supermercados, padarias etc. Mas o fato é que não se pode ignorar que o seu local de trabalho e as atividades que desempenhava o expunham a um risco maior do que qualquer outro trabalhador no desempenho das suas atividades laborais. Saliente-se para o fato de que até certo ponto o reclamado assumiu o risco, ao não atender, segundo o Regional, a recomendação do Ministério Público do Trabalho de afastar os profissionais incluídos no grupo de risco definido pelo Ministério da Saúde, tendo em vista que o de cujus era portador de comorbidades (obesidade e hipertensão arterial). Com base nesses fundamentos, não há como se afastar o nexo de causalidade entre a moléstia que vitimou o trabalhador e as funções por ele exercidas, em face do elevado risco de contaminação que elas ofereciam e o consequente reconhecimento da responsabilidade objetiva. Agravo de instrumento conhecido e desprovido.

A decisão foi unânime.

Processo: AIRR-10502-83.2020.5.03.0132

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